segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Família e Sagrada Família

Em plena oitava do Natal do Senhor, mais propriamente no domingo seguinte, que este ano caiu a 28 de dezembro (dia em que, o calendário litúrgico santoral da Igreja Católica costuma celebrar os Santos Inocentes, mártires às mãos de Herodes), a liturgia natalícia festeja a Sagrada Família. Se o Natal (25 de dezembro) calha ao domingo, a festa da Sagrada família celebra-se no dia 30.
É óbvio que a celebração do Natal implica a contemplação da Sagrada Família, na qual Jesus nasceu e se desenvolvia “em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). E foi esta a família, cujos pilares humanos fundamentais, Maria e José, cumpriam todos os deveres que a Lei (divina e humana) prescrevia. Desde logo, impôs-se-lhes a observância da lei do recenseamento (cf Lc 2,1-5), tendo sido por força da coincidência temporal do cumprimento dessa obrigação legal com o termo da gravidez de Maria que ocorreu o nascimento de Jesus, em Belém, que não em Nazaré, onde habitualmente residiam (cf Lc 2,6-18). Oito dias depois, veio a obrigação da circuncisão e da imposição do nome ao menino e, 40 dias mais tarde, foi a apresentação do Templo para a purificação (meramente) legal da mãe e o pagamento do resgate do primogénito, que, segundo a Lei, era pertença do templo do Senhor (cf Lc 2,21-39). E, aos doze anos de idade, levaram-no a Jerusalém em peregrinação, registando-se a perda do menino e o seu encontro discutindo com os doutores, a todos admirando com as respostas que dava e com as perguntas que fazia (cf Lc 2,41-51). De José apenas conhecemos a tribulação quando soube da gravidez da esposa e a tranquilização aquando da revelação da conceição virginal de Jesus por obra do Espírito Santo. De resto, apenas a sua intervenção de companhia protetora por ocasião do Natal, da fuga para o Egito e regresso a Nazaré, da sua profissão e da sua discrição.
Mateus, por seu turno, envolve José na missão de Cristo atribuindo-lhe a aposição do nome de Jesus ao menino, que o anjo atribuía à mãe e que corresponde ao isaítico nome Emanuel, Deus Connosco, e ao Verbo que se fez carne e habita entre nós (cf Mt 1,25; Lc 1,31; Jo 1,14). Também o evangelista lhe reconhece o papel de protetor e condutor da família, designadamente na fuga para o Egito e no regresso à Palestina e recolhimento em Nazaré (cf Mt 2,13-15.19-23).
E de Maria também pouco sabemos, embora saibamos o essencial. É a serva do Senhor e da palavra d’Ele; é a mãe do Senhor e Aquela que acreditou em tudo o que lhe foi dito da parte do Senhor; deu à luz o seu filho primogénito, envolveu-o em panos e colocou-o sobre uma manjedoura (cf Lc 1,38.43.45; 2,6-7). Demais, guardava todas as coisas (o que via e ouvia) em seu coração (cf Lc 2,19.51) e, mais tarde, avisou-o em Caná, Eles não têm vinho e aos serventes do casamento, Fazei tudo aquilo que Ele vos disser (Jo 2,3.5).
É a família cumpridora, que vive a tribulação (fuga para o Egito, perda do menino), que promove o crescimento integral familiar. É a família que se nos apresenta como modelar no amor dedicado, na coesão, na assunção dos deveres e na procura do seu lugar a que tem direito em terra alheia ou em terra própria, como na intervenção em eventos sociais e em atos religiosos.
***
Podem alguns pensar que Jesus Maria e José constituem uma família especial e, sendo sagrada, é uma espécie de grupo familiar que vive num mundo à parte. Nada disso é verdade, como se depreende do acima exposto (a não ser o aspeto miraculoso da conceição divinal do menino Jesus e o aparato angélico) e como a literatura e a cinematografia hodiernas o testificam. Maria era uma mulher aparentemente semelhante às outras, com vivência modesta e discreta; José ocupava-se no mister de carpinteiro, no que foi seguido por Jesus; e Jesus, afora os episódios no Templo (a profecia de Simeão, Lc 2,28-33; e a discussão doutoral, Lc 2,41-51), era um rapaz normal, que exercia o ofício de carpinteiro como o pai (assim considerado por todos): Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria…? (Mt 13,55).
O conceito de família evolui ao longo do tempo. Sem nos perdermos numa análise exaustiva, convém acertar que ela começou por constituir o clã, o grupo ligado por vínculos de parentesco (consanguinidade e afinidade) e serviços, que se regia pela batuta da matriarca (mater familias) ou do patriarca (pater familias), consoante o tipo de civilização vigente no território e no tempo. A maior parte das modalidades de expressão familiar tinha como caraterísticas essenciais a mútua proteção e a segurança. À sua constituição era inerente a unidade de culto e os liames espirituais, sendo a sua formação determinada pela necessidade de subsistência e de afirmação social – vertentes basilares que regulavam as uniões e o número de filhos.
