A Dra. Maria José Capelo Lopes Morgado,
procuradora-geral adjunta do Departamento de Investigação e Ação Penal de
Lisboa, participou ontem, dia 20, no programa “A propósito”, na SIC Notícias, moderado por António José
Teixeira. O programa, que habitualmente tem o figurino de entrevista, ontem
desenvolveu-se no sistema de painel em que participaram, além da magistrada,
outros intervenientes: a cantora Ana Bacalhau, a jornalista espanhola Virgínia Lopez e o
filósofo Viriato Soromenho Marques.
Foi o último programa deste ano e
os participantes abordaram questões que os preocupam na atualidade, salientando
que a crise em
Portugal deixou marcas que vão ficar por muitos anos.
Apreciei as relevantes opiniões
de cada um dos questionados pelo moderador. Todavia, o testemunho de Maria José
Morgado, a considerar que “o país está esmagado pela pobreza e pelo desemprego”,
e os considerandos que teceu sobre o funcionamento da nossa Justiça deixaram-me
nalgumas perplexidades. É certo que aquela figura
pública, diretamente ligada ao desenvolvimento do processo “Apito Dourado”, que
deu praticamente em nada, não perde a oportunidade de se afirmar como uma voz
marcadamente ativa contra a corrupção em Portugal. E ontem não foi exceção.
Ao falar da nossa
Justiça, fez questão de separar a justiça penal da justiça em geral. Apontou,
como é óbvio o dedo à reforma judiciária, de que foi o rosto mais polémico o programa
CITIUS, com os problemas que trouxe à
face da reforma global e, em especial, ao novo mapa judiciário, nomeadamente no
cível.
Entretanto, fez a apologia do
estado da nossa justiça neste momento, destacando os resultados alcançados nos últimos
tempos, que se devem, no seu entender, ao trabalho dos operadores judiciários,
sobretudo ao nível da investigação em que tem relevante desempenho o Ministério
Público. E também aludiu à legislação atualmente em vigor. Sobre o desempenho
do Ministério Público não se coibiu de falar dos “heróis discretos”.
Não digo que esta ilustre
magistrada do Ministério Público não tenha eventualmente razão. Porém, parece-me
não dever ser ela a fazer aquele encómio, que sabe assim a autoelogio. Depois,
não me parece que a legislação vigente seja substancialmente melhor que a dos
anos anteriores e, a sê-lo, ainda não haveria tempo para que os resultados
fossem, por esse lado, substancialmente diferentes. E, quanto a resultados, não
pode o país sentir-se tão satisfeito como isso, por mais que os governantes
digam o contrário. As sociedades de advogados não trabalham para o Governo hoje
melhor do que ontem.
A senhora procuradora-geral
adjunta esquece a componente política que, queiramos ou não, envolve a ação
judiciária. É verdade que, por força da Constituição e das respetivas disposições
estatutárias, os tribunais são independentes do poder consensualmente considerado
como poder político, cabendo aos juízes a aplicação da lei em concreto, tendo
em conta a prova ou não dos factos aduzidos pela acusação e o contraditório apresentado
pela defesa, na convicção que o juiz é capaz de formular. Mas o estatuto da magistratura
pública em relação ao poder político (falando claro, em relação ao governo)
goza da prerrogativa da autonomia, bastante diferente da independência. E o
poder executivo tem muitas e muitas formas de cercear ou de facilitar o exercício
das funções destes operadores de promoção de justiça em nome do Estado:
acusadores públicos ou defensores públicos, conforme os casos. Desde logo, se coloca
o facto da maior ou menor liberalidade da disponibilização de meios, para não
darmos crédito a rumores frequentes sobre eventuais pressões e agendamento
político. Mas as coincidências são em demasia, vindo sempre à tona a negação da
influência política, deixando tautologicamente à política o que é da política e
à justiça o que é da justiça ou, por outras palavras, pedindo que se deixe que
a justiça faça o seu trabalho.
Sempre se reconheceu à investigação
judiciária portuguesa destacado mérito ao nível da eficiência, como sempre se
estranhou que determinados casos nunca tenham chegado à barra dos tribunais. Porém,
a Justiça só funciona satisfatoriamente se logra a tomada de decisões, ou seja,
se os processos que devem ir a julgamento lá vão efetivamente, não caindo por
efeito da prescrição (sobretudo por recurso a expedientes dilatórios) ou pela
má triagem da instrução e/ou do debate instrutório, e se as decisões transitadas
em julgado resultam de efetiva prova e se a sua fundamentação não deixa
qualquer margem para dúvidas. É certo que a magistrada em referência recusou
claramente fugir ao slogan habitual
nos últimos tempos de que acabou a
impunidade e outros similares, o que revela uma dose sustentável de humildade
pública.
