Em plena oitava do Natal do
Senhor, mais propriamente no domingo seguinte, que este ano caiu a 28 de
dezembro (dia em que, o calendário litúrgico santoral da
Igreja Católica costuma celebrar os Santos Inocentes, mártires às mãos de
Herodes), a liturgia
natalícia festeja a Sagrada Família. Se o Natal (25 de dezembro) calha ao domingo, a festa da
Sagrada família celebra-se no dia 30.
É óbvio que a celebração do Natal
implica a contemplação da Sagrada Família, na qual Jesus nasceu e se
desenvolvia “em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc
2,52). E foi esta a
família, cujos pilares humanos fundamentais, Maria e José, cumpriam todos os
deveres que a Lei (divina e humana) prescrevia. Desde logo,
impôs-se-lhes a observância da lei do recenseamento (cf
Lc 2,1-5), tendo
sido por força da coincidência temporal do cumprimento dessa obrigação legal com
o termo da gravidez de Maria que ocorreu o nascimento de Jesus, em Belém, que
não em Nazaré, onde habitualmente residiam (cf Lc 2,6-18). Oito dias depois, veio a
obrigação da circuncisão e da imposição do nome ao menino e, 40 dias mais
tarde, foi a apresentação do Templo para a purificação (meramente) legal da mãe e o pagamento do
resgate do primogénito, que, segundo a Lei, era pertença do templo do Senhor (cf
Lc 2,21-39). E, aos
doze anos de idade, levaram-no a Jerusalém em peregrinação, registando-se a
perda do menino e o seu encontro discutindo com os doutores, a todos admirando
com as respostas que dava e com as perguntas que fazia (cf
Lc 2,41-51). De José
apenas conhecemos a tribulação quando soube da gravidez da esposa e a
tranquilização aquando da revelação da conceição virginal de Jesus por obra do
Espírito Santo. De resto, apenas a sua intervenção de companhia protetora por
ocasião do Natal, da fuga para o Egito e regresso a Nazaré, da sua profissão e
da sua discrição.
Mateus, por seu turno, envolve
José na missão de Cristo atribuindo-lhe a aposição do nome de Jesus ao menino,
que o anjo atribuía à mãe e que corresponde ao isaítico nome Emanuel, Deus Connosco, e ao Verbo que
se fez carne e habita entre nós (cf Mt 1,25; Lc 1,31; Jo
1,14). Também o
evangelista lhe reconhece o papel de protetor e condutor da família,
designadamente na fuga para o Egito e no regresso à Palestina e recolhimento em
Nazaré (cf
Mt 2,13-15.19-23).
E de Maria também pouco sabemos,
embora saibamos o essencial. É a serva do Senhor e da palavra d’Ele; é a mãe do
Senhor e Aquela que acreditou em tudo o que lhe foi dito da parte do Senhor;
deu à luz o seu filho primogénito, envolveu-o em panos e colocou-o sobre uma
manjedoura (cf Lc 1,38.43.45; 2,6-7). Demais, guardava todas as
coisas (o
que via e ouvia) em
seu coração (cf Lc 2,19.51)
e, mais tarde, avisou-o em Caná, Eles não
têm vinho e aos serventes do casamento, Fazei
tudo aquilo que Ele vos disser (Jo 2,3.5).
É a família cumpridora, que vive
a tribulação (fuga para o Egito, perda do menino), que promove o crescimento
integral familiar. É a família que se nos apresenta como modelar no amor
dedicado, na coesão, na assunção dos deveres e na procura do seu lugar a que
tem direito em terra alheia ou em terra própria, como na intervenção em eventos
sociais e em atos religiosos.
