terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A Rafaela no dia de São Nicolau, o bispo das crianças

No passado dia 6 de dezembro, no auditório da Tuna de Mozelos, decorreu a festa de Natal das crianças que frequentam o centro infantil da MACUR, de Rio Meão, instituição que persegue objetivos e desenvolve atividades condicentes com as de movimento de assistência, cultura, urbanismo e recreio.
A festa constou de esmerado espetáculo cénico infantil, lúdica e ternurentamente animado por um empenhado grupo de adultos, e desenvolveu-se num contexto de alegria, prendas natalícias e também o adequado complexo de comes e bebes – cenário em que não faltou a usual árvore de Natal e o tradicional presépio.
É óbvio que esteve presente com o uniforme conhecido o simpático Pai Natal, aqui também em modo feminino, por mais que tentasse disfarçar – a versão secular e ecuménica de São Nicolau, o bispo amigo dos desafortunados e em especial das crianças. Conta-se que o cidadão Nicolau de Patara, filho e órfão de pais abastados, no regresso da Terra Santa, decidiu desfazer-se de todos os seus bens em prol dos pobres, entregando-se à penitência e à oração na cidade de Myra, de que se tornou bispo por disposição da Providência Divina.
Por ocasião do Natal, as crianças pobres recebiam em casa as prendas, em dinheiro ou em géneros, alegadamente de fonte anónima, sabendo muitos que se tratava do bispo Nicolau, aquele que acorria em ajuda nas provações vividas por quem quer que fosse. Depois que se finou neste mundo, as crianças protegidas de Nicolau, o pai dos pobres, continuaram a receber as costumeiras lembranças natalinas, ficando os anónimos sucessores do bispo das crianças epitetados com a significativa denominação de Papá de Natal, graças à beneficência e à quadra temporal. Aquelas crianças ficaram órfãs, mas não deserdadas.
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Porém, tendo já feito reflexão sobre São Nicolau de Patara, de Myra ou de Bari, voltei à ascese e mística do bispo tão firme como generoso por causa da festa, das prendas e do espetáculo, por uma razão especial. É que apareceu pela primeira vez em cena a nossa Rafaela. E, como o espetáculo estava subordinado ao tema aglutinador da alimentação saudável, a menina lá surgiu em palco caraterizada de laranja, bem viva, bonitinha e redondinha – a sugerir os benefícios da laranja para a saúde (correção da acidez no sangue, controlo da pressão sanguínea, combate ao colesterol, melhoria das condições de digestão e de funcionamento intestinal, reforço das defesas do organismo e prevenção/combate de gripes e resfriados). Apesar das duas teimosas lágrimas gordinhas, a Rafaela estava muito gira. Custou-lhe a agarrar a prenda, mas não deixou de ser engraçada e muito. Depois, a festa trouxe muitos aplausos dela e dos meninos e para ela e para os meninos.
Como é natural, a Rafaela é a alegria pressurosa da mãe Eugénia e do pai Ricardo, que dela cuidam com o maior desvelo e sentido de carinho e responsabilidade. E é indubitavelmente o encanto e o mimo dos avós, em cujo elenco me apraz incluir, por todos os motivos, entre os quais sobressai o facto de ela gostar muito de nós. E, sim, é neste presente balançado entre o cuidado e o encantamento, a responsabilidade educativa e o ludismo próprio destas idades que está a assomar o futuro de crescimento, estabilidade e concretização do desígnio e do sonho. Para frente, Rafinha! Também os tombos fortalecem e ajustam a personalidade. O que interessa é caminhar, crescer e ser. Só quero que nunca deixes de gostar da casa da avozinha bem como da minha mão amiga. Xau, miau, sim, Nina!
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Mas falar de Rafaela quase postula um excursus pelo nome que remonta ao contexto hebraico, mormente o da Bíblia do Antigo Testamento.
O nome “Rafaela” começou a ser usado no feminino por contágio com o nome masculino “Rafael”, sendo neste que devemos atentar para chegarmos à etimologia do onomástico. No entanto, Ana Belo, no seu Mil e tal nomes próprios (1997: Arte Plural, edições, pg 207), afirma tratar-se de “um lindo nome, muito usado em Espanha e Itália” e que, segundo a mesma autora, “felizmente, vai crescendo entre nós”.
No hebraico, tínhamos a palavra Refa’ el, que significa “Deus cura” ou “remédio de Deus”. Este vocábulo era então um composto de rafo (cuida, cura, trata) e el (Deus). Com efeito, no Livro de Tobias, vem relatado o modo como o anjo Rafael curou a cegueira do pai de Tobite, Tobias (cf Tb 11,1-15) – com o fel de um peixe, que Tobias apanhou e esventrou. Ao mesmo tempo, com o coração do mesmo peixe, expulsou de casa de Tobias qualquer espírito mau, nomeadamente o demónio Asmodeu, que matara os sucessivos maridos que desposaram Sara. Pôde assim Tobias vir a desposar, sem qualquer perigo de vida, a sobreviva Sara, que ele pretendia. E o anjo identifica-se: “Eu sou Rafael, um dos sete espíritos (anjos) que apresentam as orações dos justos e têm lugar diante da majestade do Senhor” (Tb 12,15). Ora, é porque serve o Senhor que o anjo tem competência para desempenhar missões da parte de Deus junto dos homens.
