Na sessão de apresentação de
cumprimentos de Natal dos membros dos seus diversos dicastérios e serviços, o
Papa dirigiu-se à Cúria Romana como tal e através dela, enquanto pequeno modelo
de Igreja, a todos os servidores do Povo de Deus. E assumiu, neste discurso
natalício, a imagem da Igreja como Corpo de Cristo.
Começou por sublinhar, na
essência do Natal, “o acontecimento de Deus que se faz homem para salvar os
homens”. Com efeito, no seu amor, Deus dá-Se-nos a Si mesmo, não se limitando a
dar-nos algo, a enviar-nos um ou mais mensageiros. Desce de Si mesmo e assume-nos
na natureza e pecado para gratuitamente nos revelar a Vida divina, a Graça e o
Perdão. O seu nascimento na gruta da pobreza releva o poder da humildade,
mostrando-nos a luz acolhida, não pelo escol político, económico e social, mas
pelos pobres e simples que esperam a salvação.
Recordando que as pessoas que
trabalham, na Cúria ou espalhadas pelo mundo ao serviço da Santa Sé, da Igreja
Católica, das Igrejas particulares e do Sucessor de Pedro, não são números ou
denominações, mas pessoas, Francisco saúda e agradece o empenho dos servidores
no ativo e pensa com gratidão em quem terminou o serviço por excesso de idade,
assunção de outros papéis em Igreja ou por óbito. E eleva ao Senhor a oração de
ação de graças pelo ano prestes a chegar ao fim, pelos eventos vividos e pelo
bem que Deus nos dispensou através da Santa Sé e formula o pedido de perdão
pelas faltas materializadas em “pensamentos, palavras, atos e omissões”, de
modo a lograr uma boa preparação para o Natal.
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Fixando-se na imagem da Igreja
como o Corpo Místico de Cristo, segundo a formulação de Pio XII e na sequência
da Sagrada Escritura e da tradição patrística, explicita que a sua unidade se
realiza através da pluralidade e diversidade de muitos dons e membros, como
ensina S. Paulo: “Como o corpo é um só e tem
muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem
um só corpo, assim também Cristo” (1 Co 12,12). Por seu turno a Lumen Gentium, do Vaticano II, assegura
que “na estrutura do Corpo de Cristo vigora a diversidade de membros e de ministérios.
É um só o Espírito que para utilidade da Igreja distribui a pluralidade e
diversidade de dons com uma liberalidade conforme à sua riqueza e às
necessidades dos serviços (LG,7; cf 1Co 12,1-11). Daqui se infere que Jesus e a
Igreja formam o Cristo total, ou seja, a Igreja é una com Cristo.
Também a
Cúria, enquanto miniatura modelar da Igreja, tem de funcionar como um corpo
cada vez mais vivo, são, unido em si e com Cristo. São vários os Dicastérios,
os Conselhos, os Ofícios, os Tribunais, as Comissões e os outros numerosos
serviços, com membros provenientes de diversas culturas, línguas e nações.
Porém, são “coordenados por um funcionamento eficaz, edificante, disciplinado e
exemplar.
Ora,
esse corpo dinâmico precisa de se nutrir e curar. Para tanto, a Cúria, como a
Igreja, tem necessariamente uma relação vital, pessoal, autêntica e sólida com
Cristo e com os demais. Caso contrário, o servidor tornar-se-á um burocrata ou
formalista, funcionário, empregado. Como antídoto alimentício e curativo o
Pontífice aponta a oração quotidiana, a participação assídua nos sacramentos (sobretudo a
Eucaristia e a Reconciliação), o contacto quotidiano com a Palavra de Deus e a
espiritualidade traduzida na caridade vivida.
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Sendo
a Cúria (tal como a Igreja) chamada a contínua melhoria e a crescimento em
comunhão, santidade e sabedoria, ela pode sofrer, como qualquer corpo, de
doença, disfunção e enfermidade – fenómenos que dificultam e impedem o
desempenho cabal da missão e serviço.