***
Podem alguns pensar que Jesus
Maria e José constituem uma família especial e, sendo sagrada, é uma espécie de
grupo familiar que vive num mundo à parte. Nada disso é verdade, como se
depreende do acima exposto (a não ser o aspeto miraculoso da
conceição divinal do menino Jesus e o aparato angélico) e como a literatura e a
cinematografia hodiernas o testificam. Maria era uma mulher aparentemente
semelhante às outras, com vivência modesta e discreta; José ocupava-se no
mister de carpinteiro, no que foi seguido por Jesus; e Jesus, afora os
episódios no Templo (a
profecia de Simeão, Lc 2,28-33;
e a discussão doutoral, Lc 2,41-51), era um rapaz normal, que
exercia o ofício de carpinteiro como o pai (assim considerado por
todos): Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria…? (Mt 13,55).
O conceito de
família evolui ao longo do tempo. Sem nos perdermos numa análise exaustiva,
convém acertar que ela começou por constituir o clã, o grupo ligado por vínculos de parentesco (consanguinidade e
afinidade) e serviços, que se regia pela batuta da matriarca (mater familias) ou do
patriarca (pater
familias), consoante o tipo de civilização vigente no território e no
tempo. A maior parte das modalidades de
expressão familiar tinha como caraterísticas essenciais a mútua proteção e a
segurança. À sua constituição era inerente a unidade de culto e os liames espirituais,
sendo a sua formação determinada pela necessidade de subsistência e de
afirmação social – vertentes basilares que regulavam as uniões e o número de
filhos.
Na Grécia e na Roma antigas, predominavam as microrreligiões,
tendo a família, portanto, próprio culto, justiça, costumes e tradições. O
culto adotado era da escolha do chefe da família, denominado pater. Não
fazia, pois, sentido falar-se em liberdade de culto como a conhecemos
hoje, notando-se uma nítida sujeição dos membros do clã às ordens do pater.
O casamento romano, de base nitidamente consensual,
fundava-se em acordo, que se devia renovar e permanecer, extinguindo-se quando
cessasse o acordo. Apesar de o casamento ter uma base consensual, cabe
sublinhar que este caráter não era absoluto, tanto que não se permitia a união
de patrícios e plebeus através do casamento. Em caso de coabitação sem a affectio
maritalis, o par patrício/plebeu ligava-se pela união de facto. Sem esta
valoração institucional da relação, não era possível falar-se em casamento.
Para os romanos, o que diferenciava o casamento da mera posse era a affectio
maritalis, de que depois resultava
a affectio para com a prole, de que é exemplo a afeição manifestada por
Marco Túlio Cícero pela esposa e pelos filhos e filhas nas cartas. Assim,
não obstante a afeição ter um cunho marcadamente subjetivo, ela assumia
institucionalmente uma índole objetiva face à imposição impeditiva de mistura
de castas. Graças a tal orientação, a família vincula-se à ideia da contração
das núpcias justas.
Em Roma, o casamento era essencialmente monogâmico, sendo
definido como a união entre homem e mulher com o fim de estabelecer uma
comunhão de vida íntima e duradoura, de que naturalmente resultaria a prole. No
plano jurídico, era um estado de facto que não surgia, como atualmente, da inicial
troca recíproca de consentimento, mas da permanência da união baseada na
intenção de ser marido e mulher e na convivência conjugal. A mulher era
inevitavelmente colocada à disposição do marido, sendo o ingresso da mulher em
cortejo público na casa de seu marido a melhor prova de tal disponibilidade. A
própria linguagem do matrimónio o atesta. Quando a literatura referencia o
matrimónio pelo lado do homem, a expressão é Marius duxit Tertiam in
matrimonium: Mário conduziu Tércia ao matrimónio (lugar e
estado em que ela será “mãe”). Saliente-se
a ótica ativa do varão, que também se exprime na expressão ducere domum uxorem, levá-la como esposa para casa. Porém, quando
se fala do mesmo ato na perspetiva feminil, diz-se: Tertia nupsit Mario: Tércia casou com Mário. Salienta-se a postura
passiva da mulher. O verbo nubere é
da família de nubes (nuvem – que
esconde, cobre, envolve…). Portanto,
Tércia envolveu-se, escondeu-se, cobriu-se para Mário (ela ia com um véu no
rosto, que ele destapava quando ela entrava em casa, como se faz hoje à lápide
nas inaugurações).
