segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Natal: Eis o sinal do nosso Deus

A vizinha-se o Natal. O Filho de Deus veio à Terra e vem ao coração do homem e ao seio do povo como “Pedra angular da Igreja” e “Rei das Nações”. São estas as expressões consagradas na antífona do cântico de Vésperas de 22 de dezembro, o Magnificat da Virgem Maria, aquela que acreditou que “havia de realizar-se tudo quanto Lhe fora dito da parte do Senhor”.
Ora, o sinal que Deus apresentou ao Povo de que os dias messiânicos, dias de paz, estavam a amanhecer é muito simples: “uma virgem conceberá e dará à Luz um filho, que será chamado Emanuel, Deus Connosco” (Is 7,14). E esse sinal promissor concretiza-se na pessoa disponível de Maria (cf Lc 1,31) e solicita a compreensão e a disponibilidade cooperante de José, que assentiu (cf Mt 1, 20-21.24) – em torno do novo nome de Jesus (Ele salva). E o sinal deste Deus Connosco, ou seja, de que encarnou e passou a habitar entre nós (cf Jo 1,14) é um fenómeno aparentemente trivial, mas dado por anjos aos pastores: “encontrareis um menino envolto em panos e reclinado numa manjedoura” (Lc 2,12). É claro que as pessoas simples como os pastores acolheram Deus no sinal mais simples, sem estarem a fazer finca-pé na espera dum sinal de esplendor: “Vamos a Belém ver o que aconteceu e o que o Senhor nos deu a conhecer” (Lc 2,15).
Também aqueles que tinham o espírito aberto aos sinais dos tempos e o coração em disponibilidade generosa acorreram de longe ao sinal do Messias e tributaram ao menino do Natal o preito daquilo que se oferece a Deus, ao Rei e ao Homem, simbolizado na oferenda, respetivamente, do incenso, do ouro e da mirra (cf Mt 2,11).
É em torno daquele sinal contraditório do nosso Deus imensamente rico e todo-poderoso, agora exposto na simplicidade de menino dependente – deslocado de palácio luxuoso e despido de ricas vestimentas e dum sem-número de cortesãos, aios e pajens – recolhido a um estábulo e acarinhado pela solicitude de mulher simples e de homem simples, que surge o cântico angélico, Gloria in excelsis, pax in Terra, Gloria Deo, paz hominibus. A Deus a glória nos Céus e aos homens a paz na Terra. A aparente dicotomia “glória a Deus e paz aos homens” e “Céus e Terra” foi brilhantemente resolvida com Ireneu de Lião, quando declara que “a glória a de Deus é o homem vivo e a vida plena do homem consiste na visão de Deus” (Gloria enim Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei – Ireneu de Lião, in Contra as Heresias 4,7).
Já em si o Natal como sinal do nosso Deus espelha em si, como vimos, um signo de contradição. Mas há mais: Simeão, aquando da apresentação no Templo, profetizou claramente. É certo que o seu hino designa aquele menino como “Salvação oferecida pelo Senhor a todos os povos, Luz para se revelar às nações e Glória de Israel”. Porém, disse a Maria, sua mãe, que “Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição (…). Assim hão de revelar-se os pensamentos de muitos corações” (Lc 2,30-35).
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Dêmos por conhecidas as diversas peripécias da vida de Jesus em que muitos O admiraram, O ouviram e tantos O seguiam, tendo inúmeros beneficiado dos seus poderes taumatúrgicos e da doçura da sua palavra (a dinâmica do mútuo acolhimento), bem como os casos de ceticismo, contestação, rejeição e condenação à morte e morte de cruz (a dinâmica do mistério da iniquidade), com as invectivas. A ressurreição, ao fazer passar a ignomínia da cruz a momento inaugural de salvação e de mandato missionário por todo o mundo, põe-se em linha com o desígnio salvífico de Deus, que se aninha como semente promissora na história natalina.
Ora, se a teofania do Natal vem conotada em contradição com as teofanias veterotestamentárias, embora também conste da economia salvífica do Antigo Testamento (basta refletir nos segmentos discursivos acima produzidos), não admira que o “hoje” do nosso Natal depare com um mundo contraditoriamente em rota de colisão com o desígnio divino e com o espírito de paz, glória, vida, liberdade, justiça, convivência, fraternidade. Muitos creem que os homens são todos irmãos, mas passam a vida e a atividade a ferir ou até a aniquilar essa fraternidade e, sobretudo, não estão abertos a reconhecer a paternidade única e total do nosso Deus – o que dá a entender que a fraternidade sem o Pai comum e sem o correspondente rosto materno é palavra vã e estatuto sem sentido.
A letra da composição musical natalina de Ferreira dos Santos “Ergue os teus olhos” proclama o surgimento da luz de que fala o profeta Isaías (Is 9,1), pois “dias de paz amanheceram”, já que “nasceu o nosso Deus”. De forma moderna e sintética, aquela composição tipifica as três vertentes do “sinal do nosso Deus”: A terra foi dividida com justiça e cada mão recebeu o pão igual; caíram as grades das prisões e não ouvimos o grito das torturas; e a voz do povo foi livre na cidade e em cada homem o homem se encontrou.
Porém, o nosso mundo recusa a partilha da terra e dos seus recursos de forma equitativa, campeia a pobreza causada pela ambição e desdém dos outros, multiplicam-se os conflitos regionais, a ponto de mais parecer visionar-se o espetáculo de uma terceira guerra mundial aos pedaços, como ao epifenómeno se referiu, em tempos, o papa Francisco.