Assim,
o Papa, inspirando-se no roteiro dos Padres do deserto, apresenta em moldes
atuais um catálogo de 15 doenças e tentações, extensíveis a todos os membros da
Igreja, mas em especial aos da Cúria, mais expostos e de quem se espera mais.
Pode mesmo servir de ajuda à preparação para o sacramento da reconciliação e
para a solenidade do Natal do Senhor.
1. O sentir-se
imortal, imune ou indispensável. Leva à negligência de cuidados e controlos
habituais sobre nós próprios. E um serviço que não se autocritica, não se
ajusta aos novos tempos ou não procura melhorar é um corpo enfermo. Os
cemitérios estão repletos de gente que se julgava imortal e imprescindível –
recorda o Papa, que sugere a reflexão que nos faça reconhecer pecadores e a
dizer do fundo do coração: “Somos servos inúteis. Limitámo-nos a fazer o que
devíamos (Lc
17,10).
2. O
“martismo” (de Marta) ou excesso de atividade. É de recordar que há um
tempo para cada coisa (cf Ecl 3,1-15); que o próprio Cristo também sentiu a necessidade de
repouso (cf
Mc 6,31); e
que a contemplação pode é mais meritória que a atividade excessivamente
fatigante: Maria, que se sentou aos pés de Jesus, “escolheu a melhor parte (cf Lc 10,30-42).
3. A
petrificação mental e espiritual. Coração de pedra e cerviz dura fazem do
servidor uma máquina de práticas e não um homem de Deus. A perda da
sensibilidade, da serenidade interior, da vivacidade e da audácia prejudicam ou
aniquilam mesmo o amor para com Deus e para com o próximo. É, pois, necessário,
contra a passagem do tempo, cultivar de coração os sentimentos de Jesus (cf Fl 2,5-11): sentimentos de
humildade e doação, de disponibilidade e generosidade.
4. A excessiva planificação
e funcionalização. Se o apóstolo tudo planifica meticulosamente e crê que as coisas
assim avançam infalivelmente, torna-se um contabilista ou um mercantilista e
facilmente cai na tentação de condicionar a liberdade do Espírito. Dificilmente
se abre à mudança. Ora, a Igreja deve mostrar-se fiel ao Espírito Santo e não
tentar fazê-lo fiel a si própria, tentando “regulá-lo, domesticá-lo”, pois,
“Ele é frescura, sonho, novidade” e surpresa.
5. A má
coordenação ou a descoordenação. Quando os membros perdem a comunhão entre si
e o corpo diminui na sua harmoniosa funcionalidade, são orquestra que produz
música, mas cujos seus elementos não colaboram, não vivem o espírito de
cooperação e não produzem trabalho coerente. É como se um dos membros do corpo
tivesse a veleidade de dispensar o trabalho dos outros ou quisesse assumir a
direção de uma atividade para a qual não está preparado.
6. O “alzheimer”
espiritual. Esquece-se o núcleo da história da salvação,
da história pessoal com o Senhor, o “primeiro amor” (Ap 2,4). É a perda
progressiva das faculdades espirituais, que torna a pessoa incapaz de atividade
autónoma e dependente de suas visões imaginárias.
7. A rivalidade e da vanglória. Quando o aparato e as insígnias se
tornam o objetivo da vida, ao arrepio das palavras de Paulo de nada se fazer
por vanglória, corremos o risco de viver um falso angelismo, um falso
“misticismo” e um falso “quietismo”, que nos faz “inimigos da Cruz”, ao envaidecermo-nos
da própria ignomínia e ao atermo-nos prazer terreno (cf Fl 3,19).
8. A esquizofrenia existencial. É a duplicidade ou bipolaridade da
vida, “fruto da hipocrisia típica do medíocre e do vazio espiritual progressivo”:
doença “que atinge frequentemente aquele que, abandonando o serviço pastoral,
se limita aos afazeres burocráticos, perdendo, assim, o contacto com a
realidade, com as pessoas concretas”. Chegam farisaicamente a colocar de parte o
que “ensinam severamente aos outros” e vivem também uma vida oculta e até
dissoluta.
