A expressão é da deputada Isabel
Moreira, do grupo parlamentar do Partido Socialista num complexo de “16 perguntas a um Ministro em
fuga”, inserido hoje, dia 20 de dezembro, no site do Expresso.
É curioso o facto de a
deputada ter organizado o seu questionário em 16 perguntas – o que me faz
lembrar a organização do texto musical perfeito mínimo em quatro quadraturas. Já
o mesmo semanário, na sua edição diária on
line e na sua edição semanal em papel, elaborou o guião da putativa
entrevista que pretende fazer a José Sócrates no estabelecimento prisional de
Évora (não autorizada pelo TCIC, facto de que o periódico interpôs recurso
contencioso) numa lista de 81 questões – vinte quadraturas + a coda (a coda na
poesia dos trovadores chamava-se “finda” e tomava o nome de finda ou cabo na
poesia palaciana).
Se a pretendida entrevista a
Sócrates tinha em vista a concretização da liberdade de acesso às fontes, do
exercício da liberdade de expressão e do direito/dever de informar – sobre aspetos
que se prendem com um processo judiciário em que está em causa o cidadão
ex-primeiro-ministro – o questionário de Isabel Moreira respeita a uma obrigação
que um ministro tem de responder perante o Parlamento e de resolver um problema
endémico, que se desejava que se reduzisse ao mínimo, se circunscrevesse a um horizonte
de conjuntura e não se tornasse sistémico.
O Ministro da Solidariedade, Emprego e
Segurança Social foge ao enfrentamento dos deputados, com base numa decisão da
maioria parlamentar (PSD/CDS), que votou negativamente o requerimento de 17 de
novembro do PS para ouvir o governante. Por isso, o PS teve de recorrer à
figura regimental do requerimento potestativo para forçar a ida de Mota Soares à
Assembleia da República.
É óbvio que, atendendo ao agendamento das medidas
governamentais no setor e às condições de calendário do ano parlamentar (Natal
e Ano Novo), quando o Ministro for ao Parlamento, em janeiro, próximo futuro,
já estará concluído o “vergonhoso despedimento”, mascarado de requalificação,
de cerca de setecentos trabalhadores da Segurança Social.
Mas a deputada socialista não se fica por
estas questões, já de si graves. Ela aponta o dedo ao Ministro em vários
aspetos: por se recusar a “espetar os pés no Parlamento num debate sobre
pobreza e desigualdade na distribuição de rendimentos”; por tentar preencher “o
vazio da fuga” através da protagonização de “uma propaganda simplista de
culpabilização do passado”, da hipócrita “afirmação de alegria sentida dos
portugueses” e da utilização da despudorada “expressão dever cumprido”; e por se emoldurar com as palmas de uma “direita
ululante que ignora a realidade dos portugueses concretos que sentem o
agravamento das desigualdades a cada minuto das suas vidas”.
***
Porém, apesar do crescimento da economia
assumido pelas estatísticas e favorecido pela diminuição de custo do petróleo,
a vida dos portugueses continua muito problemática. E a parlamentar socialista pergunta
com amarga ironia “Como é possível rir
perante isto: o diferencial de rendimentos entre os 10% mais ricos e os 10%
mais pobres aumentou; o indicador de risco de pobreza subiu para o valor mais
alto desde 2005; e as desigualdades agravaram-se?”. E também se interroga
sobre “o que teria Mota Soares a dizer
sobre um aumento expressivo da taxa de risco de pobreza: mais 6,8% que em 2009”.
Mais: a deputada da bancada de Ferro Rodrigues
acusa o “olhar formalista” do governo e seus sequazes sobre a diminuição da
taxa do desemprego, quando todos sentem que “o desemprego é uma chaga, é
precário, é escravo, é apagado das estatísticas, é estagiário”. Com efeito,
todos sabemos que aqueles que emigram, aqueles que entram em regime de estágio
profissional (de curta duração) incentivado pelo governo, aqueles para quem o
apoio à situação de desemprego chegou ao seu termo ou aqueles que deixam de prestar
informação regular da sua situação de desemprego junto do IEFP – todos estes
são eliminados das estatísticas de desemprego. Se a isto associássemos todos os
casos de ocupação precária de um posto de trabalho, o trabalho dependente disfarçado
de prestação de serviços e mesmo algum trabalho escravo (em razão das condições
de excesso de tarefa, tempo demasiado prolongado de trabalho, salário mísero…),
o panorama ainda pareceria mais gravoso. Não é só o desemprego que é estagiário.
Também o é o emprego que as estatísticas sancionam.
Depois, vem o levantamento das contradições
a que Isabel Moreira procede com o à vontade que se lhe reconhece e que se discrimina
a seguir em versão livre:
– É recorrente a afirmação de que “a
direita salvaguardou o Estado social”, mas os cortes na educação colocam-nos ao
nível de 1995 – crítica a que poderia ter adicionado que a saúde funciona como
todos sabemos e as prestações sociais são cada vez mais magras.
– Mota Soares ousa assumir-se como “um dos
promotores do atual debate parlamentar sobre natalidade”, mas a taxa de
emigração de jovens portugueses cifra-se nos 8% nos últimos 3 anos.
– O governo não se arrepia quando fala em “coesão
social” ante “dois milhares de emigrantes com mais de 80 anos” e após “ter
desvalorizado o fator trabalho e de ter induzido a rivalidade social entre
classes de trabalhadores” – a que poderia ter acrescentado que os diversos governantes
semearam a emulação demolidora das boas relações no interior da mesma classe e
setor de trabalhadores e o conflito intergeracional em termos quase
irreparáveis.
– Torna-se inexplicável, da parte do
Ministro Mota Soares, como é que “cerca de 115 mil pessoas, das quais 40% são
crianças”, perderam o RSI desde a entrada em funções do Governo.
– Torna-se inexplicável, da parte do
Ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, como é que há “cerca de
1 milhão, cento e quarenta e cinco mil portugueses que não conseguem fazer
face, em simultâneo, às despesas mais elementares para se ser um sobrevivente”.
Por fim, Isabel Moreira pergunta “Que estranha democracia é esta”? Sim, é
caso para questionar qual o interesse da democracia política, se ela for
meramente formal e não produzir uma sociedade mais equitativa, justa, solidária,
fraterna e, tanto quanto possível, igualitária. Ou seja, uma democracia política
que não leve a uma democracia social e económica torna-se demasiado pobre e
inoperante. Por isso, há que mobilizar a massa crítica, o esforço coletivo.
***
É certo que não gostei da atitude de
Isabel Moreira quando, além de alinhar na tentativa de reposição da subvenção
vitalícia dos antigos deputados, num contexto de crise sistémica, manifestou a
intenção (fora de tempo, a meu ver) para suscitar a inconstitucionalidade da
lei que determinou a suspensão da predita subvenção. Todavia, tenho de apreciar
a persistência do seu trabalho parlamentar e a ousadia que manifesta na
abordagem das diversas matérias de grande pertinência política e social.
E, nesta quadra natalícia, todo o discurso
antipobreza e antimarginalização é mesmo bem-vindo. O Natal tem de ser a festa
da inclusão no horizonte da civilização humanizante e do progresso harmonioso. E
aqueles que são crentes não se esqueçam de o assumir como o marco fundamental
da elevação divinal do homem até junto de Deus e da instauração necessária da
fraternidade.
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