domingo, 21 de dezembro de 2014

Que heróis discretos?!

A Dra. Maria José Capelo Lopes Morgado, procuradora-geral adjunta do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, participou ontem, dia 20, no programa “A propósito”, na SIC Notícias, moderado por António José Teixeira. O programa, que habitualmente tem o figurino de entrevista, ontem desenvolveu-se no sistema de painel em que participaram, além da magistrada, outros intervenientes: a cantora Ana Bacalhau, a jornalista espanhola Virgínia Lopez e o filósofo Viriato Soromenho Marques.
Foi o último programa deste ano e os participantes abordaram questões que os preocupam na atualidade, salientando que a crise em Portugal deixou marcas que vão ficar por muitos anos.
Apreciei as relevantes opiniões de cada um dos questionados pelo moderador. Todavia, o testemunho de Maria José Morgado, a considerar que “o país está esmagado pela pobreza e pelo desemprego”, e os considerandos que teceu sobre o funcionamento da nossa Justiça deixaram-me nalgumas perplexidades. É certo que aquela figura pública, diretamente ligada ao desenvolvimento do processo “Apito Dourado”, que deu praticamente em nada, não perde a oportunidade de se afirmar como uma voz marcadamente ativa contra a corrupção em Portugal. E ontem não foi exceção.
Ao falar da nossa Justiça, fez questão de separar a justiça penal da justiça em geral. Apontou, como é óbvio o dedo à reforma judiciária, de que foi o rosto mais polémico o programa CITIUS, com os problemas que trouxe à face da reforma global e, em especial, ao novo mapa judiciário, nomeadamente no cível.
Entretanto, fez a apologia do estado da nossa justiça neste momento, destacando os resultados alcançados nos últimos tempos, que se devem, no seu entender, ao trabalho dos operadores judiciários, sobretudo ao nível da investigação em que tem relevante desempenho o Ministério Público. E também aludiu à legislação atualmente em vigor. Sobre o desempenho do Ministério Público não se coibiu de falar dos “heróis discretos”.
Não digo que esta ilustre magistrada do Ministério Público não tenha eventualmente razão. Porém, parece-me não dever ser ela a fazer aquele encómio, que sabe assim a autoelogio. Depois, não me parece que a legislação vigente seja substancialmente melhor que a dos anos anteriores e, a sê-lo, ainda não haveria tempo para que os resultados fossem, por esse lado, substancialmente diferentes. E, quanto a resultados, não pode o país sentir-se tão satisfeito como isso, por mais que os governantes digam o contrário. As sociedades de advogados não trabalham para o Governo hoje melhor do que ontem.
A senhora procuradora-geral adjunta esquece a componente política que, queiramos ou não, envolve a ação judiciária. É verdade que, por força da Constituição e das respetivas disposições estatutárias, os tribunais são independentes do poder consensualmente considerado como poder político, cabendo aos juízes a aplicação da lei em concreto, tendo em conta a prova ou não dos factos aduzidos pela acusação e o contraditório apresentado pela defesa, na convicção que o juiz é capaz de formular. Mas o estatuto da magistratura pública em relação ao poder político (falando claro, em relação ao governo) goza da prerrogativa da autonomia, bastante diferente da independência. E o poder executivo tem muitas e muitas formas de cercear ou de facilitar o exercício das funções destes operadores de promoção de justiça em nome do Estado: acusadores públicos ou defensores públicos, conforme os casos. Desde logo, se coloca o facto da maior ou menor liberalidade da disponibilização de meios, para não darmos crédito a rumores frequentes sobre eventuais pressões e agendamento político. Mas as coincidências são em demasia, vindo sempre à tona a negação da influência política, deixando tautologicamente à política o que é da política e à justiça o que é da justiça ou, por outras palavras, pedindo que se deixe que a justiça faça o seu trabalho.
Sempre se reconheceu à investigação judiciária portuguesa destacado mérito ao nível da eficiência, como sempre se estranhou que determinados casos nunca tenham chegado à barra dos tribunais. Porém, a Justiça só funciona satisfatoriamente se logra a tomada de decisões, ou seja, se os processos que devem ir a julgamento lá vão efetivamente, não caindo por efeito da prescrição (sobretudo por recurso a expedientes dilatórios) ou pela má triagem da instrução e/ou do debate instrutório, e se as decisões transitadas em julgado resultam de efetiva prova e se a sua fundamentação não deixa qualquer margem para dúvidas. É certo que a magistrada em referência recusou claramente fugir ao slogan habitual nos últimos tempos de que acabou a impunidade e outros similares, o que revela uma dose sustentável de humildade pública.