9. A murmuração e o mexerico. É doença grave, já denunciada por S.
Paulo (cf Fl 2,14-18), que começa com uma ligeira troca de palavras, mas apoderando-se da
pessoa, a transforma em “semeadora de cizânia” e mesmo “homicida a sangue
frio” da fama de colegas e confrades.
10. A divinização dos chefes. É doença típica dos que, vítimas do
carreirismo e do oportunismo, adulam os Superiores para obterem a benevolência
deles, honrando as pessoas e não a Deus (cf Mt 23,8-12). Mas esta doença pode atingir
também os Superiores, quando cortejam alguns dos seus colaboradores para
lograrem a cúmplice submissão, lealdade e dependência psicológica.
11. A indiferença para com os outros. Acontece “quando alguém pensa apenas
em si mesmo e perde a sinceridade e o calor das relações humanas”. Leva a que,
invejosa ou ciumentamente, se esconda para si mesmo o conhecimento a que se
chegou sobretudo por meios desconhecidos, “ao invés de compartilhar
positivamente com os outros” induzindo ao seu encorajamento.
12. A síndrome da cara funérea. É a doença das “pessoas grosseiras e
sisudas” que julgam que a seriedade consiste nas fingidas feições de melancolia,
de severidade e tratamento dos outros com rigidez, dureza e arrogância. O
apóstolo deve, abandonando a severidade teatral e o pessimismo estéril (muitas
vezes, sintomas de medo e de insegurança), esforçar-se por ser uma pessoa
amável, serena e alegre que transmite alegria por toda parte onde quer se
encontre.
13. A mania da acumulação. Consiste na procura insana e na guarda
avara de bens materiais, não por necessidade, mas só para sentir-se seguro,
preenchendo o vazio existencial do coração. A este propósito, Francisco lembra
que “a mortalha não tem bolsos” (nada de material se leva deste mundo) e que “a
acumulação só pesa e freia inexoravelmente o caminho”.
14. O espírito de capelinha. É a doença de círculo fechado onde a
pertença ao grupo se torna mais forte do que a pertença ao Corpo” e ao próprio
Cristo. Começando com boas intenções, acaba por escravizar, tornando-se o cancro
ameaçador da harmonia do Corpo e causa de escândalo sobretudo para os mais
débeis. Leva à autodestruição; é o mal que atinge a partir de dentro; e, como
diz Cristo, “todo o reino dividido contra si mesmo será destruído” (Lc 11,17).
15. A ânsia do proveito mundano, do
exibicionismo. Acontece quando o apóstolo transforma o serviço em poder e o poder em
mercadoria para obter dividendos humanos ou mais poder. Leva à calúnia, difamação
e descrédito dos outros. “Também esta doença faz muito mal ao Corpo porque leva
as pessoas a justificar o uso de todo meio, contanto que atinja o seu objetivo,
muitas vezes em nome da justiça e da transparência” – refere o Pontífice!
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Trata-se, segundo o Papa, de tentações e
doenças que “são naturalmente um perigo para todo cristão e para toda a cúria,
comunidade, congregação, paróquia, movimento eclesial”, podendo
exprimir-se a nível quer individual quer comunitário. Mais: só o Espírito Santo – a alma do Corpo Místico, como afirma o Credo
Niceno-Costantinopolitano: o Espírito
Santo, Senhor e vivificador – pode curar todas as enfermidades. É Ele que
sustenta todo o esforço de purificação e toda a boa vontade de conversão. É Ele
que faz compreender que todo o membro participa da santificação do corpo ou do
seu enfraquecimento, no âmbito da comunhão dos santos. É Ele o promotor da
harmonia: “Ipse harmonia est”, no dizer
de São Basílio. N’Ele reside o segredo.
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