É mais do que tangível que as grades das prisões não caíram. Os delinquentes não diminuem no mundo. Muitos são castigados pela pena capital decidida levianamente e tantas vezes aplicada de forma trivial e outras de forma bárbara. Persiste em vários Estados a pena de prisão perpétua. Muitos condenados são lançados para as celas prisionais sem redenção, sem apoios e s em luz ao fundo do túnel que aponte para um horizonte de reinserção. Usa-se e abusa-se da condenação sem culpa formada e da prisão preventiva (esta como medida demasiado frequente de coação). Continua a infligir-se a tortura quer em ambiente de democracia quer (e sobretudo) em regime de ditadura. E é claro que persiste a ditadura que amordaça a liberdade de pensamento, de expressão e de reunião; aumenta a tortura de favela, do desemprego, da falta de acesso à saúde, à segurança, à proteção social e à educação; cresce a tortura da precariedade no emprego, da sobrecarga de trabalho ou do ordenado de miséria; está em crescendo a tortura da asfixia financeira e fiscal, da penúria económica e da governança por medíocres.
A liberdade é efetivamente apregoada e até alcançada. Porém, depressa se degrada, se desvirtua e se põe ao serviço de poucos, dizendo desdenhosamente adeus à maior parte. É tão fácil a liberdade divorciar-se da fraternidade e, em vez de se afirmar a paternidade de Deus, invoca-se para a promoção da guerra, do esplendor e do fausto. Os homens desencontram-se.
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Todavia, é pecado olhar o mundo apenas nesta perspetiva unilateral da fuga ao Natal. Os sinais da presença do Messias, ou os frutos do Natal estão à vista de todos. “Ide também hoje dizer a João o que vistes e ouvistes: Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres; e feliz de quem não tiver em n’Ele ocasião de queda” (cf Lc 7,22-23).
Com efeito, registam-se avanços civilizacionais e culturais. Assim:
Se a civilização ocidental se baseia nos prodígios da ciência, na riqueza do mercado, na segurança do primado da lei, no respeito pelos direitos humanos e pela liberdade, nas virtudes da caridade ou da segurança social, nas belas-artes e na música, numa filosofia assente na Razão e noutros factos tidos por adquiridos – Thomas E. Woods Jr. Entende que foi a Igreja Católica quem construiu a civilização ocidental. É verdade que hoje, como ao longo de toda a História bimilenar se multiplicam as escolas, os hospícios e hospitais, as constituições, as leis humanizantes e as ONG. A Igreja, perita em humanidade, tem contribuído de forma eminente para a humanização das pessoas e dos povos oferecendo a santidade em todos os modos de vida.
É incontável o número de clérigos, frades ou freiras e leigos que, no dia a dia das comunidades, paróquias ou dioceses ou nas missões, se esfalfam pela causa da promoção social e económica e pela tarefa da evangelização. E, se há comunidades e povos em que a marca da Igreja é a da estabilidade, também as há – e são cada vez mais numerosas (Albânia, África, Índia América Latina…) – em que a opção clara e preferencial é pelos pobres, pelos mais fracos, por aqueles de quem mais ninguém se lembra (ou se lembram apenas em maré de eleições ou a título de exploração) ou seja, pelas periferias. E os Estados, mesmo os que se afirmam laicos, estão a abandonar a pena de morte e a prisão perpétua, rejeita-se a escravatura, já se vai promovendo timidamente a humanização das prisões e se vai cuidando da reinserção futura dos reclusos. Insiste-se cada vez mais na não descriminação com base na raça, etnia, credo político, religião e sexo; e propõe-se a tolerância como estilo e prática. Já se condenam as guerras a título religioso.
São progressos ainda longínquos do Natal pleno, mas na sua rota. O Natal continua, pois, a ser verdadeiro sinal de Deus. Tanto assim que o casal presidencial, na sua mensagem natalícia, salienta o facto da convocação da “união das famílias e amigos”, mas pretende “ir mais longe na sua celebração”. Se o Natal é sempre que o homem queira – e devem todos querê-lo e querê-lo sempre e em toda a parte – Maria e Aníbal querem “que a solidariedade e a partilha sejam mais fortes nesta época do ano, mas que permaneçam ativas ao longo do tempo”. Olham agora (mas assumem que o devem fazer também o ano inteiro) para os “mais frágeis e vulneráveis: as crianças, os desempregados, os mais velhos”. Reconhecendo que se trata de “uma altura em que estar privado do convívio dos que amamos dói mais” e que “há várias razões para que isso aconteça”, salientam o facto de haver “muitos a trabalhar, tantos voluntariamente, para dar conforto e calor humano aos que dele precisam”, sobretudo o que se encontram na diáspora. 
Finalmente, destaca-se o facto de o Natal de há dois mil anos surgir na periferia do Império, a Palestina; na periferia daquela província do Império, Belém de Judá (das mais pequenas das cidades de Judá – cf Mt 2,6); e de, na infância, o protagonista do Natal vir morar para Nazaré (De Nazaré pode vir alguma coisa boa? – pergunta Natanael – Jo1,46) donde se voltará para Jerusalém.
Constitui este o trunfo para o Papa propor a Igreja (continuadora de Cristo) como em saída para as diversas periferias existenciais. Tem de se ver que “Os pobres são evangelizados” (Mt 11,5).
Sim, também Francisco é sinal do Natal e sinal de Deus!
Feliz Natal para todas e todos.
Do coração.

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