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Se tivermos em conta os resultados, o panorama não é muito diferente de antigamente, mesmo no respeitante a processos mediáticos. Quem não se lembra do célebre processo das FP 25, em que houve, com decisão transitada em julgado, uns condenados a prisão efetiva e outros absolvidos? Ou do processo movido contra Leonor Beleza, que não chegou a ir a julgamento, mas mereceu o livro de Proença de Carvalho, com prefácio de Mário Soares? Ou do processo em que efetivamente foi condenado o ex-Secretário de Estado da Saúde Costa Freire? Isto, para não falarmos do processo “Casa Pia”, tornado nitidamente justiça-espetáculo e de conclusões assaz duvidosas.
Em tempos, sucedeu o caso de um arguido indiciado de crimes graves que, ouvido pelo tribunal em Leiria, a população se preparava para o linchar e ainda o insultou. No entanto, a PSP, como por encanto, fez pacífica e rapidamente dispersar a multidão. Hoje, o pessoal junta-se em torno dos tribunais e aplaude despudoradamente os arguidos com o mesmo à vontade com que os insulta em circunstâncias similares, sejam eles figuras públicas (vg: Sócrates), sejam cidadãos comuns (vg: Manuel Palito).
Pegou moda a detenção mediática de figuras públicas em frente das câmaras televisivas. Não se compreende que a presença dos repórteres resulte de mera coincidência. E os casos abundam. Recordo-me, a título de exemplo, de Paulo Pedroso, na própria AR, sendo Rui Teixeira o juiz de instrução criminal; Duarte Lima, filho e sócio; Ricardo Salgado, presidente do BES/GES; e José Sócrates, ex-primeiro-ministro.
Já muitos escreveram e muito sobre a necessidade ou não de tais detenções, sobretudo com o aparato de que se revestiram, como se escreveu sobre o não conhecimento dos fundamentos das medidas de coação, sobretudo aquelas que se concretizaram na prisão preventiva. E é sempre de comparar como é que uns a podem substituir por uma caução pecuniária ou em garantia bancária e outros não. Tal é, por exemplo, o caso do Presidente do BES/GES cuja gestão terá provocado um efeito muito mais devastador que os arguidos nos vistos Gold ou o ex-primeiro-ministro. Depois, os jornais, apesar do segredo de justiça, tudo publicam desde que pese contra os detidos, mas estes não podem dar entrevistas, não têm acesso aos termos do processo respetivo. E as restrições proibitivas são habitualmente tomadas por uma competente entidade administrativa ouvindo o juiz (?). Como? Não é a decisão do juiz que se sobrepõe às demais?
Depois, quanto a resultados finais, os casos mediáticos que presentemente agitam a opinião pública ainda não têm decisões transitadas em julgado: uns nem sequer foram ainda a instrução; outros não chegaram a julgamento; e os que foram objeto de julgamento ainda estão na fase de recurso.
É certo que foram desmanteladas redes, foram investigadas altas figuras públicas e algumas constituídas como arguidos, algumas das quais já condenadas (embora em fase de recurso). Mas a justiça penal portuguesa não apanhou nenhum cidadão em pleno exercício de cargo político / governativo, o que magistrados portugueses conseguiram fazer em Timor-Leste.
De resto, como dantes, alguns processos chegam ao fim de forma inglória. É o caso dos submarinos, cujo processo arquivado (parece que os crimes, a terem sido cometidos efetivamente, teriam já prescrito) porque nada se conseguiu saber do destino dos dinheiros, apesar de se saber que foram mesmo entregues. Mas já o processo das contrapartidas não conseguira saber do rasto dos documentos desaparecidos do Ministério da Defesa Nacional. Paulo Portas, apesar da baladação da sua participação no caso, saiu ileso destes processos, como Sócrates o saiu do processo “Free Port” e do processo “Face Oculta”. A diferença parece estar no facto de, ao tempo, estas eminentes figuras públicas se encontrarem no exercício de funções governativas.
Ademais, parece que o tribunal que acordou a condenação de Duarte Lima terá escrito em determinado momento que em relação ao crime X não seria atribuída uma pena menos pesada para que não se desse à sociedade um sinal de laxismo do tribunal. Eu pensava, como o disse Clara Ferreira Alves no programa “Eixo do Mal”, salvo erro a 13 de dezembro pp, que os juízes se limitavam a ajustar a lei à pena e a pena ao crime provado, independentemente do que a comunidade viesse a pensar. O juiz não se move pela prova irrefutável, pela lei e pela retidão de consciência?
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Sim, a investigação funciona. A PJ é constituída por heróis discretos, muitas vezes sem a abundância de meios. Mas há efetivamente erros e este avolumam-se a jusante, no estrito processo sub iudice. E não se exige que não se erre, mas que o erro se emende logo que nitidamente apontado. E não vale a pena cantar a pax in terra como se hoje fosse melhor do que ontem, graças à atual ministração da Justiça, nem pode ser a Comunicação Social a ficar com os louros de transformar a nossa justiça de meramente formal em justiça mais material. 

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