A vizinha-se o Natal. O Filho de
Deus veio à Terra e vem ao coração do homem e ao seio do povo como “Pedra
angular da Igreja” e “Rei das Nações”. São estas as expressões consagradas na
antífona do cântico de Vésperas de 22 de dezembro, o Magnificat da Virgem Maria, aquela que acreditou que “havia de
realizar-se tudo quanto Lhe fora dito da parte do Senhor”.
Ora, o sinal que Deus apresentou
ao Povo de que os dias messiânicos, dias de paz, estavam a amanhecer é muito
simples: “uma virgem conceberá e dará à Luz um filho, que será chamado Emanuel,
Deus Connosco” (Is
7,14). E esse sinal
promissor concretiza-se na pessoa disponível de Maria (cf
Lc 1,31) e solicita
a compreensão e a disponibilidade cooperante de José, que assentiu (cf
Mt 1, 20-21.24) – em
torno do novo nome de Jesus (Ele salva). E o sinal deste Deus Connosco, ou seja, de que encarnou
e passou a habitar entre nós (cf Jo 1,14) é um fenómeno aparentemente trivial,
mas dado por anjos aos pastores: “encontrareis um menino envolto em panos e
reclinado numa manjedoura” (Lc 2,12). É claro que as pessoas simples
como os pastores acolheram Deus no sinal mais simples, sem estarem a fazer
finca-pé na espera dum sinal de esplendor: “Vamos a Belém ver o que aconteceu e
o que o Senhor nos deu a conhecer” (Lc 2,15).
Também aqueles que tinham o
espírito aberto aos sinais dos tempos e o coração em disponibilidade generosa
acorreram de longe ao sinal do Messias e tributaram ao menino do Natal o preito
daquilo que se oferece a Deus, ao Rei e ao Homem, simbolizado na oferenda,
respetivamente, do incenso, do ouro e da mirra (cf Mt 2,11).
É em torno daquele sinal
contraditório do nosso Deus imensamente rico e todo-poderoso, agora exposto na
simplicidade de menino dependente – deslocado de palácio luxuoso e despido de
ricas vestimentas e dum sem-número de cortesãos, aios e pajens – recolhido a um
estábulo e acarinhado pela solicitude de mulher simples e de homem simples, que
surge o cântico angélico, Gloria in
excelsis, pax in Terra, Gloria Deo, paz hominibus. A Deus a glória nos Céus
e aos homens a paz na Terra. A aparente dicotomia “glória a Deus e paz aos
homens” e “Céus e Terra” foi brilhantemente resolvida com Ireneu de Lião,
quando declara que “a glória a de Deus é o homem vivo e a vida plena do homem
consiste na visão de Deus” (Gloria
enim Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei
– Ireneu de Lião, in Contra as Heresias
4,7).
Já em si o Natal como sinal do
nosso Deus espelha em si, como vimos, um signo de contradição. Mas há mais:
Simeão, aquando da apresentação no Templo, profetizou claramente. É certo que o
seu hino designa aquele menino como “Salvação
oferecida pelo Senhor a todos os povos,
Luz para se revelar às nações e Glória
de Israel”. Porém, disse a Maria, sua mãe, que “Este menino está aqui para queda
e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição (…). Assim hão de revelar-se os pensamentos de
muitos corações” (Lc 2,30-35).
***
Dêmos por conhecidas as diversas
peripécias da vida de Jesus em que muitos O admiraram, O ouviram e tantos O
seguiam, tendo inúmeros beneficiado dos seus poderes taumatúrgicos e da doçura
da sua palavra (a dinâmica do mútuo acolhimento), bem como os casos de
ceticismo, contestação, rejeição e condenação à morte e morte de cruz (a
dinâmica do mistério da iniquidade), com as invectivas. A ressurreição, ao
fazer passar a ignomínia da cruz a momento inaugural de salvação e de mandato
missionário por todo o mundo, põe-se em linha com o desígnio salvífico de Deus,
que se aninha como semente promissora na história natalina.
Ora, se a teofania do Natal vem conotada
em contradição com as teofanias veterotestamentárias, embora também conste da
economia salvífica do Antigo Testamento (basta refletir nos
segmentos discursivos acima produzidos),
não admira que o “hoje” do nosso Natal depare com um mundo contraditoriamente
em rota de colisão com o desígnio divino e com o espírito de paz, glória, vida,
liberdade, justiça, convivência, fraternidade. Muitos creem que os homens são
todos irmãos, mas passam a vida e a atividade a ferir ou até a aniquilar essa
fraternidade e, sobretudo, não estão abertos a reconhecer a paternidade única e
total do nosso Deus – o que dá a entender que a fraternidade sem o Pai comum e
sem o correspondente rosto materno é palavra vã e estatuto sem sentido.
A letra da composição musical
natalina de Ferreira dos Santos “Ergue os teus olhos” proclama o surgimento da
luz de que fala o profeta Isaías (Is 9,1), pois “dias de paz
amanheceram”, já que “nasceu o nosso Deus”. De forma moderna e sintética, aquela
composição tipifica as três vertentes do “sinal do nosso Deus”: A terra foi dividida com justiça e cada mão
recebeu o pão igual; caíram as grades das prisões e não ouvimos o grito das
torturas; e a voz do povo foi livre na cidade e em cada homem o homem se
encontrou.
Porém, o nosso mundo recusa a
partilha da terra e dos seus recursos de forma equitativa, campeia a pobreza
causada pela ambição e desdém dos outros, multiplicam-se os conflitos regionais,
a ponto de mais parecer visionar-se o espetáculo de uma terceira guerra mundial
aos pedaços, como ao epifenómeno se referiu, em tempos, o papa Francisco.