Na personalidade de Rafael, Ana Belo (id et ib) salienta os atributos de “ambicioso e lutador”, realizando-se em setores de atividade em que “possa dar o melhor de si mesmo”. Procura, apesar de tudo, não assumir “compromissos” desnecessários. Mostra-se “perseverante e muito exigente”, pelo que “leva sempre bastante tempo a atingir o seu objetivo”. A sua desconfiança no amor resulta do sentimento de medo de ser abandonado, situação que “o seu orgulho não toleraria”. É por ser “um animal de hábitos” que habitualmente “está em segurança”.
As personalidades com o nome de Rafael são muito consideradas entre nós. Note-se que a nau de Vasco da Gama no caminho da Índia (1497) era a São Rafael, o protetor do viajante Tobias. Também um dos maiores pintores do Renascimento Italiano se chamou Raffaello Sànzio (1483-1520). A Espanha conta com o poeta Rafael Alberti (1902-1999). E Portugal conta entre os seus melhores ceramistas Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), também desenhador. (cf Orlando Neves, dicionário de nomes próprios, 2002:Notícias Editorial, pg 223).
De Rafaela, a autora acima referenciada diz que é “tenaz e teimosa”. Mas “apresenta-se como uma visionária”. Pode mesmo “exercer as mais árduas profissões sem receio do fracasso”. Pelos vistos, dando-se “mal com a solidão”, ultrapassa-a, adorando “seduzir pelo prazer da vitória”, porém, “quando tocada, é uma apaixonada intensa e constante”.
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O hagiológio cristão conta com uma santa Rafaela, que bem pode considerar-se o anjo tutelar das meninas que dão pelo nome de Rafaela.
Rafaela Maria Porras y Ayllón nasceu no município de Pedro Abad, província de Córdova, em Espanha, a 1 de março de 1850. Dos pais recebeu uma educação cristã, especialmente eficaz porque baseada no exemplo. Rafaela tinha 4 anos quando o pai, Presidente da Câmara de Pedro Abad, resolveu fazer da sua vida uma entrega pessoal ao serviço dos pobres até ao extremo ponto de morrer contagiado pela cólera, pelos vistos, como o rei Dom Pedro V, de Portugal.
A educação materna, mistura de ternura solícita e de exigência suave, fez amadurecer naquela menina os melhores traços  do seu caráter. Chegada à adolescência, a criança precocemente reflexiva, doce e tenaz passou a mostrar-se senhora de si, mas sempre disposta a ceder nos  seus gostos perante os gostos dos outros.
Desde muito jovem decidiu entregar-se completamente a Jesus Cristo. Prova da sua vontade irrevogável foi o voto de castidade que fez aos quinze anos. A morte da mãe – quando ela contava dezanove anos – foi outro momento forte na trajetória da sua entrega  a Deus. Daí em diante, dedicou-se completamente aos mais carenciados  e não havia na povoação necessidade ou dor que ela não consolasse.
Em tudo isto acompanhava-a a sua irmã Dolores, que iria ser também sua inseparável companheira na fundação do Instituto das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. Por caminhos inesperados, as duas irmãs viram-se convertidas em cofundadoras. A 14 de abril de 1877 estabelecia-se em Madrid a primeira comunidade de Escravas, com a aprovação de Leão XIII. Num ambiente de profunda fraternidade, viviam dedicadas ao culto da Eucaristia e à educação cristã de raparigas, principalmente as pobres.
Tendo liderado o Instituto durante dezasseis anos, Rafaela teve de enfrentar a prova mais dolorosa. Por mercê de vários equívocos que surgiram (alguns da parte de sua irmã de sangue e de religião), as suas mais diretas colaboradoras começaram a desconfiar dos seus atos, a pôr em dúvida as suas qualidades e inclusive a sua lucidez. Porém ela, seguindo docilmente o conselho de pessoas sábias, abdicou do múnus de Superiora Geral, a favor da sua irmã. Sem amarguras, críticas e ressentimentos, vendo a mão invisível de Deus que, com amor infinito, modelava o barro da sua vida, aceitou para o resto dos seus dias – aos quarenta e três anos de idade – o sacrifício do “não fazer”.
No dia 6 de janeiro de 1925, no silêncio e na paz de espírito, entregou a alma ao Deus de toda a bondade e entrou na alegria do seu Senhor. Foi beatificada pelo Papa Pio XII, a 18 de maio de 1952, e canonizada pelo Papa Paulo VI, a 23 de janeiro de 1977.
A festa de Santa Rafaela Maria do Santíssimo Sacramento, denominação por que é mais conhecida, graças à sua enorme e intensa devoção eucarística, celebra-se a 18 de maio, data da sua beatificação.
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Por tudo isto, não há de faltar à Rafaela, a nossa Rafinha, nem o cuidado de família e dos amigos nem a proteção do Alto, se houver por bem acolhê-la, sobretudo quando for grande.

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