***
Se tivermos em conta os
resultados, o panorama não é muito diferente de antigamente, mesmo no respeitante
a processos mediáticos. Quem não se lembra do célebre processo das FP 25, em
que houve, com decisão transitada em julgado, uns condenados a prisão efetiva e
outros absolvidos? Ou do processo movido contra Leonor Beleza, que não chegou a
ir a julgamento, mas mereceu o livro de Proença de Carvalho, com prefácio de Mário
Soares? Ou do processo em que efetivamente foi condenado o ex-Secretário de Estado
da Saúde Costa Freire? Isto, para não falarmos do processo “Casa Pia”, tornado nitidamente
justiça-espetáculo e de conclusões assaz duvidosas.
Em tempos, sucedeu o caso de um arguido
indiciado de crimes graves que, ouvido pelo tribunal em Leiria, a população se preparava
para o linchar e ainda o insultou. No entanto, a PSP, como por encanto, fez pacífica
e rapidamente dispersar a multidão. Hoje, o pessoal junta-se em torno dos
tribunais e aplaude despudoradamente os arguidos com o mesmo à vontade com que
os insulta em circunstâncias similares, sejam eles figuras públicas (vg: Sócrates),
sejam cidadãos comuns (vg: Manuel Palito).
Pegou moda a detenção mediática de
figuras públicas em frente das câmaras televisivas. Não se compreende que a
presença dos repórteres resulte de mera coincidência. E os casos abundam.
Recordo-me, a título de exemplo, de Paulo Pedroso, na própria AR, sendo Rui
Teixeira o juiz de instrução criminal; Duarte Lima, filho e sócio; Ricardo
Salgado, presidente do BES/GES; e José Sócrates, ex-primeiro-ministro.
Já muitos escreveram e muito
sobre a necessidade ou não de tais detenções, sobretudo com o aparato de que se
revestiram, como se escreveu sobre o não conhecimento dos fundamentos das medidas
de coação, sobretudo aquelas que se concretizaram na prisão preventiva. E é
sempre de comparar como é que uns a podem substituir por uma caução pecuniária ou
em garantia bancária e outros não. Tal é, por exemplo, o caso do Presidente do
BES/GES cuja gestão terá provocado um efeito muito mais devastador que os
arguidos nos vistos Gold ou o
ex-primeiro-ministro. Depois, os jornais, apesar do segredo de justiça, tudo
publicam desde que pese contra os detidos, mas estes não podem dar entrevistas,
não têm acesso aos termos do processo respetivo. E as restrições proibitivas são
habitualmente tomadas por uma competente entidade administrativa ouvindo o juiz
(?). Como? Não é a decisão do juiz que se sobrepõe às demais?
Depois, quanto a resultados
finais, os casos mediáticos que presentemente agitam a opinião pública ainda
não têm decisões transitadas em julgado: uns nem sequer foram ainda a
instrução; outros não chegaram a julgamento; e os que foram objeto de julgamento
ainda estão na fase de recurso.
É certo que foram desmanteladas
redes, foram investigadas altas figuras públicas e algumas constituídas como
arguidos, algumas das quais já condenadas (embora em fase de recurso). Mas a justiça
penal portuguesa não apanhou nenhum cidadão em pleno exercício de cargo político
/ governativo, o que magistrados portugueses conseguiram fazer em Timor-Leste.
De resto, como dantes, alguns
processos chegam ao fim de forma inglória. É o caso dos submarinos, cujo processo
arquivado (parece que os crimes, a terem sido cometidos efetivamente, teriam já
prescrito) porque nada se conseguiu saber do destino dos dinheiros, apesar de
se saber que foram mesmo entregues. Mas já o processo das contrapartidas não conseguira
saber do rasto dos documentos desaparecidos do Ministério da Defesa Nacional. Paulo
Portas, apesar da baladação da sua participação no caso, saiu ileso destes
processos, como Sócrates o saiu do processo “Free Port” e do processo “Face
Oculta”. A diferença parece estar no facto de, ao tempo, estas eminentes figuras
públicas se encontrarem no exercício de funções governativas.
Ademais, parece que o tribunal
que acordou a condenação de Duarte Lima terá escrito em determinado momento que
em relação ao crime X não seria atribuída uma pena menos pesada para que não se
desse à sociedade um sinal de laxismo do tribunal. Eu pensava, como o disse
Clara Ferreira Alves no programa “Eixo do Mal”, salvo erro a 13 de dezembro pp,
que os juízes se limitavam a ajustar a lei à pena e a pena ao crime provado, independentemente
do que a comunidade viesse a pensar. O juiz não se move pela prova irrefutável,
pela lei e pela retidão de consciência?
***
Sim, a investigação funciona. A PJ
é constituída por heróis discretos, muitas vezes sem a abundância de meios. Mas
há efetivamente erros e este avolumam-se a jusante, no estrito processo sub iudice. E não se exige que não se
erre, mas que o erro se emende logo que nitidamente apontado. E não vale a pena
cantar a pax in terra como se hoje fosse
melhor do que ontem, graças à atual ministração da Justiça, nem pode ser a Comunicação
Social a ficar com os louros de transformar a nossa justiça de meramente formal
em justiça mais material.
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