Na Grécia e na Roma antigas, predominavam as microrreligiões, tendo a família, portanto, próprio culto, justiça, costumes e tradições. O culto adotado era da escolha do chefe da família, denominado pater. Não fazia, pois, sentido falar-se em liberdade de culto como a conhecemos hoje, notando-se uma nítida sujeição dos membros do clã às ordens do pater.
O casamento romano, de base nitidamente consensual, fundava-se em acordo, que se devia renovar e permanecer, extinguindo-se quando cessasse o acordo. Apesar de o casamento ter uma base consensual, cabe sublinhar que este caráter não era absoluto, tanto que não se permitia a união de patrícios e plebeus através do casamento. Em caso de coabitação sem a affectio maritalis, o par patrício/plebeu ligava-se pela união de facto. Sem esta valoração institucional da relação, não era possível falar-se em casamento. Para os romanos, o que diferenciava o casamento da mera posse era a affectio maritalis, de que depois resultava a affectio para com a prole, de que é exemplo a afeição manifestada por Marco Túlio Cícero pela esposa e pelos filhos e filhas nas cartas. Assim, não obstante a afeição ter um cunho marcadamente subjetivo, ela assumia institucionalmente uma índole objetiva face à imposição impeditiva de mistura de castas. Graças a tal orientação, a família vincula-se à ideia da contração das núpcias justas.
Em Roma, o casamento era essencialmente monogâmico, sendo definido como a união entre homem e mulher com o fim de estabelecer uma comunhão de vida íntima e duradoura, de que naturalmente resultaria a prole. No plano jurídico, era um estado de facto que não surgia, como atualmente, da inicial troca recíproca de consentimento, mas da permanência da união baseada na intenção de ser marido e mulher e na convivência conjugal. A mulher era inevitavelmente colocada à disposição do marido, sendo o ingresso da mulher em cortejo público na casa de seu marido a melhor prova de tal disponibilidade. A própria linguagem do matrimónio o atesta. Quando a literatura referencia o matrimónio pelo lado do homem, a expressão é Marius duxit Tertiam in matrimonium: Mário conduziu Tércia ao matrimónio (lugar e estado em que ela será “mãe”). Saliente-se a ótica ativa do varão, que também se exprime na expressão ducere domum uxorem, levá-la como esposa para casa. Porém, quando se fala do mesmo ato na perspetiva feminil, diz-se: Tertia nupsit Mario: Tércia casou com Mário. Salienta-se a postura passiva da mulher. O verbo nubere é da família de nubes (nuvem – que esconde, cobre, envolve…). Portanto, Tércia envolveu-se, escondeu-se, cobriu-se para Mário (ela ia com um véu no rosto, que ele destapava quando ela entrava em casa, como se faz hoje à lápide nas inaugurações).
A família romana era constituída por dois estratos: o núcleo, a gens (o que hoje designaríamos por família efetiva, constituída por consanguíneos e afins), de que só faziam parte os cidadãos, as pessoas livres (e libertos); e o conjunto das pessoas livres e os servos e servas. Era a família o conjunto das pessoas sobre quem o chefe detinha autoridade. Note-se que a palavra familia (que também se define como comunidade de serviço) é cognata de famulus e famula: servo e serva.
Mesmo assim, a evolução histórica de família apontou no sentido da emergência de novos modos de formação da família, dando espaço até ao concubinato. O concubinato consistia, em Roma, na convivência more uxorio, não incestuosa nem adulterina, de homem e mulher não unidos pelo matrimónio. Era reconhecido pelas leis, desde que as partes não fossem casadas e não estivessem envolvidas noutros concubinatos. No período clássico, não produzia efeitos jurídicos, a não ser nalgumas doações à concubina e na legitimação dos filhos naturais, já no direito de Justiniano – concessões do direito romano, que embora dissipadas com o tempo, fizeram com que o concubinato recebesse tratamento mais dignificante, deixando de ficar conexo com a devassidão e a prostituição. Porém, no Baixo Império, torna-se casamento inferior, embora lícito. E, com os imperadores cristãos passa a receber reconhecimento jurídico.
No cristianismo estabelecido nos últimos séculos do império romano do ocidente, o direito eclesiástico começa a fortalecer-se, influenciando o direito de família. Ainda assim, o direito primevo não desconhecia totalmente o concubinato como instituição legal, tendo o Concílio de Toledo, realizado no ano 400, assumido o concubinato de caráter perpétuo, que se transformou em sacramento matrimonial, após a sujeição ao respetivo ritual. Na Idade Média, o conceito de família sofre a influência e determinação da Igreja. O culto familiar desloca-se para as igrejas e capelas, deixando o pater de ser o seu sacerdote. A família perde parte das suas funções e o culto oficial não é mais celebrado pelo patriarca, como dantes. A Igreja impôs a forma pública de celebração do matrimónio como sacramento e converteu a família em célula-mãe da Igreja, hierarquizada e organizada a partir da figura masculina. Ademais, cresce a ideia de que a família deve garantir o amparo aos membros doentes, inválidos e impossibilitados de prover o próprio sustento, ideia que hoje se confunde com o dever da provisão de alimentos. Por outro lado, a assistência implicava também o dever familiar de ajuda moral e psicológica aos seus membros.
