Quando o acento da governação se
coloca nas diferenças de estilo ou de modos de desempenho, já que as opções de
fundo não podem ser muito grandes em face das alternâncias que o país político
consegue apresentar ao país real, surgem epifenómenos que fazem lembrar os
milagres de uma determinada localidade do país, que se tornou proverbial. Vou,
neste âmbito, naturalmente ater-me a alguns poucos exemplos e tentar formular
algumas ilações.
Já lá vão os tempos em que
algumas instituições e serviços mudavam regularmente de designação para que as suas
administrações se mantivessem por mais alguns anos em regime de instalação.
Como exemplo, recordo as administrações regionais de saúde e os institutos
politécnicos.
Depois, começámos a ter empresas
e serviços públicos que passaram a ser sociedades anónimas de capitais
inteiramente públicos, algumas das quais passaram a entidades empresariais
públicas. Encerrámos serviços públicos e criámos centros e agrupamentos. Lembro,
por exemplo, os centros hospitalares, os agrupamentos de centros de saúde, os
centros escolares e os agrupamentos de escolas e, neste caso, também as agregações
de agrupamentos.
De direções-gerais fizeram-se
departamentos e institutos públicos. Houve universidades públicas que ficaram
sob o regime de fundações e o Ministério da Educação e Ciência (MEC) esteve
para implodir, porque detinha todos os poderes em matéria da educação e os
exames deviam ser confiados a uma entidade independente externa ao MEC. Ora, o
MEC tem cada vez mais poderes enquanto brada o reforço da autonomia das escolas
(o MEC até dá indicações de serviço por telefone pessoal, SMS e e-mail),
inclusivamente a bolsa de contratação de professores pela escola de autonomia
contratualizada ou em TEIP é controlada a nível central. E a entidade externa
para os exames é o GAVE transformado em IAVE-IP.
A revolução abrilina quis acabar
com os monopólios privados e estabeleceu o monopólio do Estado,
intervencionando e nacionalizando. Mais tarde, pulularam as organizações
privadas pela via da criação ou por via da (re)privatização, algumas vezes
conseguida pelas aquisições e fusões. Grandes empresas viram chegar
paulatinamente o fim de seus dias, alegadamente para se incrementarem as
pequenas e médias empresas e, depois, as microempresas (muitas delas cessaram
no termo da vigência da subsidiodependência a elas afeta, quando não antes, mantendo-se
de pé artificiosamente). E perdurou o Instituto de Participações do Estado.
Depois que o país ficou de tanga,
emergindo do pântano, o primeiro-ministro em exercício emigrou para a Europa e
verificámos que a alternância entre o governo socialdemocrata e o do socialismo
democrático não apresentava diferenças essenciais, mas apenas de estilo. E a
governança praticamente não se distinguia, a não ser nalgumas das matérias de
costumes. A privatização de empresas públicas, bens e serviços continuou e vai
até atingir o limite, com uma lei-quadro de permeio, que não é tida em conta.
Entretanto, ao invés nacionalizaram-se dois bancos, o segundo por via indireta
(um fundo de resolução!) e passaram para a alçada do Estado fundos de pensões
privados, ficando o mesmo Estado com a responsabilidade dos encargos com as respetivas
pensões.
Nos últimos 20 anos,
multiplicaram-se as parcerias público-privadas, os serviços públicos
eclipsam-se, desfazem-se ou vendem-se ao desbarato. Que é feito do desígnio
socialdemocrata, gerador de aumento da produtividade e competitividade e da
melhor distribuição da riqueza produzida, bem como da promoção do Estado de
Bem-estar Social? Em nome da troika, que nem tanto exigia, pelos vistos, passou
a reinar o desígnio do neoliberalismo travestido do alegado pressuposto de que
vivêramos acima das nossas possibilidades (e, sim, uns tantos – bastante poucos
– viveram e vivem acima das possibilidades da média do povo português) e sob o
falso signo da inevitabilidade, pulverizam-se as entidades estratégicas do
país. E por cada cavadela, surge um monstro de minhocas – branqueamento de
capitais, corrupção ativa e passiva (para consecução de benefícios lícitos e
benefícios ilícitos), fraude fiscal, tráfico de influências e quejandos, em
empresários, políticos e detentores de cargos públicos.