A família romana era constituída por dois estratos: o
núcleo, a gens (o que hoje
designaríamos por família efetiva, constituída por consanguíneos e afins), de que só faziam parte os cidadãos, as pessoas
livres (e libertos); e o conjunto das pessoas livres e os servos e
servas. Era a família o conjunto das pessoas sobre quem o chefe detinha
autoridade. Note-se que a palavra familia
(que também
se define como comunidade de serviço) é cognata de
famulus e famula: servo e serva.
Mesmo assim, a evolução histórica de família apontou
no sentido da emergência de novos modos de formação da família, dando espaço até
ao concubinato. O concubinato consistia, em Roma, na convivência more
uxorio, não incestuosa nem adulterina, de homem e mulher não unidos pelo
matrimónio. Era reconhecido pelas leis, desde que as partes não fossem casadas
e não estivessem envolvidas noutros concubinatos. No período clássico, não
produzia efeitos jurídicos, a não ser nalgumas doações à concubina e na
legitimação dos filhos naturais, já no direito de Justiniano – concessões do
direito romano, que embora dissipadas com o tempo, fizeram com que o concubinato
recebesse tratamento mais dignificante, deixando de ficar conexo com a devassidão
e a prostituição. Porém, no Baixo Império, torna-se casamento inferior, embora
lícito. E, com os imperadores cristãos passa a receber reconhecimento
jurídico.
No cristianismo estabelecido nos últimos séculos do
império romano do ocidente, o direito eclesiástico começa a fortalecer-se,
influenciando o direito de família. Ainda assim, o direito primevo não
desconhecia totalmente o concubinato como instituição legal, tendo o Concílio
de Toledo, realizado no ano 400, assumido o concubinato de caráter perpétuo,
que se transformou em sacramento matrimonial, após a sujeição ao respetivo
ritual. Na Idade Média, o conceito de família sofre a influência e determinação
da Igreja. O culto familiar desloca-se para as igrejas e capelas, deixando
o pater de ser o seu sacerdote. A família perde parte das suas
funções e o culto oficial não é mais celebrado pelo patriarca, como dantes. A Igreja
impôs a forma pública de celebração do matrimónio como sacramento e converteu a
família em célula-mãe da Igreja, hierarquizada e organizada a partir da figura
masculina. Ademais, cresce a ideia de que a família deve garantir o amparo aos
membros doentes, inválidos e impossibilitados de prover o próprio sustento, ideia
que hoje se confunde com o dever da provisão de alimentos. Por outro lado, a
assistência implicava também o dever familiar de ajuda moral e psicológica aos seus
membros.
Entretanto, as vicissitudes da modernidade e da
contemporaneidade (guerras, revolução industrial, revolução francesa, movimentos
emancipatórios, fenómeno divorcista, laicização dos Estados com a consequente separação
das Igrejas dos Estados) proporcionam
uma variedade de composição familiar cada vez mais acentuada e sujeita a
destabilização diversificada (duração efémera, destruturada, monoparental,
monossexual, tradicional…). Não obstante,
todos estarão de acordo no atinente às responsabilidades e aos direitos da
família, bem como ao dever do Estado e da Sociedade em a proteger e apoiar. Assim,
cabe à família – célula-base da sociedade – o papel de promover o sustento, o bem-estar
e a segurança dos seus membros, bem como a educação mais elementar dos filhos. Resulta
deste dever/direito tanto a obrigação do Estado e da Sociedade de, através do estabelecimento
e cumprimento de políticas de apoio, facilitar a assunção das responsabilidades
das famílias, como a obrigação de estas cooperarem com as entidades que as
apoiam, as complementam ou acrescentam mais-valia na assunção dos seus encargos.
