domingo, 28 de dezembro de 2014

A festa do apóstolo que Jesus amava

Passa, a 27 de dezembro, a festa de São João, apóstolo e evangelista. Um dos doze apóstolos, era o mais jovem deles, mas pescador como a maior parte deles. Em consonância com o significado hebraico do nome João “graça de Deus”, o apóstolo dá testemunho na sua ação e escritos dessa mesma graça divina que se revela em bondade, amor, gratuitidade, salvação e vida em abundância.
Tendo nascido pelo ano 6 da nossa era, foi convidado, aos vinte anos de idade, juntamente com seu irmão Tiago, conhecido por “o maior”, a acompanhar Jesus (logo a seguir aos irmãos Pedro e André) nas suas deambulações e pregação e, depois, a continuar a sua tarefa missionária, santificadora e pastoral.
É considerado o autor do quarto e último dos evangelhos canónicos, pertencente ao Novo Testamento, o “Evangelho segundo São João”. O seu evangelho difere dos outros três, os chamados sinóticos ou semelhantes (que podem ser analisados em conjunto ou em paralelo), pois a sua narrativa enfoca mais o aspeto espiritual de Jesus, ou seja, a vida e a obra do Mestre com base no mistério da encarnação, que leva coerentemente ao mistério da Redenção.
Escreveu a primeira, a segunda e a terceira Epístola de João, que especificam um conjunto de recomendações práticas com apoio na doutrina sobre o Verbo da Vida. Com o cognome de o “discípulo amado” de Jesus ou o “discípulo que Jesus amava”, foi o único apóstolo que acompanhou Cristo até à sua morte no Calvário. Lá, segundo o Evangelho de João, Jesus, antes de morrer, confiou Maria aos seus cuidados, um dos misteres mais significativos da confiança do Mestre no “apóstolo virgem”.
João Evangelista nasceu em Betsaida, na Galileia. Filho do rico pescador Zebedeu (cf Mc 1,20; Mt 4,18-22; Lc 5,9-10) e de Maria Salomé, uma das mulheres que auxiliaram os discípulos de Jesus e que mais tarde viria a consagrar-se ao serviço do Mestre e de seus continuadores (cf Mc 16,1; At 1,14). Como o seu irmão Tiago foi educado na seita dos zelotes. Tornado discípulo de João Batista, por este seria encaminhado para Jesus (cf Jo 1,35-36) vindo a ser, bem depressa, um dos membros mais ativos do colégio apostólico.
João, Tiago e Pedro e, às vezes, André, foram os privilegiados que participaram do círculo mais íntimo de Jesus. Presenciaram a ressurreição da filha de Jairo e a angústia de Jesus no Jardim das Oliveiras. João e Tiago foram os únicos apóstolos que, tendo solicitado um lugar à direita e outro à esquerda de Cristo, dele receberam a declaração explícita de que beberiam do cálice que Ele ia beber, mas o sentar-se à sua direita ou à sua esquerda, isso competia ao Pai determiná-lo. (Mc 10,35-45). Com Pedro e Tiago, presenciou a transfiguração do Senhor no Tabor (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36). João foi o primeiro a chegar ao sepulcro de Cristo, mas, por deferência para com Pedro, quis que fosse ele a verificar a realidade do túmulo vazio, a primeira pista da Ressurreição. Consciente como estava de que a Pedro, como chefe designado da Igreja pelo seu Fundador, é que competia, em primeira mão, tão importante missão de testemunha do Cristo Redivivo (cf Jo 20,2-8).
Ribeirinho do lago de Tiberíades, apesar de partilhar com o irmão o título de Boanerges (filho do trovão), graças à sua fogosidade juvenil (cf Mc 3, 16-17; Lc 9,53-55), foi um pescador robusto e vigoroso, moço equilibrado e sereno, que soube respeitosamente manter-se em segundo lugar, quando acompanhava Pedro; malgrado a iconografia o representar, por vezes, com um rosto levemente efeminado, foi o homem varonil a quem Jesus confiou vitaliciamente como herança a sua própria mãe (cf Jo 19,27); é o teólogo de altos voos que, sem desligar da terra, sabe elevar-se a tais cumes de elaboração teológica (entra na profundidade do Verbo que Se fez carne, tem a visão dos grandes sinais e da profecia e evidencia a excelência do amor paternal de Deus para connosco a exigir permanente compromisso efetivo e afetivo para com o próximo) como nenhum outro dos hagiógrafos do Novo Testamento.
João Evangelista em sua peregrinação esteve fortemente ligado a Pedro nas atividades iniciais do movimento cristão eclesial, tornando-se um dos principais sustentáculos da Igreja de Jerusalém. Foi o principal apoio de Pedro no Dia de Pentecostes. E após as perseguições sofridas na capital da Judeia, transferiu-se com Pedro para a Samaria, onde desenvolveu uma intensa evangelização (cf At 8,14-25). Mudou-se para Éfeso, onde dirigiu muitas Igrejas e foi em Éfeso que escreveu o quarto Evangelho, o último dos Evangelhos Canónicos. Escreveu também as Epístolas, três cartas com mensagens sobre a vida eterna e a vida da comunhão com Deus através da fé em Cristo.