As forças políticas da
alternância governativa estiveram de acordo em 10 estádios de futebol TGV, novo
aeroporto internacional de Lisboa e submarinos. Nos estádios nem o número os
distinguiu. O aeroporto tergiversou em localização: Rio Frio, Ota, Alcochete ou
aumento da Portela e adaptação de um aeroporto militar a estrutura para voos low coast. O número de linhas TGV e o
dos submarinos dividiu as hostes políticas. O TGV não vingou e os submarinos
circunscrevem-se a dois, restando os nefandos episódios das contrapartidas.
A atual governança desde os
últimos períodos pré-eleitorais contesta os projetos faraónicos propondo, em
alternativa, o investimento em projetos de bens transacionáveis (Quais?). O
certo é que o projeto de aeroporto está a marinar ou arredado. Entretanto,
outros países captam as rotas transcontinentais e Portugal ficará a ver de
longe os aviões. O TGV ficou para ser substituído por uma via ferroviária de
alta prestação (invenção expressional deste governo). E os comboios de
mercadorias chineses vêm de Yiwu, no leste da China, até Madrid e vice-versa,
ficando Lisboa a ouvi-los apitar ao longe. Apita o comboio, apita o comboio,
mas carrega e descarrega lá em Madrid!
Em vez da regionalização, cuja
matéria foi objeto de uma lei-quadro, mas cuja instituição em concreto foi
rejeitada em referendo, sucedeu-se a propalada descentralização, através das
mais que duas áreas metropolitanas e, agora, pelas comunidades intermunicipais,
que nem se sabe se são ou não autarquias ou meras associações. Mas o poder
central é, na prática, omnipotente. Mesmo os municípios, que dispõem teoricamente
de larga autonomia, muitas vezes, cingem-se a gerir os enlatados que a
administração central lhes remete.
O serviço central dos impostos
passou a Autoridade Tributária e Aduaneira. Foi criada uma direção-geral dos
estabelecimentos escolares. Foram extintas as direções regionais de educação,
mas restam umas DREN que não se sabe bem o que sejam. Criou-se um conselho de
escolas, quando já existia um conselho nacional de educação. Da habilitação
profissional para a docência faz parte obrigatoriamente uma PACC, que não é
universal, de momento. São meros exemplos, mas que mostram quanto vale um Governo
cujo ministro da economia se perde no comentário a taxas e taxinhas e não sabe
das tolerâncias de ponto. Será que também envia o seu dinheiro para a Suíça
para contribuir para a sustentabilidade da nossa economia ou um MEC, doutor em
matemática que aplica fórmula errada? E um Governo cujo Chefe mandou lixar as
eleições, que inventou pateticamente a salsicha da educação, a emigração como
solução e o apelo à impieguice – e que diz coisas erráticas como “quem se lixou
não foi o mexilhão” e ora afirma que os sacrifícios foram feitos por todos ou
que quem mais sofreu foram os bancos – criou um conselho geral independente,
inútil, para a RTP e um conselho de concertação territorial, para, entre outras
coisas, proceder à municipalização da educação pública (quem sabe se também da
saúde e das finanças), talvez porque os professores não tenham querido assumir
a propriedade/concessão das escolas. Para dar sinal de sobriedade, reduziu o
número de ministros, mas governou com um ministro da economia, desenvolvimento
regional, emprego, empreendedorismo, inovação, competitividade, obras públicas,
energia, turismo, transportes e comunicações e com uma ministra da agricultura,
florestas, desenvolvimento rural, mar, ambiente e ordenamento do território (agora
já fez divisões). Enfim…
***
Como escreve Correia de Campos na página 44 do Público de hoje, dia 15, “o Governo não
levanta voo” ou seja, erra ou mascara uma proclamação estatística, seja no
âmbito da emigração e do emprego, seja no da economia. Acrescentemos as
previsões do défice das contas ou das decisões do tribunal Constitucional. E,
tal como António Costa, também o professor catedrático jubilado refere que não
se entende “até com a privatização da TAP”, já que “o Memorando da Troika refere
que o plano tem como objetivo uma antecipação de receitas de
cerca de 5,5 mil milhões de euros até ao final do programa, apenas com
alienação parcial prevista para todas as empresas de maior dimensão”.