***
Por sua vez, a Igreja sente-se na obrigação de
contar com as famílias como células-base da ação pastoral (igrejas
domésticas) e de lhes dedicar a atenção que
elas merecem e sobretudo de que elas necessitam, tenham elas a composição e a
estabilidade que a Igreja deseja e propõe, tenham elas outras configurações. Assim
é que tanto o Vaticano II como os sucessivos documentos pontifícios lhes têm
dado abundante espaço doutrinal e reflexivo (nem sempre no sentido mais
plausível, muito menos no sentido mais do agrado de todos). É que é necessário congraçar entre si as diversas
componentes da família: o ideal e o realismo; o amor efetivo e a dedicação
afetiva; a fruição e o labor; a relação e o espaço próprio; a intimidade e a sociabilidade;
a realização familiar e o desígnio pessoal; o serviço à família e o compromisso
profissional. A este respeito, a Igreja Católica tem entre mãos iniciativas de
suma importância; a assembleia extraordinária do sínodo dos bispos, que
decorreu em outubro passado, assembleia sinodal de outubro de 2015 e o Encontro Mundial
das Famílias na cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, também em
2015.
No passado dia
28, antes da recitação do Angelus com
a multidão reunida na Praça de São Pedro o Papa referiu-se às famílias, que
entregou ao patrocínio da Sagrada
Família, que “nos
encoraja a oferecer calor humano”. E salienta o facto de Jesus ser o ponto de
encontro intergeracional, a dimensão da fé familiar centrada em Cristo e os nossos
deveres de solidariedade.
Sobre a família de Nazaré,
Francisco sublinha que, de acordo com o Evangelho de Lucas, Maria e José, 40
dias após o nascimento de Jesus, foram ao templo de Jerusalém, por obediência à
Lei de Moisés, que prescreve a oferta do primogénito ao Senhor (cf Lc 2,22-24). No meio de tantos, esta pequena família, nos
grandes átrios do templo, não chama a atenção, mas não passa despercebida: “dois
anciãos, Simeão e Ana, movidos pelo Espírito Santo, aproximam-se e louvam a
Deus pelo Menino, em quem reconhecem o Messias, luz das nações e salvação de
Israel” (cf. Lc 2,22-38). É o profético “encontro entre dois jovens esposos,
cheios de alegria e de fé pelas graças do Senhor, e dois anciãos, também eles
cheios de alegria e de fé pela ação do Espírito”. É Jesus quem os reúne. “Jesus
é Aquele que aproxima as gerações”. É a fonte do amor que une as famílias e
as pessoas, vencendo toda a desconfiança, isolamento e distância.
Depois, a mensagem da
Sagrada Família é mensagem de fé. Na vida familiar de Maria e José, Deus
é o centro e é-o na pessoa de Jesus. A Sagrada
Família de Nazaré é santa, porque está centrada em Jesus. Quando a família
respira essa atmosfera de fé, possui uma energia que lhe permite “enfrentar as
provas difíceis que lhe surgem, como mostra a experiência da Sagrada Família,
por exemplo, no acontecimento da dramática fuga para o Egito” – provação muito dura.
O Menino com Maria e José
são um ícone familiar simples, mas muito luminoso, numa “luz de misericórdia e
de salvação para o mundo todo, luz de verdade para todo homem, para a família
humana e para cada família”.
Finalmente, o Pontífice
apelou a que a solidariedade não falhe nem diminua, sobretudo com a
família que esteja a passar por situações muito difíceis por causa das doenças,
da falta de trabalho, das discriminações, da necessidade de emigrar, ou das dificuldades
de entendimento e até mesmo da desunião. E confiou “a Maria, Rainha e Mãe da
família, todas as famílias do mundo, para que possam viver na fé, na harmonia, no
apoio mútuo” – invocando “sobre elas a proteção maternal daquela que foi mãe e
filha do seu Filho”.
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