quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

“Os reclusos são como pastores de Belém”

À primeira, achei esquisito o título que encima uma reportagem sobre o Natal de reclusos no Público de hoje, dia 24 de dezembro, a páginas 4 e 5. Porém, depressa percebi o paralelismo.
Os pastores, na cultura judaica no tempo do nascimento de Jesus – sobretudo os pastores das cercanias de Belém, que pernoitavam nos campos, guardando os rebanhos durante noite, como sublinha Lucas 2,8 (não tendo assim acesso às condições da cidade) – eram considerados como pessoas demasiado simples e colocadas à margem.
Ora, quem está privado da liberdade, à espera de julgamento, ou recluso por condenação por via de crimes cometidos, evidentemente que sofre a situação de isolamento, sem possibilidade de movimentação livre (porque, para lá da privação da liberdade, a sensação de vigilância apertada e permanente torna-se asfixiante), sem amigos e, sobretudo, sem família.
Por mais que se proteste a presunção de inocência de quem está preso preventivamente enquanto aguarda julgamento ou decisão se vai ou não a julgamento e, ainda, quem aguarda decisão sobre recurso interposto, na maior parte dos casos, já tem o estigma da condenação da opinião pública. E esse é um enorme fator de marginalização psicossocial.
Aqueles que estão a cumprir pena efetiva sofrem ainda mais o estigma da marginalização, quando não o do ódio, até de familiares e de antigos amigos. Desses não se infere inocência. E quantos não veem o futuro de reinserção totalmente obstruído!
E mais sofrem quando toda a informação badala aos quatro ventos, que também entram nas prisões, diz e rediz que o Natal é a festa da família, o tempo da paz e da liberdade, da fraternidade e da inclusão – quando eles se sentem excluídos, marginalizados e rejeitados.
É certo que os estabelecimentos prisionais costumam organizar a Ceia de Natal para os que têm de passar este momento na prisão. Muitos alinham na iniciativa, enquanto bastantes preferem permanecer na cela para se livrarem do “convívio forçado” de festa, que os faz sofrer mais, e se refugiarem no silêncio e logrando, quem sabe, algum pensamento positivo.
É certo que a alguns é dada a possibilidade de passar o Natal fora da prisão, desde que tenham enquadramento familiar ou equivalente. Mas não dispõe o nosso sistema judiciário do instituto de saída jurisdicional natalícia, embora seja este o momento do ano em que há mais solicitações. O Público refere que “os pedidos vão sendo apreciados durante o ano pelos tribunais de execução de penas ou pelos diretores dos estabelecimentos prisionais, entidades que têm poder de decisão”. Mas a decisão não é possível para todos. Por exemplo, a medida de coação consubstanciada na prisão preventiva não admite esse direito. Apenas pode solicitar para sair por uns dias quem já está condenado mercê de decisão transitada em julgado, “cumpriu um quarto ou um sexto da pena, consoante a duração, não infringiu regras e tem algum enquadramento lá fora”.
O mencionado jornal anota que a Direcção-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais não sabe quantas ceias serão servidas nas cadeias neste dia. No entanto, depois do Natal poderá saber e revelar quantos dos reclusos estiveram fora nestes dias.
Tenha-se em conta que se cifra em 14.148 o número de reclusos em Portugal (dos quais 94% são homens), sendo a maior parte portugueses (82,3%) e estando já condenados 82,9%.
Aos que não podem sair na quadra natalícia resta ainda uma hipótese: pagando, podem almoçar com a família em dia marcado, uma ou duas semanas antes, conforme a lotação da prisão. Também alguns rejeitam tal solução, a qual lhes cria mais problemas psicológicos do que vantagens.
O padre João Torres, responsável pela Pastoral Penitenciária de Braga, verifica existencialmente que “as pessoas sentem mais que têm família”. E observa: “Mesmo que estejam zangados, sabem que têm alguém do outro lado. Há alguém que espera por eles, um pai, uma mãe, uma mulher, um filho. Pior é estar detido e não ter em quem pensar. É horrível. A pior prisão é essa”.
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Por isso, é de saudar toda e qualquer iniciativa que torne a prisão mais humanizada, leve o recluso a sentir-se mais acompanhado, lhe proporcione uma ocupação que o interesse e em que se sinta útil e lhe abra uma perspetiva de futuro.
É usual falar-se do trabalho coordenado pelo Padre Dâmaso Lambers e seus colaboradores sacerdotes e leigos, de todo o painel de capelães e visitadores, da associação “O Companheiro”.
Este ano, o Papa Francisco decidiu enviar o arcebispo D. Konrad Krajewski, esmoler pontifício, à prisão de Rebibbia, em Roma (prisão que Bento XVI visitara em dezembro de 2011), para a celebração, em nome do Sumo Pontífice, de uma Missa no domingo, dia 21. O enviado papal vai distribuir ainda como presente de Natal do Papa o pequeno livro de orações que foi distribuído aos fiéis, após o Angelus do domingo anterior, na Praça de São Pedro.
