Os sindicatos que representam os trabalhadores
da TAP apresentaram um pré-aviso de greve para os dias 27 a 30 de dezembro
próximo. Pelos vistos, o motivo da paralisação intentada prende-se com a anunciada
intenção do Governo de privatização daquela empresa pública, prevendo-se a
redução futura de postos de trabalho e a descaraterização da transportadora aérea
nacional.
Os fautores da ideia da privatização,
nos termos em que o Governo a decidiu, entendem que a greve está claramente conotada
com um objetivo político, a que acrescentam prejuízo para os clientes em força
nesta época do ano e na criação de dificuldades laborais aos trabalhadores de outros
setores de atividade, em que sobressai a hotelaria e similares.
O Governo, determinado na prossecução
do seu plano, declara que nenhum movimento de trabalhadores impedirá o programa
de privatização da empresa. O único óbice será a inexistência ou insuficiência de
candidatura à aquisição da transportadora.
Os governantes aduzem como razões
da privatização da empresa: a necessidade da renovação da frota, por demais
envelhecida, para a manutenção dos compromissos assumidos em relação a rotas
aéreas e destinos tanto internos como internacionais (a este nível, sobretudo
para os países da lusofonia e outros onde a comunidade portuguesa tem expressão
significativa); a necessidade de recapitalização aliada à impossibilidade, ditada
por diretiva europeia, de intervenção financeira na gestão das empresas (Não
percebo com é que pôde intervir na Banca!); a necessidade de a empresa crescer;
e a necessidade de uma gestão mais flexível da empresa.
Começo por dizer que, se essa
gestão flexível significa libertação da burocracia estatal, parece que a
solução não reside predominantemente na privatização da empresa, mas sobretudo na
simplificação burocrática do Estado. Mas, se, ao invés, ela tem de passar pela
não observância de regras de recrutamento e seleção, progressão e promoção do pessoal,
critérios de boa gestão dos vários recursos ou programação estratégica, então a
privatização afigura-se excessivamente perigosa.
Os portugueses timoratos e os não
alinhados no neoliberalismo preocupam-se com o futuro da empresa bandeira de
imagem de Portugal e de enorme valia estratégica para a eficácia das relações
económicas do país. Não querem nem a deslocação do centro estratégico da empresa
para fora do país nem a sua atomização e descaraterização – tudo fenómenos ocorridos
com outras empresas também importantes do ponto de vista estratégico nacional (Pense-se,
a título de exemplo, na EDP, REN e PT). Por outro lado, não se conhece caso de
empresa pública privatizada que tenha aumentado o rol de postos de trabalho nem
a estabilidade no emprego – bem pelo contrário campeiam o encerramento de
serviços (balcões!), a dispensa de pessoal, a precarização do trabalho e o
aumento de encargos com os gestores.
O Vice-primeiro-ministro reagiu
às acusações, por parte das oposições, de furor privatizante da parte do atual governo
em relação a diversas empresas e, em especial, à da TAP com o Memorando de Entendimento e com a
decisão de um Conselho de Ministros de um governo do Partido Socialista há
perto de quinze anos.
Quanto ao Memorando, já António Costa e Correia de Campos vieram à praça
pública esclarecer o enquadramento da privatização de empresas previsto no Memorando
em função de um encaixe financeiro já realizado e ultrapassado em muito. É óbvio
que a leitura das transcrições costistas ou campistas não permite o abandono da
ideia da possibilidade de privatização da TAP, mas não permitem a ilação da sua
obrigatoriedade. Em suma, o Memorando
não se pode invocar legitimamente para tudo ou quase tudo.
Relativamente à aludida decisão
do Conselho de Ministros do tempo de Guterres, que me recorde, dada a
impossibilidade decorrente da diretiva europeia de o governo não poder intervir
financeiramente na empresa, a preocupação era o encontro de um parceiro estratégico
que partilhasse com o Estado o desígnio e as responsabilidades estratégicas da
empresa e, por conseguinte, os benefícios.