Entretanto, as vicissitudes da modernidade e da contemporaneidade (guerras, revolução industrial, revolução francesa, movimentos emancipatórios, fenómeno divorcista, laicização dos Estados com a consequente separação das Igrejas dos Estados) proporcionam uma variedade de composição familiar cada vez mais acentuada e sujeita a destabilização diversificada (duração efémera, destruturada, monoparental, monossexual, tradicional…). Não obstante, todos estarão de acordo no atinente às responsabilidades e aos direitos da família, bem como ao dever do Estado e da Sociedade em a proteger e apoiar. Assim, cabe à família – célula-base da sociedade – o papel de promover o sustento, o bem-estar e a segurança dos seus membros, bem como a educação mais elementar dos filhos. Resulta deste dever/direito tanto a obrigação do Estado e da Sociedade de, através do estabelecimento e cumprimento de políticas de apoio, facilitar a assunção das responsabilidades das famílias, como a obrigação de estas cooperarem com as entidades que as apoiam, as complementam ou acrescentam mais-valia na assunção dos seus encargos.
***
Por sua vez, a Igreja sente-se na obrigação de contar com as famílias como células-base da ação pastoral (igrejas domésticas) e de lhes dedicar a atenção que elas merecem e sobretudo de que elas necessitam, tenham elas a composição e a estabilidade que a Igreja deseja e propõe, tenham elas outras configurações. Assim é que tanto o Vaticano II como os sucessivos documentos pontifícios lhes têm dado abundante espaço doutrinal e reflexivo (nem sempre no sentido mais plausível, muito menos no sentido mais do agrado de todos). É que é necessário congraçar entre si as diversas componentes da família: o ideal e o realismo; o amor efetivo e a dedicação afetiva; a fruição e o labor; a relação e o espaço próprio; a intimidade e a sociabilidade; a realização familiar e o desígnio pessoal; o serviço à família e o compromisso profissional. A este respeito, a Igreja Católica tem entre mãos iniciativas de suma importância; a assembleia extraordinária do sínodo dos bispos, que decorreu em outubro passado, assembleia sinodal de outubro de 2015 e o Encontro Mundial das Famílias na cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, também em 2015.
No passado dia 28, antes da recitação do Angelus com a multidão reunida na Praça de São Pedro o Papa referiu-se às famílias, que entregou ao patrocínio da Sagrada Família, que “nos encoraja a oferecer calor humano”. E salienta o facto de Jesus ser o ponto de encontro intergeracional, a dimensão da fé familiar centrada em Cristo e os nossos deveres de solidariedade.
Sobre a família de Nazaré, Francisco sublinha que, de acordo com o Evangelho de Lucas, Maria e José, 40 dias após o nascimento de Jesus, foram ao templo de Jerusalém, por obediência à Lei de Moisés, que prescreve a oferta do primogénito ao Senhor (cf Lc 2,22-24). No meio de tantos, esta pequena família, nos grandes átrios do templo, não chama a atenção, mas não passa despercebida: “dois anciãos, Simeão e Ana, movidos pelo Espírito Santo, aproximam-se e louvam a Deus pelo Menino, em quem reconhecem o Messias, luz das nações e salvação de Israel” (cf. Lc 2,22-38). É o profético “encontro entre dois jovens esposos, cheios de alegria e de fé pelas graças do Senhor, e dois anciãos, também eles cheios de alegria e de fé pela ação do Espírito”. É Jesus quem os reúne. “Jesus é Aquele que aproxima as gerações”. É a fonte do amor que une as famílias e as pessoas, vencendo toda a desconfiança, isolamento e distância.
Depois, a mensagem da Sagrada Família é mensagem de fé. Na vida familiar de Maria e José, Deus é o centro e é-o na pessoa de Jesus. A Sagrada Família de Nazaré é santa, porque está centrada em Jesus. Quando a família respira essa atmosfera de fé, possui uma energia que lhe permite “enfrentar as provas difíceis que lhe surgem, como mostra a experiência da Sagrada Família, por exemplo, no acontecimento da dramática fuga para o Egito” – provação muito dura.
O Menino com Maria e José são um ícone familiar simples, mas muito luminoso, numa “luz de misericórdia e de salvação para o mundo todo, luz de verdade para todo homem, para a família humana e para cada família”.

Finalmente, o Pontífice apelou a que a solidariedade não falhe nem diminua, sobretudo com a família que esteja a passar por situações muito difíceis por causa das doenças, da falta de trabalho, das discriminações, da necessidade de emigrar, ou das dificuldades de entendimento e até mesmo da desunião. E confiou “a Maria, Rainha e Mãe da família, todas as famílias do mundo, para que possam viver na fé, na harmonia, no apoio mútuo” – invocando “sobre elas a proteção maternal daquela que foi mãe e filha do seu Filho”. 

Sem comentários:

Enviar um comentário