O referido livro começa com uma frase do Papa, que diz: “Quando rezo, Deus respira em mim...”. Espera-se que o livro faça bem aos 2450 presos (2100 homens e 350 mulheres) que ali estão detidos, acompanhados de 20 filhos menores de 3 anos. Ali trabalham regularmente 6 capelães, coadjuvados por 150 voluntários – esclarece a Rádio Vaticano, segundo a qual, no dia de Natal, os detidos não podem receber visitas das suas famílias ou de outras pessoas de fora.
Entre nós, como releva o Público, o destaque vai para um presépio de 30 mil metros quadrados em construção na paróquia de São Tiago de Priscos, iniciativa da Pastoral Penitenciária de Braga, sob a liderança do já mencionado Padre Torres, e que conquistou o orçamento participativo do município de Braga. Criou-se uma gruta, ergueram-se vários templos; e um dos reclusos queima os restos do presépio do ano passado.
Os reclusos (habitualmente em número de quatro), orientados por um mestre de obras e coadjuvados por centenas de voluntários, construíram, ao longo do ano, estruturas permanentes, em pedra, que serão utilizadas para outros eventos, incluindo um projeto de inclusão social de comunidades ciganas.
Para além do estábulo, que evoca o local do nascimento de Cristo, o ordenamento do espaço contempla uma aldeia romana, uma aldeia judia e um acampamento militar.
Os visitantes encontrarão um diversificado conjunto de homens dos ofícios a laborar, por exemplo: ferreiros a forjar ferro, sapateiros a concertar sandálias, serradores a serrar lenha, tecedeira a tecer, oleiros a amassar o barro, padeiras a amassar a farinha… São 90 cenários e mais de 600 figurantes.
E o presépio apresenta uma novidade – a evocação dos cristãos que hoje são perseguidos sob os mais diversos pretextos, apesar da propalada liberdade e liberdade religiosa. Tal desiderato consegue-se na reconstituição das catacumbas romanas. Diz o padre Torres que, em tempo de “crescente perseguição”, pretende a pastoral bracarense dos reclusos “aprimorar o direito humano à liberdade de religião”.
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Por esta via, conseguem-se vários objetivos:
Proporciona-se a alguns reclusos uma forma de se tornarem visivelmente úteis à comunidade e experimentarem um modo de reinserção social promissora de inclusão laboral. Para satisfazerem as possibilidades das saídas precárias, já dispõem de algum dinheiro (que ganham pelo trabalho) para viagens e compra de prendas paras os miúdos de família, sem terem necessidades de pedir aos familiares e/ou amigos.
Por outro lado, enviam-se sinais positivos à comunidade, como: o de que o Natal é para viver pelo ano todo, já que o trabalho do presépio ocupa os reclusos durante tanto tempo; o do que o Natal tem implicações socioeconómicas, visto que os equipamentos têm outras aplicações e a iniciativa mobiliza cooperações, sinergias e solidariedades; e o de que há valores fundamentais que importa destacar como grandes causas, por exemplo, o do aprimoramento da liberdade religiosa.
Finalmente, palpa-se o sentido genuíno do Natal. Para o Padre Torres, “o Natal não é uma coisa fofinha”. Jesus não nasce num palácio: “nasce no meio do estrume”! A mãe envolve-o em panos e reclina-o numa manjedoura. Se hoje a mãe que deitasse o filho na palha, lá viria a respetiva comissão a tirar-lhe a custódia do filho. Mas naquele tempo, não havia – não podia haver – lugar para eles nas hospedarias. Veja-se como o padre raciocina bem, em termos económicos e sociais, como nos dias de hoje: “Num período de recenseamento, com tanta gente na cidade, ninguém ia aceitar uma grávida. Ia perder negócio. A exclusão nasce aí”. E por outro lado, argumenta com os preceitos bíblicos: “Em nenhuma estalagem lhes abririam a porta. Se fosse uma menina, a estalagem teria de fechar 60 dias para ser purificada. Se fosse um menino, 30. Era um preceito judaico.” (cf Lv 12,2-5).
O Padre Torres faz, como se viu, a analogia com a atualidade, uma analogia pertinente num país empobrecido por tudo, mas em especial pela precariedade. Porém, pela positiva, se “o Natal é uma realidade fria”, ele “deve levar cada um de nós ao encontro do outro”. Para o responsável pela Pastoral Penitenciária de Braga, “o Natal é um exercício de procura do código secreto da felicidade que é gente que se relaciona com gente”.
Cá está: os interesses de Deus ficam salvaguardados cabalmente quando é promovida e respeitada a plena liberdade e os direitos fundamentais do homem: “Eu vi a opressão do meu povo…Pelo que decidi libertá-lo” (Ex 3,7.8).

Os reclusos são como os pastores de Belém. Queremos que não o sejam já pela marginalização, mas pela chamada, como os pastores, à luz da redenção, perante a revelação de Deus no meio da simplicidade que os anjos exaltam como espaço para a Glória nos Céus e Paz na Terra – o espaço da inclusão, a alegria da comunhão!

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