sábado, 6 de dezembro de 2014

São Nicolau, o taumaturgo versus Pai Natal

Depois que a reforma do calendário litúrgico a retirou do catálogo universal das celebrações da Igreja Católica Latina, a festividade de São Nicolau fica reservada para a memória celebrativa ad libitum das comunidades que o têm como padroeiro, quer se trate de países quer se trate de paróquias, igrejas e outras instituições e comunidades. Todavia, continua o santo, de finais do século III e primeira metade do século IV, umbilicalmente ligado à quadra natalícia, sobretudo no que ela representa de ternura, partilha e solidariedade.
Promove ondas significativas de encanto, partilha, solidariedade e festa especialmente através da sua versão secular (ou laica) da cativante figura do Pai Natal, que hoje poucos ligam à figura de São Nicolau, mormente aqueles e aquelas que encaram as prendas natalícias como um objeto mercantilista e consumista ou uma forma de obrigação social e familiar.
Ora, se as prendas constituírem um meio e reforço da relação familiar e das relações de amizade não interesseira e, sobretudo, se contribuírem para a realização da justiça distributiva e social em favor dos mais carenciados, esquecidos, marginalizados e abandonados, fazendo jus à plena manifestação da caridade de Cristo, então estamos no rumo natalino e, por isso, na rota de São Nicolau, de modo que, em torno do presépio, todos tenham vez e voz.
A sincatábase divina (a vinda complacente e pressurosa de Deus à Terra) incarnada na figura de Jesus Cristo não terá outro sentido que não seja, pela força anímica do Espírito Santo, a construção da fraternidade genuína, colocando os homens desavindos e dispersos no caminho da unidade em Cristo, que levará inevitavelmente a Deus, Pai de toda a consolação e fonte do amor e da vida.
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São Nicolau de Myra (região de Lícia, na Turquia), apelidado de taumaturgo físico e espiritual, também conhecido como São Nicolau de Bari, é o padroeiro da Rússia, Grécia e Noruega. É o patrono dos guardas noturnos na Arménia e dos coroinhas na cidade de Bari, na Itália, onde estarão guardados os seus restos. É, ainda, considerado padroeiro dos estudantes, barqueiros, pescadores, descarregadores de lenha, marítimos, tanoeiros, cervejeiros, viajantes e peregrinos. Invoca-o, ainda, quem perde injustamente uma causa e quem se queixa contra os ladrões.
O culto de São Nicolau está radicado nos países da Europa Central, conhecendo-se também em Guimarães (Portugal) um significativo sinal da sua implantação na Península Ibérica.
Assim, é que, em Portugal, é padroeiro das paróquias de: Pinela e Salsas (do concelho de Bragança); Cabeceiras de Basto (do concelho de Cabeceiras de Basto); Amendoeira e Cortiços (do concelho de Macedo de Cavaleiros); São Nicolau (do concelho de Marco de Canaveses); São Nicolau (do concelho de Mesão Frio); Saldanha (do concelho de Mogadouro); Matela (do concelho de Penalva do Castelo); Sete Cidades (do concelho de Ponta Delgada); São Nicolau (do concelho do Porto); Pena Lobo (do concelho de Sabugal); Santa Maria da Feira (do concelho de Santa Maria da Feira); São Nicolau (do concelho de Santarém); Carrazedo de Montenegro, Lebução e Vales (do concelho de Valpaços); Mazarefes (do concelho de Viana do Castelo); e Candedo (do concelho de Vinhais). É ainda padroeiro da paróquia de São Nicolau (do concelho de Lisboa), em parceria com São Julião.
É comummente aceite que São Nicolau, bispo de Myra, é proveniente de Patara (cidade portuária muito movimentada), na Ásia Menor (Turquia), onde teria nascido, de pais muito abastados, na segunda metade do século III (provavelmente a 15 de março de 270) e falecido no dia 6 de dezembro de 342, em Myra, também da Turquia.
Quando os pais de Nicolau morreram, o tio aconselhou-o a viajar até à Terra Santa. Durante a viagem, deu-se uma violenta tempestade que acalmou logo que Nicolau começou a rezar (foi por isso que se terá tornado também o padroeiro dos marinheiros e dos mercadores). Ao voltar daquela viagem, optou por ir morar para Myra (sudoeste da Ásia menor) e doar todos os seus bens, vivendo na situação de absoluta pobreza voluntária.
Quando o bispo de Myra da altura morreu, os anciãos da cidade não sabiam quem eleger como seu sucessor, pelo que remeteram a decisão para a vontade de Deus. Na noite seguinte, o ancião mais velho sonhara com Deus a determinar que o primeiro homem a entrar na igreja no dia seguinte seria o novo bispo de Myra. Ora, Nicolau costumava levantar-se cedo para ir rezar ao templo. Foi então assim que, sendo o primeiro homem a entrar na igreja no referido dia, se tornou bispo de Myra.
Sob o império de Diocleciano, Nicolau foi encarcerado por se recusar a negar a fé em Jesus Cristo. Com a subida ao poder de Constantino I, Nicolau volta a enfrentar oposição, mas, desta vez da própria Igreja. Conta mesmo que num debate com outros líderes eclesiásticos, Nicolau se levantara e esbofeteara um dos antagonistas, o que o impedira de permanecer como um líder eclesiástico. O bispo de Myra, porém, não se dá por vencido e permanece atuante, prestando auxílio a crianças e outros necessitados.
