A cada passo se fala de serviço
público, sem que se tenha estabelecido uma noção consensual sobre o mesmo. Tal
fenómeno, por demais recorrente, recorda-me o princípio escolástico que
estabelece que, previamente a uma discussão se deve esclarecer o sentido dos
termos a utilizar. E isto sucede frequentemente até em muitos dos nossos diplomas
legais. Dou como exemplo o estatuto da carreira docente (ECD), aprovado pelo DL
n.º 139-A/90, de 28 de abril, na redação que lhe foi dada pelo DL n.º 41/2012,
de 21 de fevereiro (e na redação que lhe deu o DL n.º 146/2013, de 22 de
outubro, com o aditamento introduzido pela Lei n.º 7/2014, de 12 de fevereiro),
e a lei de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo (Lei
n.º 25/2008, de 5 de junho).
Quanto a serviço público, se falarmos
de educação, logo se acrescenta que o serviço público não tem necessariamente
de ser prestado através da escola pública. E está em cima da mesa da “Reforma
do Estado” a municipalização da escola, a entrega da escola a professores
independentes e o apoio à privatização do ensino (Não é por mero acaso que se enaltece
a posição preponderante de escolas privadas à cabeça dos rankings de resultados escolares, sem outras variáveis). No
atinente à saúde, é frequente escutarmos o enunciado de que o acesso de todos à
saúde não quer dizer que tenha de ser feito através de um serviço estatal de
saúde. E pululam as parcerias público-privadas em matéria da saúde e segurança social
e inauguram-se mais uns hospitais privados e mais umas IPSS. Não quero dizer
que isto não se deva fazer ou que os princípios não sejam verdadeiros, pelo menos
em parte. O que se torna intolerável é que o Estado pretenda desresponsabilizar-se
das suas obrigações básicas, sobretudo em relação aos mais pobres (o último
recado da ONU a Portugal põe o dedo na ferida), inventando todos os meios para
isso: agravamento das taxas moderadoras; rarefação de pessoal e recursos materiais;
não atendimento de reclamações; aumentando o tempo de espera; encerrando
serviços; sobrecarregando o pessoal com serviços burocráticos inúteis; e por
assim por diante.
Depois, em maré cheia de privatizações,
o Estado capturou a maior parte dos sistemas de proteção na velhice (assume o
encargo acrescido de pensões como contrapartida da transferência de fundos de
pensões de variada proveniência para a alçada do Estado) que ainda estavam a
cargo de privados. Ademais, o Estado passou a arrecadar as contribuições para Segurança
Social dos trabalhadores por conta de outrem e das respetivas entidades
patronais, no setor privado, passando à sua gestão, ao pagamento dos encargos,
às aplicações indevidas e ao lamento sobre a alegada não sustentabilidade da
Segurança Social. E, como não foi assíduo e pontual no pagamento regular das comparticipações
patronais sobre os seus funcionários, optou por artificiosamente gerar um modo
de convergência de pensões do setor privado e do público, fazendo tábua rasa
das diferenças a montante, ignorando legítimas expectativas e até direitos adquiridos.
***
Porém, o enfoque desta reflexão é
o serviço público de televisão. É óbvio que, também no respeitante ao serviço
público de comunicação social, muitas vozes se levantam a clamar que os órgãos de
comunicação social privados também prestam serviço público de informação. Aliás,
há jornais no espectro da comunicação social que são considerados órgãos oficiosos
do poder instituído ou órgãos de referência. Mas a questão levanta-se sobretudo
em rádio e televisão. A cada passo se diz que a RTP, enquanto empresa pública,
tem a obrigação da prestação do serviço público de televisão. Parece que nos
esquecemos de que a RTP abrange o serviço de televisão, mas também o de rádio.
Por outro lado, as estações de televisão privadas (melhor as empresas a quem o
Estado concessionou por longo período de tempo o serviço de televisão) disponibilizam-se
frequentemente à prestação do serviço público de televisão e dizem que até já o
vêm prestando também. Porém, quando insistem especificamente na sua capacidade
de prestação deste serviço público, pretendem duas coisas: que o Estado lhes defina
o serviço público que devem prestar; e que o mesmo Estado que lhes pede esse
serviço lho pague. De outro modo, essas empresas fornecem ainda valioso serviço
público de televisão por duas razões: a necessidade de sobreviver e captar
audiências para outros programas; e o cumprimento da dimensão pública e social
da empresa, independentemente do que se entenda jurídica ou administrativamente
por utilidade pública.
Já quando se equaciona a questão
do serviço público de televisão em relação à RTP, a matéria assume vários contornos.
Desde logo, se questiona qual o sentido e a abrangência do conceito de serviço
público de televisão. Mas esta singela questão prende-se com outras, como: qual
o sentido e abrangência do conceito de serviço público de comunicação social;
qual o sentido e abrangência do conceito estratégico nacional. E estas questões
não são unívocas e não dispõem de um conteúdo sistémica e sustentavelmente
definido e conhecido do grande público.