É mais do que tangível que as
grades das prisões não caíram. Os delinquentes não diminuem no mundo. Muitos
são castigados pela pena capital decidida levianamente e tantas vezes aplicada
de forma trivial e outras de forma bárbara. Persiste em vários Estados a pena
de prisão perpétua. Muitos condenados são lançados para as celas prisionais sem
redenção, sem apoios e s em luz ao fundo do túnel que aponte para um horizonte
de reinserção. Usa-se e abusa-se da condenação sem culpa formada e da prisão
preventiva (esta como medida demasiado frequente de coação). Continua a
infligir-se a tortura quer em ambiente de democracia quer (e sobretudo) em
regime de ditadura. E é claro que persiste a ditadura que amordaça a liberdade
de pensamento, de expressão e de reunião; aumenta a tortura de favela, do
desemprego, da falta de acesso à saúde, à segurança, à proteção social e à
educação; cresce a tortura da precariedade no emprego, da sobrecarga de
trabalho ou do ordenado de miséria; está em crescendo a tortura da asfixia
financeira e fiscal, da penúria económica e da governança por medíocres.
A liberdade é efetivamente
apregoada e até alcançada. Porém, depressa se degrada, se desvirtua e se põe ao
serviço de poucos, dizendo desdenhosamente adeus à maior parte. É tão fácil a
liberdade divorciar-se da fraternidade e, em vez de se afirmar a paternidade de
Deus, invoca-se para a promoção da guerra, do esplendor e do fausto. Os homens desencontram-se.
***
Todavia, é pecado olhar o mundo
apenas nesta perspetiva unilateral da fuga ao Natal. Os sinais da presença do
Messias, ou os frutos do Natal estão à vista de todos. “Ide também hoje dizer a
João o que vistes e ouvistes: Os cegos veem, os coxos andam,
os leprosos ficam limpos,
os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam,
a Boa-Nova é anunciada
aos pobres; e feliz de quem não tiver em n’Ele ocasião
de queda” (cf Lc 7,22-23).
Com efeito, registam-se avanços
civilizacionais e culturais. Assim:
Se a civilização ocidental se baseia nos prodígios da ciência, na
riqueza do mercado, na segurança do primado da lei, no respeito pelos direitos
humanos e pela liberdade, nas virtudes da caridade ou da segurança social, nas
belas-artes e na música, numa filosofia assente na Razão e noutros factos tidos
por adquiridos – Thomas E. Woods Jr. Entende que foi a Igreja Católica quem
construiu a civilização ocidental. É verdade que hoje, como ao longo de toda a
História bimilenar se multiplicam as escolas, os hospícios e hospitais, as
constituições, as leis humanizantes e as ONG. A Igreja, perita em humanidade,
tem contribuído de forma eminente para a humanização das pessoas e dos povos oferecendo
a santidade em todos os modos de vida.
É
incontável o número de clérigos, frades ou freiras e leigos que, no dia a dia
das comunidades, paróquias ou dioceses ou nas missões, se esfalfam pela causa
da promoção social e económica e pela tarefa da evangelização. E, se há
comunidades e povos em que a marca da Igreja é a da estabilidade, também as há
– e são cada vez mais numerosas (Albânia, África, Índia América Latina…) –
em que a opção clara e preferencial é pelos pobres, pelos mais fracos, por
aqueles de quem mais ninguém se lembra (ou se lembram apenas em maré de eleições ou a título de
exploração) ou seja, pelas periferias. E os Estados, mesmo os que se
afirmam laicos, estão a abandonar a pena de morte e a prisão perpétua,
rejeita-se a escravatura, já se vai promovendo timidamente a humanização das
prisões e se vai cuidando da reinserção futura dos reclusos. Insiste-se cada
vez mais na não descriminação com base na raça, etnia, credo político, religião
e sexo; e propõe-se a tolerância como estilo e prática. Já se condenam as
guerras a título religioso.
São
progressos ainda longínquos do Natal pleno, mas na sua rota. O Natal continua,
pois, a ser verdadeiro sinal de Deus. Tanto assim que o casal presidencial, na
sua mensagem natalícia, salienta o facto da convocação da “união das famílias e
amigos”, mas pretende “ir
mais longe na sua celebração”. Se o Natal é sempre que o homem queira – e
devem todos querê-lo e querê-lo sempre e em toda a parte – Maria e Aníbal
querem “que a solidariedade e a partilha sejam mais fortes nesta época do ano,
mas que permaneçam ativas ao longo do tempo”. Olham agora (mas assumem que
o devem fazer também o ano inteiro) para os “mais frágeis e vulneráveis: as
crianças, os desempregados, os mais velhos”. Reconhecendo que se trata de “uma
altura em que estar privado do convívio dos que amamos dói mais” e que “há
várias razões para que isso aconteça”, salientam o facto de haver “muitos a
trabalhar, tantos voluntariamente, para dar conforto e calor humano aos que
dele precisam”, sobretudo o que se encontram na diáspora.
Finalmente, destaca-se o facto de
o Natal de há dois mil anos surgir na periferia do Império, a Palestina; na periferia
daquela província do Império, Belém de Judá (das mais pequenas
das cidades de Judá – cf Mt 2,6);
e de, na infância, o protagonista do Natal vir morar para Nazaré (De Nazaré pode vir alguma coisa boa? –
pergunta Natanael – Jo1,46) donde se voltará para Jerusalém.
Constitui este o trunfo para o
Papa propor a Igreja (continuadora de Cristo) como em saída para as diversas periferias
existenciais. Tem de se ver que “Os pobres são evangelizados” (Mt
11,5).
Sim, também Francisco é sinal do
Natal e sinal de Deus!
Feliz Natal para todas e todos.
Do coração.
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