quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Passará o Pai Natal a vir da China com as prendinhas?

Segundo revelou hoje, 10 de dezembro, a Lusa, agência de notícias, citando a agência noticiosa oficial chinesa Xinhua, terminou esta semana, mais propriamente na terça-feira de ontem, a viagem de comboio mais longa da História. 
Foi efetivamente a mais longa viagem ferroviária uma vez concluída no mundo. Um comboio de mercadorias percorreu a distância de 13.052 quilómetros (uma distância superior à que separa o Polo Norte do Polo Sul), com início em Yiwu, leste da China, e com términus em Madrid, a cidade capital de Espanha.
A Viagem demorou 21 dias, tendo o comboio saído de Yiwu no dia 18 de novembro com 40 vagões, transportando 1.400 toneladas de mercadorias, nomeadamente enfeites de Natal.
A seu tempo, o referido comboio regressará de Madrid à China, mas com presunto, azeite, vinho e outros produtos espanhóis – e não meros enfeites de Natal.
Considerada como possível alternativa ao transporte marítimo, que demora o dobro do tempo, a viagem ferroviária atravessa oito países: China, Cazaquistão, Rússia, Bielorrússia, Polónia, Alemanha, França e Espanha. Que pena não ter Portugal a ligação a Madrid por TGV ou, ao menos, a linha de alta prestação para mercadorias!
Desta vez, a locomotiva e a tripulação mudaram ao longo do percurso e foi necessário efetuar varias paragens para adaptar as diversas carruagens do comboio, sobretudo ao nível do rodado às diferentes bitolas da via férrea. 
A presidente da Câmara de Madrid, Ana Botella, citada pela Xinhua, compara esta viagem e eventos subsequentes, do género, a um dos feitos importantes dos Descobrimentos Ibéricos, a Rota da Seda, protagonizada pelo espanhol, feito português, São Francisco de Xavier e pelo beirão português Padre João Rodrigues, ambos membros da Companhia de Jesus. Diz a autarca madrilena: “É uma nova `Rota da Seda` para o século XXI, com a diferença de que, agora, o comércio é nos dois sentidos”. Nesse ponto tem plena razão.
No entanto, poderia muito bem recordar a façanha de Fernão de Magalhães, português ao serviço de Carlos I, que liderou uma tripulação predominantemente espanhola (embora constituída por elementos de várias nacionalidades, nomeadamente o italiano Antonio Pigafetta) que, demandando as ilhas das especiarias, conhecidas por Molucas, empreendeu a primeira viagem marítima de circum-navegação, concluída por uma reduzida frota comandada pelo basco Sebastián del Cano. Fernão de Magalhães tinha ficado morto em combate, na ilha de Cebu, nas Filipinas.
E talvez não lhe ficasse mal, em tempos de paz ibérica e no âmbito do projeto europeu, referir a viagem-mãe das gestas marítimas da época moderna, a viagem de Cristóvão Colombo à América, convicto de que atingira a Índia pelo ocidente ou a descoberta do caminho marítimo para Índia por Vasco da Gama e companheiros, logo seguida da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. E aqui se radica não uma rota da seda ou do chá, mas a nova rota das especiarias, sem intermediários, então melhor alternativa à rota terrestre, dificultada comercialmente por inúmeros intermediários, tornando o produto extremamente caro e, consequentemente, muito rarefeito no Ocidente.
A autarca madrilena salienta aparentemente bem a diferença de que “agora o comércio é nos dois sentidos”. Tal asserção é verdadeira só parcialmente. Dantes, a seda ou as especiarias eram também trocadas por produtos ocidentais (panos, chapéus, ferro…), além do ouro. A diferença reside no facto de então os chineses, japoneses, indianos e quejandos não demandarem sua sponte a Península ibérica (como o tinham feito fenícios gregos e cartagineses, por mar, ou vândalos suevos, alanos e outros, predominantemente por terra), embora a armada portuguesa e a espanhola trouxessem consigo alguns aborígenes. Mais: os portugueses e espanhóis, quando começaram aquelas empreendedoras viagens, não encontravam lá outros espanhóis e outros portugueses.