Foram-lhe mesmo atribuídos vários milagres, facto de que proveio a sua popularidade em toda a Europa e a sua designação como protetor dos marinheiros e comerciantes, santo casamenteiro e, principalmente, amigo das crianças. Temos dele um grande número de relatos e histórias, sendo, no entanto, difícil distinguir as autênticas das abundantes lendas que germinaram sobre em torno deste santo muito popular, cuja imagem foi um tanto tardiamente relacionada com o Natal e transformada no seu ícone na figura veneranda do “Pai Natal”, um velhinho corado de barba branca, trazendo nas costas um saco cheio de presentes. Inclusivamente ainda é referido como Santa Claus ou St. Nicholas na maior parte dos países da anglofonia.
Tido como acolhedor para com os pobres e principalmente para com as crianças carentes, é o primeiro santo da Igreja de que há memória a preocupar-se sistematicamente com a educação e a moral tanto das crianças como das suas mães.
Algumas Igrejas Ortodoxas, como a Igreja Ortodoxa Russa, honram-no com a celebração litúrgica do último domingo do ano no calendário juliano. Os cristãos católicos e ortodoxos dos ritos copta e bizantino dão-lhe peculiar relevo e a celebração da sua vida e ação pastoral tem grande destaque. O calendário romano e o bizantino celebram o seu dia a 6 de dezembro. A sua devoção difundiu-se na Europa quando as suas relíquias, alegadamente roubadas de Myra por 62 soldados de Bari, e trazidas a salvo subtraídas aos invasores turcos, foram colocadas com grandes honras na catedral de Bari a 9 de maio de 1087. As relíquias eram precedidas pela fama do suposto taumaturgo e pelas cromáticas lendas que circundavam a sua personalidade.
Conta-se que terá conseguido converter hereges salteadores que, ao saquearem a sua igreja, lá encontraram hóstias consagradas e, ao tocá-las, elas viraram a pão comum. Da mais famosa destas lendas consta que uma família de um comerciante falido, portanto, agora muito pobre, não tinha como custear o “dote” para casar as suas três filhas. O pai, desesperado, estava tentado a entregá-las à prostituição. Nicolau, ao ter conhecimento dessa realidade, passou junto da casa do comerciante e lançou um saco de ouro e prata pela janela aberta, que caiu junto da lareira, perto de umas meias que estavam a secar. Assim, o comerciante pôde preparar o enxoval da filha mais velha e dá-la em casamento. Nicolau coisa similar para com as outras duas filhas do comerciante, à medida que estas atingiam a maturidade.
É também atribuído a São Nicolau o dom de ter ressuscitado algumas crianças na sua região (Myra), hoje a localidade de Demre, na Turquia. Muitas são as histórias sobre supostas aparições suas, sendo a mais famosa a do Natal de 1583, na vizinha Espanha, quando, atendendo as orações de umas senhoras, teria provido a que nenhum pobre deixasse de receber o seu pão bento. Os pobres, ao ser-lhes perguntado quem lhes teria dado alimento em meio de um “tão rigoroso e pesado inverno”, terão respondido que foram socorridos por “um senhor de feições muito serenas e mãos firmes”.
São estas lendas religiosas e a sua iconização como Pai Natal que o tornaram muito conhecido, mas são também a razão de não termos uma visão clara sobre a vida do mesmo.
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São Nicolau é igualmente padroeiro dos estudantes. E é nessa condição que é cultuado sobretudo em Guimarães. Pelo menos desde 1664 (ano da construção da Capela de São Nicolau) que existe memória da realização das festas em sua honra, pelos estudantes daquela cidade, também chamados “nicolinos” – estudantes que pouco mais tarde, em 1691, constituíram a Irmandade de São Nicolau, tendo sido aprovados os seus estatutos naquele ano.
Em honra de São Nicolau, padroeiro dos estudantes, realizam-se em Guimarães as Festas Nicolinas, uma das mais antigas celebrações académicas do Mundo, que têm habitualmente início no dia 29 de novembro e têm como seu dia mais importante, precisamente o dia 6 de dezembro (dia tradicionalmente dedicado a São Nicolau, por ser o dia do seu falecimento), em que se realizam “As Maçãzinhas”, número nicolino claramente inspirado na lenda de São Nicolau que salvou as filhas do mencionado comerciante.
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O imaginário popular considera, hoje em dia, o Pai Natal (figura laica e ecuménica de São Nicolau) como o homem velhinho e simpático, de aspeto anafado, barba branca e vestido de vermelho, que, vindo do Norte gelado, conduz um trenó puxado por renas, carregado de prendas, e que voa, através dos céus, na véspera de Natal, para distribuir as prendinhas de natal. O Pai Natal passa pela casa de cada uma das crianças bem comportadas (sobretudo das que lhe tiverem escrito a respetiva carta), entrando pela chaminé e depositando os presentes nas árvores de Natal ou nas meias ou sapatinhos pendurados na chaminé da lareira. Este imaginário teve origem num poema intitulado “Um relato da visita de São Nicolau”, de Clement Clark More, ministro episcopaliano, que o escreveu para as suas filhas e que foi publicado pela senhora Harriet Butler, que tomou conhecimento do poema através dos filhos de More e o levou ao editor do Jornal Troy Sentinel, em Nova Iorque, publicando-o no Natal de 1823, sem fazer menção do autor. Só em 1844 é que Clement C. More reclamou a autoria do poema.
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Espera-se que a onda consumista e mercantilista, que tenta asfixiar o Natal, ceda à genuinidade da quadra natalina, gerando a familiaridade fraterna e solidária, que não deixe ninguém de lado.

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