Por outro lado, levantam-se
problemas que põem a RTP em confronto com as concorrentes privadas. Se arrecada
anualmente uma taxa do audiovisual, retirada do orçamento dos contribuintes, incluído
na conta do fornecimento da eletricidade, pergunta-se que legitimidade a estação
pública invoca para a assunção de compromissos publicitários à semelhança das
privadas. Depois, resta saber que tipo de serviço lhe pode exigir o Estado, que
serviço o Estado deve ou pode pagar-lhe ou se a proibição comunitária de o Estado
apoiar financeiramente as empresas veda o pagamento do Estado pelo serviço
público que a sua empresa presta. E aquilo que mexe com as estações privadas é
a possível e frequente postura da RTP ao fazer emissões de programas em tudo semelhantes
aos das televisões privadas, por exemplo, novelas, concursos, reportagens inusitadas,
etc. Em certa medida, parece ser difícil perceber-se que uma estação pública tenha
legitimidade para concorrer em igualdade ou desigualdade de condições com as
congéneres privadas.
E, voltando à área do serviço
público, é de perguntar que serviço a RTP deve necessariamente prestar permanentemente
e, sobretudo, quando nenhuma das demais estações não prestarem nenhuma das modalidades
essenciais de serviço público, assim como que área ou áreas serão incompatíveis
com o serviço público de televisão. Depois, já se levantou a hipótese de as empresas
do setor se entenderem no estabelecimento de uma plataforma de autorregulação. Demais,
qual será o papel do regulador em matéria de televisão?
***
Recentemente, a RTP está a passar
por uma situação cuja gravidade ainda não percebi nem sei se é para perceber, a
não ser que se trate de questão política. A administração da RTP adquiriu o
direito de transmissão dos jogos da Liga dos Campeões.
Ora, não é a primeira vez que a
estação pública compra futebol. Primeiro, foi a Ministra das Finanças a mostrar
publicamente, embora de forma pouco nítida, o desagrado do Governo. Depois,
veio o Ministro da Presidência. Mas tudo ficou na mesma.
A questão passa por saber-se se a
Administração infringiu o estatuto editorial da RTP e em que condições esta
compra futebolística se enquadra ou não no quadro do serviço público de
televisão. Sem prejuízo do dever de observância de não governamentalização da
empresa, o responsável governativo pela tutela da RTP, ou seja, o representante
do único acionista, deveria solicitar ao órgão de supervisão o acompanhamento da
medida e a verificação da conformidade ou não com o estatuto. Nestes termos,
não parece que o Conselho Geral Independente, órgão de supervisão, devesse antecipar-se
publicamente à decisão da assembleia geral sobre destituição ou manutenção da
administração da RTP. Por outro lado, se o caso foi presente à ERC, na sua
condição de regulador, não vejo por que motivo o parecer desta (para mais
tomado por unanimidade) revista uma natureza meramente consultiva.
Depois, se o Estado é o único
acionista, pergunto-me por que razão a assembleia-geral demora uns trinta dias
a ser convocada e, por outro, se afirma que o Ministro que tutela a Comunicação
Social revelou por comunicado a intenção de destituir a Administração da RTP.
É óbvio que, se a compra do
futebol configura um ato de gestão corrente ou a execução de plano aprovado em
assembleia geral, nem o conselho geral independente nem a tutela têm de tomar conhecimento
prévio do ato, muito menos intrometerem-se. Apenas pode e deve o conselho
verificar a conformidade ou não com o estatuto editorial.
Quanto à necessidade de a empresa
ter de cumprir determinados formalismos comuns a outras empresas, se eles não se
justificam, eles deveriam desaparecer. E, se a lei o impõe, compete propor ao
legislador que a altere. A lei é efetivamente de aplicação geral, mas nada
obsta a que ela trate de modo diferente aquilo que é mesmo diferente.
Mas parece-me que o ponto reside
na falta de uma definição sustentada, detalhada, coerente e consequente do
conceito do serviço público de comunicação social e, em particular, de
televisão. Não quero acreditar que a destituição da Administração vá, ao ralenti, no encalço de Miguel Relvas, o
então membro do Governo que designou o atual Presidente da RTP.
***
Já que abordamos o serviço
público de televisão, muito gostaria de que a RTP não se baralhasse nem nos
baralhasse. Também em serviço público não vale tudo. Quero referir-me ao seguinte:
a RTP está a desenvolver uma bela iniciativa de combate à pobreza, sobretudo a
pobreza infantil, sob o lema “toca a todos”. Porém, não sei por que carga de água
estribilham o lema e episódios de solidariedade similares em obras de ficção
que a mesma empresa pública vem exibindo (nomeadamente “Bem-vindos a Beirais” e
“Água de Mar”). É certo que as novelas têm um poder comunicativo indizível que
pode redundar em poder pedagógico. No entanto, é de não confundir com ficção as
lutas que no terreno se estão a desenvolver pelas grandes causas e com muito
mérito. Pode estar a dar-se ao público um sinal errado. É só isso.
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