Hoje, chega o comboio a Madrid ou se chegar a Lisboa, já cá temos, desde há muitos anos, japoneses, indianos, indonésios e chineses (muitos deles cá estabelecidos comercialmente). Vieram quase todos de avião. Não sei se ou quantos terão chegado de navio. E têm aqui os seus negócios habitualmente a preço da China, compraram empresas estratégicas e fazem disseminar a ideia do filho único, porque a sua população é assustadoramente multiplicável. Só que, entre nós, não se chega à situação da família assaz reduzida por imperativo do poder político, mas pelo cerceamento laboral e social, bem como pelo excesso de mercantilismo que rodeia o casamento e a educação dos filhos! Para a China se deslocalizaram métodos de produção e transformação de matérias-primas, umas vezes com perfeição, como no caso dos tapetes de Arraiolos, outras vezes, não tanto, como no caso das bandeiras nacionais do “eurofutebol 2004”, cujos castelos supostamente portugueses não eram, para bom observador, mais que minipagodes chineses.
Também se deslocalizaram para a China algumas empresas, que afinal tiveram de regressar, porque a mão de obra barata (salários baixíssimos e condições de trabalho desumanas) não deu resultado em termos de ganho compensatório. Em todo o caso, serviu essa deslocalização de pretexto para extinguir postos de trabalho da lusa gente. E os chineses estão em todo o lado, mesmo no campo dos vistos Gold, pelos quais, a troco de um reduzido número de postos de trabalho e/ou da compra de um imóvel, se ganha, comprando, o direito à nacionalidade portuguesa ou, ao menos, o direito de residir em Portugal, fazendo de conta que efetivamente residem.
***
Referi acima “enfeites de Natal” vindos da China de comboio, que não são propriamente prendas ou prendinhas para crianças. Os chineses têm de tudo, mesmo artigos religiosos de gosto ocidental. Tudo faz a China para sobreviver, se afirmar perante o mundo e emergir economicamente. Todavia, não creio que aconteça, a não ser por ironia do destino ou da natureza das coisas, que de lá, daquele Oriente, surja o Sol das Nações nem mesmo o ternurento Pai Natal, amigo das crianças e dos indefesos – ao menos enquanto a lucidez da democracia e o humanismo dos direitos humanos não imperarem.
É que o Natal é dom, gratuitidade, libertação. E a gratuitidade não se compadece com o baratismo, mas com a relação afetuosa que dá às pessoas inestimável valor e às coisas o preço justo. O dom não é prodigalidade perdulária, mas oferta ou oblação do que é bom, nosso. E a libertação resulta da verdade que diz vida, gera vida e revoluciona vida.
Esperamos o Natal do Oriente, mas do Oriente próximo do homem. Há dois mil anos, era o Oriente belemita, recetivo perante o grande Oriente donde procederam os magos com incenso, ouro e mirra – a significar a adoração a Deus, a solidariedade com o Rei, a confraternização com o Homem. Estes homens indicam exemplarmente a obrigação da marcha do homem de qualquer parte do mundo ao encontro de Deus que toma o rumo do homem.
Hoje, o Natal surge no coração do homem aberto ao transcendente e à importante pequenez do outro. Hoje, o Natal rebenta no seio do povo genuíno, que não se deixa contaminar pela maldade, que mostra a cultura da sua ancestralidade a catapultá-lo audazmente para o futuro promissor, embora desconhecido, e pratica a tolerância para com todos os que pretendem ser iguais e diferentes. Hoje, o Natal acontece aqui ou ali, também na China, no Japão, na Índia, Na Rússia ou na Ucrânia, onde e sempre que haja alguém – criança, adolescente, jovem, adulto ou ancião – que aposte em Deus ou aposte verdadeiramente no homem, sobretudo naquele que sofre a pobreza, a solidão ou o abandono, mas quer sentir e exprimir a dignidade de pessoa em relação – a alegria do “nós”.
Venha daí o Natal!

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