De acordo com o Livro dos Atos dos Apóstolos, o quinto livro do Novo Testamento, João acompanhou Pedro na catequese dos samaritanos, mas participou no Concílio de Jerusalém aceitando a proposta de Paulo, Barnabé e Tiago da desistência da imposição de práticas judaicas aos neófitos cristãos oriundos do paganismo.
João esteve várias vezes na prisão e foi torturado. Durante o governo do cruel imperador Domiciano, o “apóstolo do amor” foi exilado na ilha de Patmos (Ap 1), no mar Egeu, onde escreveu o Livro do Apocalipse ou Revelação, o último livro da Bíblia, em que narrou as suas visões e descreveu mistérios, predizendo as tribulações da Igreja e o seu triunfo final.
Os primeiros fragmentos do quarto Evangelho (em grego) foram encontrados em papiros no Egito, e muitos estudiosos acreditam que João tenha visitado essa região. Existem testemunhos explícitos e documentação, do século II que comprovam que o texto joânico é uniforme e o seu autor é o apóstolo virgem. Tal é o caso do Cânone de Muratori, de Ireneu e de Eusébio de Cesareia.
Aparece o evangelista representado por Michelangelo na cúpula da Basílica São Pedro, em Roma, por Pacino de Buonaguida, em Florença, por Hans Memling, em Bruges, por Giacomo Jaquerio, na abadia de Santo António de Ranverso, por Carlo Crivelli, no Monte de São Martinho, em Itália, e por Carlo Dolci, em Florença.
Morreu em 103, com a idade de 97 anos (94, segundo alguns) na cidade de Éfeso, onde foi sepultado.
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Mais do que ocuparmo-nos com as questões controversas das hipóteses lendárias que marcam a memória da sua vida ou de discutir se ele é somente o autor global dos escritos que lhe são atribuídos ou se é o seu autor até ao ínfimo detalhe, importa determo-nos no cerne da mensagem de que é portador, para lá do que já ficou dito acima.
O seu Evangelho pretende confirmar na fé em Jesus como Messias e Filho de Deus (20,30-31) os seus destinatários – na sua maioria, os cristãos vindos do paganismo (pois explica as palavras e costumes hebraicos), mas também muitos dos provenientes do judaísmo, os quais sentiam dificuldades e dúvidas acerca da condição divina de Jesus e o apego exagerado às instituições religiosas judaicas que se apresentam como ultrapassadas (1,26-27.29-30; 2,19-22; 7,37-39; 19,36). Ao contrário dos gnósticos docetas, cuja doutrina vem denunciada e rebatida na sua primeira carta, que negavam ter Jesus vindo em carne mortal (1Jo 4,2-3; 5,6-7), João sublinha o realismo da humanidade de Jesus (1,14; 6,53-54; 19,34-35). Por outro lado, o seu texto evangélico compagina um premente apelo à unidade (10,16; 11,52; 17,21-24; 19,23) e ao amor fraterno entre todos os fiéis de Cristo (13,13.15.31-35; 15,12-13) em coerência com a fé no Verbo que se fez carne e habita entre nós.
João entrega-nos a chave da compreensão do mistério teândrico da pessoa e da obra salvífica de Jesus, sobretudo através da evocação das Escrituras: “Investigai as Escrituras (...): são elas que dão testemunho a meu favor” (5,39). Conquanto seja o Evangelho com menos citações veterotestamentárias explícitas, em todo o caso, é aquele que tem mais presente o Antigo Testamento, procurando as mais diversas maneiras (sobretudo através dos discursos – alguns bem longos – às multidões dos judeus) de dele haurir toda a riqueza e profundidade de sentido em favor de Jesus, que cumpre tudo o que acerca do Messias e Filho de Deus estava anunciado por palavras, figuras e símbolos (19,28.30).
Para lá dos temas fundamentais da fé e do amor, da luz e da vida, dos sinais e da hora, o quarto Evangelho apresenta a formulação explícita do mistério da Trindade Santíssima e do mistério da Encarnação do Verbo, o Filho no seio do Pai, o Filho Unigénito, que nos torna filhos (adotivos) de Deus; a doutrina sobre a Igreja, rebanho de Cristo (10,1-18), realidade de muitos membros vitalmente unidos entre si e a Cristo como os sarmentos e a videira (15,1-17), que surge nascendo do lado aberto de Cristo na cruz (19,34-35) e estabelecida sobre Pedro, que protesta o seu amor a Cristo (21,15-17); a doutrina sobre os Sacramentos (3,1-8; 6,51-59; 20,22-23); e o papel de Maria, a “mulher”, nova Eva, Mãe da nova humanidade resgatada (2,1-5; 19,25-27 – de Caná ao Calvário).