É certo que os dois políticos não esquecem que mais adiante o
Memorando admite “ir mais longe, prosseguindo uma alienação acelerada da
totalidade das ações da EDP e da REN, e tem a expectativa de que as condições
de mercado venham a permitir a venda destas duas empresas, bom como da TAP, até
final de 2011”. E, se a política portuguesa desagradar ao Estado chinês, o
verdadeiro dono da EDP e da REN, alegadamente privatizadas em favor de um
Estado, não seremos objeto de boicote em bens essenciais? É o liberalismo ao
serviço do estatismo alheio! Belo, não?!
No entanto, é de duvidosa certeza que a venda total daquelas
grandes empresas, nomeadamente a TAP, não comprometa a identidade da empresa, a
renovação e ampliação da sua frota e a sua vocação estratégica do país, a nível
regional e transcontinental. Talvez nada disto se garanta com a inclusão de
cláusulas adequadas no documento de venda e compra.
Ora, se “o
Governo anterior não se comprometeu a privatizar toda a TAP, mas apenas
parte”, e, se “já se ultrapassou a meta de encaixe para abater à
dívida, a decisão irreversível da venda ficará a dever-se a um desígnio
ideológico de retirar o Estado da economia. Se é aceitável o desiderato de
“menos Estado, melhor Estado”, não é aceitável que o Estado se eclipse de todo
num setor estratégico e num país de economia periférica. O professor citado
entende que, “se houver condições de mercado, nada haverá a opor a que se aliene
parte dela, como previsto”, porém, “aliená-la toda, mesmo que o mercado
oferecesse condições financeiras excecionais, seria pura servidão ideológica”.
E os resultados de tal venda total seriam significativos: desequilibraria a
balança de transações correntes; reduziria em um terço os postos de trabalho; destruiria
“uma das últimas bandeiras de Portugal no mundo”; e, se deslocasse para fora do
país o seu centro de decisão e de operações, induziria a perda de muitos
milhões de receitas fiscais nacionais. Quanto à perda de receitas fiscais, já
estamos habituados a ver o governo a assistir passivamente à deslocalização de
empresas portuguesas ou de interesse português para outros lugares da Europa e do
Planeta. Não sei como ainda não teve a ideia de sortear um automóvel por cada
um dos tais empresários a ver se mantinham a sede de seus grupos empresariais
em Portugal!
Talvez Álvaro Cunhal, se fosse vivo hoje, achasse que tinha razão,
embora por motivos contrários, quando garantiu a Oriana Falacci, “seguramente
que não teremos um Portugal socialdemocrata. Jamais.” (cf João Carlos Espada, in Público,
de hoje, pg 25). E não estamos tão longe da estatolatria como parece: o Governo
faz que ouve; o medo da precariedade e da perda de emprego instalou-se; as
pessoas deixaram de se manifestar; os serviços são controlados ao minuto; as
liberdades são formalmente respeitadas, mas são materialmente atropeladas a
cada passo; a Justiça ou não funciona ou funciona mal. Pode não passar de
pormenor, mas é significativo: dantes, os impressos eram encabeçados pelo
logótipo nacional e SR (Serviço da República) e designação da entidade
respetiva; agora, o logótipo nacional vem secundado da epígrafe “Governo de
Portugal”. Somos funcionários do Governo e não só do Estado ou da coletividade.
Querem melhor protagonismo? E de quem? Do Estado? Não. Do Governo.
Ao endeusamento do capital, que permanece, segue-se o autismo
governamental, que se disfarça em Conselhos, Institutos, Autoridades, etc. já
não sei se devemos bradar “Viva a República!” se “Viva o Governo!”.
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