sábado, 20 de dezembro de 2014

Desemprego estagiário

A expressão é da deputada Isabel Moreira, do grupo parlamentar do Partido Socialista num complexo de “16 perguntas a um Ministro em fuga”, inserido hoje, dia 20 de dezembro, no site do Expresso.
É curioso o facto de a deputada ter organizado o seu questionário em 16 perguntas – o que me faz lembrar a organização do texto musical perfeito mínimo em quatro quadraturas. Já o mesmo semanário, na sua edição diária on line e na sua edição semanal em papel, elaborou o guião da putativa entrevista que pretende fazer a José Sócrates no estabelecimento prisional de Évora (não autorizada pelo TCIC, facto de que o periódico interpôs recurso contencioso) numa lista de 81 questões – vinte quadraturas + a coda (a coda na poesia dos trovadores chamava-se “finda” e tomava o nome de finda ou cabo na poesia palaciana).
Se a pretendida entrevista a Sócrates tinha em vista a concretização da liberdade de acesso às fontes, do exercício da liberdade de expressão e do direito/dever de informar – sobre aspetos que se prendem com um processo judiciário em que está em causa o cidadão ex-primeiro-ministro – o questionário de Isabel Moreira respeita a uma obrigação que um ministro tem de responder perante o Parlamento e de resolver um problema endémico, que se desejava que se reduzisse ao mínimo, se circunscrevesse a um horizonte de conjuntura e não se tornasse sistémico.
O Ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social foge ao enfrentamento dos deputados, com base numa decisão da maioria parlamentar (PSD/CDS), que votou negativamente o requerimento de 17 de novembro do PS para ouvir o governante. Por isso, o PS teve de recorrer à figura regimental do requerimento potestativo para forçar a ida de Mota Soares à Assembleia da República.
É óbvio que, atendendo ao agendamento das medidas governamentais no setor e às condições de calendário do ano parlamentar (Natal e Ano Novo), quando o Ministro for ao Parlamento, em janeiro, próximo futuro, já estará concluído o “vergonhoso despedimento”, mascarado de requalificação, de cerca de setecentos trabalhadores da Segurança Social.
Mas a deputada socialista não se fica por estas questões, já de si graves. Ela aponta o dedo ao Ministro em vários aspetos: por se recusar a “espetar os pés no Parlamento num debate sobre pobreza e desigualdade na distribuição de rendimentos”; por tentar preencher “o vazio da fuga” através da protagonização de “uma propaganda simplista de culpabilização do passado”, da hipócrita “afirmação de alegria sentida dos portugueses” e da utilização da despudorada “expressão dever cumprido”; e por se emoldurar com as palmas de uma “direita ululante que ignora a realidade dos portugueses concretos que sentem o agravamento das desigualdades a cada minuto das suas vidas”.
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Porém, apesar do crescimento da economia assumido pelas estatísticas e favorecido pela diminuição de custo do petróleo, a vida dos portugueses continua muito problemática. E a parlamentar socialista pergunta com amarga ironia “Como é possível rir perante isto: o diferencial de rendimentos entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres aumentou; o indicador de risco de pobreza subiu para o valor mais alto desde 2005; e as desigualdades agravaram-se?”. E também se interroga sobre “o que teria Mota Soares a dizer sobre um aumento expressivo da taxa de risco de pobreza: mais 6,8% que em 2009”.
Mais: a deputada da bancada de Ferro Rodrigues acusa o “olhar formalista” do governo e seus sequazes sobre a diminuição da taxa do desemprego, quando todos sentem que “o desemprego é uma chaga, é precário, é escravo, é apagado das estatísticas, é estagiário”. Com efeito, todos sabemos que aqueles que emigram, aqueles que entram em regime de estágio profissional (de curta duração) incentivado pelo governo, aqueles para quem o apoio à situação de desemprego chegou ao seu termo ou aqueles que deixam de prestar informação regular da sua situação de desemprego junto do IEFP – todos estes são eliminados das estatísticas de desemprego. Se a isto associássemos todos os casos de ocupação precária de um posto de trabalho, o trabalho dependente disfarçado de prestação de serviços e mesmo algum trabalho escravo (em razão das condições de excesso de tarefa, tempo demasiado prolongado de trabalho, salário mísero…), o panorama ainda pareceria mais gravoso. Não é só o desemprego que é estagiário. Também o é o emprego que as estatísticas sancionam.
Depois, vem o levantamento das contradições a que Isabel Moreira procede com o à vontade que se lhe reconhece e que se discrimina a seguir em versão livre:
– É recorrente a afirmação de que “a direita salvaguardou o Estado social”, mas os cortes na educação colocam-nos ao nível de 1995 – crítica a que poderia ter adicionado que a saúde funciona como todos sabemos e as prestações sociais são cada vez mais magras.
– Mota Soares ousa assumir-se como “um dos promotores do atual debate parlamentar sobre natalidade”, mas a taxa de emigração de jovens portugueses cifra-se nos 8% nos últimos 3 anos.
– O governo não se arrepia quando fala em “coesão social” ante “dois milhares de emigrantes com mais de 80 anos” e após “ter desvalorizado o fator trabalho e de ter induzido a rivalidade social entre classes de trabalhadores” – a que poderia ter acrescentado que os diversos governantes semearam a emulação demolidora das boas relações no interior da mesma classe e setor de trabalhadores e o conflito intergeracional em termos quase irreparáveis.
– Torna-se inexplicável, da parte do Ministro Mota Soares, como é que “cerca de 115 mil pessoas, das quais 40% são crianças”, perderam o RSI desde a entrada em funções do Governo.
– Torna-se inexplicável, da parte do Ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, como é que há “cerca de 1 milhão, cento e quarenta e cinco mil portugueses que não conseguem fazer face, em simultâneo, às despesas mais elementares para se ser um sobrevivente”.
Por fim, Isabel Moreira pergunta “Que estranha democracia é esta”? Sim, é caso para questionar qual o interesse da democracia política, se ela for meramente formal e não produzir uma sociedade mais equitativa, justa, solidária, fraterna e, tanto quanto possível, igualitária. Ou seja, uma democracia política que não leve a uma democracia social e económica torna-se demasiado pobre e inoperante. Por isso, há que mobilizar a massa crítica, o esforço coletivo.
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É certo que não gostei da atitude de Isabel Moreira quando, além de alinhar na tentativa de reposição da subvenção vitalícia dos antigos deputados, num contexto de crise sistémica, manifestou a intenção (fora de tempo, a meu ver) para suscitar a inconstitucionalidade da lei que determinou a suspensão da predita subvenção. Todavia, tenho de apreciar a persistência do seu trabalho parlamentar e a ousadia que manifesta na abordagem das diversas matérias de grande pertinência política e social.

E, nesta quadra natalícia, todo o discurso antipobreza e antimarginalização é mesmo bem-vindo. O Natal tem de ser a festa da inclusão no horizonte da civilização humanizante e do progresso harmonioso. E aqueles que são crentes não se esqueçam de o assumir como o marco fundamental da elevação divinal do homem até junto de Deus e da instauração necessária da fraternidade.

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