Também parece imperioso levar a
Comissão Europeia a rever essa diretiva de modo a que um Estado-Membro pudesse
excecionar uma ou outra empresa considerada de real interesse estratégico
fundamental. E é um ponto em que um governo decente terá de prestar especial
atenção.
***
Seria mal que um governo não
tivesse outros argumentos para lá da invocação de que a privatização de uma empresa
tem de se fazer porque há um documento que o prevê ou porque já houve um
governo anterior que também o determinou. Cabe ao governo de cada momento
político, controlado por outros poderes públicos, medir a necessidade de tomar
esta ou aquela decisão, nomeadamente a de privatizar ou não uma empresa, tendo
em conta o interesse nacional de longo prazo e não apenas a necessidade de conjuntura.
E é assim que também o governo de
cada momento político, controlado por outros poderes públicos, deve medir, avaliar
e promover as condições de equilíbrio entre o exercício em concreto do direito
à greve e o interesse geral da coletividade, tendo consciência clara de que, ao
tentar obter-se um benefício a longo prazo, legitimamente se pode causar, por
vezes, forte incómodo temporário: Ubi
commoda ibi incommoda – diziam os romanos. E não vale a pena rotular as
greves de contornos políticos porque elas o serão sempre,ao tentarem alterar a
relação entre dois pilares fundamentais na sociedade política – o patronato (público
ou privado) e os trabalhadores.
***
Mas o que parece desajustado é a
aceitação das meias verdades da parte de quem nos (des)governa. Já o Vice-primeiro-ministro
não esteve bem ao pedir ponderação aos críticos porque um governo anterior
também quis privatizar a TAP, quando o que se passou não foi bem assim ou quando
os ministros envolvidos citam ad libitum
o Memorando.
Porém, o Primeiro-Ministro, ao
defender a sua dama, alinhado numa perspetiva neoliberal conjunta com o
Ministro da Economia, referiu que não conhecia outro sentido para a palavra “vender”
que não seja o de “vender” (Já parecia o Ministro da Educação e Ciência em
tempos no Parlamento!).
Só que um economista, como é o Senhor
Primeiro-Ministro e o Senhor Ministro da Economia, não precisa de fazer qualquer
curso de Direito para saber que um contrato de compra e venda se desenvolve num
complexo de cláusulas em que se pode determinar tudo o que represente a vontade
das partes outorgantes, desde que não seja ilegal ou desconforme com os
objetivos do contrato. Por outro lado, a não ser que o objeto de compra e venda
seja por sua natureza indivisível, não é forçoso que ele se torne objeto de compra
e venda hic et nunc na sua
totalidade. Tal é o caso da venda de quotas, ações e obrigações em sociedades
comerciais.
De resto, como é que o Senhor Primeiro-Ministro
e o Senhor Ministro da Economia garantem que o caderno de encargos da
privatização pode garantir, em termos de irrevogabilidade, a obrigatoriedade de
manutenção do centro de decisão da empresa em território português, o respeito
pelo interesse estratégico nacional ou a caraterização da empresa como bandeira
da lusofonia, entre outras coisas.
É que o Senhor Primeiro-Ministro também
quis ensinar que não se vende uma empresa para ficar com ela. Ora, se isso é
rigorosamente verdade, também é verdade que não se vende uma empresa para
depois ficar a mandar nela, sobretudo em aspetos essenciais.
Por isso, “vender” é mesmo “vender”.
Todavia, vender não é necessariamente vender tudo. O povo diz que “vendam-se os
anéis, mas fiquem os dedos”. Então importa definir, em cada caso, o que se
vende e qual o alcance da venda.
Já agora pede-se ao Governo que
perca menos tempo em ensinar o país e mais em governar o país e que pare de
vender os dedos de Portugal. Governem sem causar dor!
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