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O Novo Testamento inclui três cartas católicas (dirigidas a toda a Igreja) atribuídas a João. A 1.ª sempre foi aceite como escrito inspirado; as dúvidas de autenticidade incidem na 2.ª e na 3.ª (que não são nominalmente dirigidas a toda a Igreja, mas apenas ad sensum), certamente por serem menos conhecidas e utilizadas, dado o seu menor interesse e importância. No entanto, já aparecem no Cânon de Muratori (pelo ano 180).
A 1.ª Carta, escrita para reavivar a fé em Cristo e incentivar o amor aos irmãos, surge como aviso perante a ameaça de erros graves, apresentando fórmulas claras e confissões obrigatórias da fé, como garantia da fé genuína e sinal da ortodoxia (4,1-3). Parece enfrentar os gnósticos, que afirmavam ter um conhecimento direto de Deus e negavam tanto a vinda de Deus “em carne mortal” (4,2) como a identidade entre o Cristo-Deus e o Jesus-homem (2,22) – duas pessoas em Cristo (?). Para eles, o Jesus terreno era mero instrumento de que o Cristo celeste se servira para transmitir a sua mensagem, descendo a Ele por ocasião do Batismo e abandonando-o por ocasião da Paixão; e assim negavam a Encarnação e a morte do Filho de Deus e o seu valor redentor. Daí o ensino categórico de João: o Filho de Deus, “Jesus Cristo, é aquele que veio com água e com sangue; e não só com a água, mas com a água e com o sangue” (5,6); isto é, Deus não abandonou o homem Jesus antes da sua Paixão e Morte.
A força da carta emerge logo do prólogo em que o autor afirma o seu testemunho e o dos outros apóstolos: “o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida…” (1,1). Insiste na filiação divina fruto do amor do Pai (3,1ss) e exige a afetividade e a efetividade do amor ao próximo: “Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele? Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade.” (3,17-18).
A 2.ª Carta é um bilhete dirigido à “Senhora eleita” e a seus filhos (v.1), designação simbólica de uma igreja da Ásia Menor, com designativo similar de uma outra Igreja irmã: Saúdam-te os filhos da tua Irmã eleita” (v.13). O seu escopo é incitar os fiéis à vida cristã e à caridade (“não como quem escreve um mandamento novo, mas aquele que temos desde o princípio”, v 5) e defendê-los da heresia.
A 3.ª Carta é dirigida a Gaio (v.1), um cristão que João anima a continuar a receber em sua casa, como colaborador da causa da verdade, os enviados do apóstolo, que eram mal recebidos, criticados e perseguidos pelo chefe da comunidade local, um tal Diótrefes.
Por fim, o Apocalipse exprime a fé da Igreja do tempo dos discípulos dos Apóstolos (a segunda geração cristã). A doutrina do Corpo Místico (Jo 15,1-8; 1 Cor 12,12-27) assume aqui uma dimensão escatológica: Cristo está no meio dos sete candelabros (1,13) e tem à mão direita as sete estrelas (1,16) – símbolos das sete igrejas, alegoria de toda a Igreja universal; Ele é apresentado no mesmo plano que Javé e com os mesmos atributos: é o Senhor dos senhores e Rei dos reis (17,14; 19,16), Aquele que tem um nome que ninguém conhece (2,17; vd 1,8.18; 2,27; 3,12; 14,1; 15,4; 19,16).
Apesar da conspiração das forças conjugadas de todos os senhores deste mundo, Deus é o único Senhor da História. Por isso, acontecimentos veterotestamentários, como o êxodo, as pragas do Egito, as teofanias, as destruições... servem de pano de fundo a novas intervenções de Deus na História do presente. Nesta nova fase da História, a Igreja aparece como espaço litúrgico onde o Cordeiro está em presença permanente, fazendo da comunidade “o céu” na terra, o que não impede que as forças do Mal estejam em luta constante com ela e com o Cordeiro (2,3.9.10.13; 3,10; 6,9-11; 7,14).
Por isso, o Apocalipse não visa predizer pormenores sobre o futuro da Igreja e da Humanidade, mas, através da sua simbologia típica, conferir a confiança certa e absoluta na bondade de Deus, que Se manifestou em Cristo. E não “fecha” a Bíblia; mas abre diante do crente um caminho de esperança sem fim: “Eu renovo todas as coisas” (21,5) “Eu venho em breve (...). Vem, Senhor Jesus!” (22,7.20).
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Mais do que descansarmos na afirmação de que a revelação oficial terminou com a morte do último apóstolo, talvez seja melhor assumir aqui e agora a vitalidade da revelação, trilhando os caminhos que ela abre e tirando as conclusões práticas das suas exigências. Se Cristo está vivo, há o que O ter como vivo e operante.

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