terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Invenções governativas

Quando o acento da governação se coloca nas diferenças de estilo ou de modos de desempenho, já que as opções de fundo não podem ser muito grandes em face das alternâncias que o país político consegue apresentar ao país real, surgem epifenómenos que fazem lembrar os milagres de uma determinada localidade do país, que se tornou proverbial. Vou, neste âmbito, naturalmente ater-me a alguns poucos exemplos e tentar formular algumas ilações.
Já lá vão os tempos em que algumas instituições e serviços mudavam regularmente de designação para que as suas administrações se mantivessem por mais alguns anos em regime de instalação. Como exemplo, recordo as administrações regionais de saúde e os institutos politécnicos.
Depois, começámos a ter empresas e serviços públicos que passaram a ser sociedades anónimas de capitais inteiramente públicos, algumas das quais passaram a entidades empresariais públicas. Encerrámos serviços públicos e criámos centros e agrupamentos. Lembro, por exemplo, os centros hospitalares, os agrupamentos de centros de saúde, os centros escolares e os agrupamentos de escolas e, neste caso, também as agregações de agrupamentos.
De direções-gerais fizeram-se departamentos e institutos públicos. Houve universidades públicas que ficaram sob o regime de fundações e o Ministério da Educação e Ciência (MEC) esteve para implodir, porque detinha todos os poderes em matéria da educação e os exames deviam ser confiados a uma entidade independente externa ao MEC. Ora, o MEC tem cada vez mais poderes enquanto brada o reforço da autonomia das escolas (o MEC até dá indicações de serviço por telefone pessoal, SMS e e-mail), inclusivamente a bolsa de contratação de professores pela escola de autonomia contratualizada ou em TEIP é controlada a nível central. E a entidade externa para os exames é o GAVE transformado em IAVE-IP.
A revolução abrilina quis acabar com os monopólios privados e estabeleceu o monopólio do Estado, intervencionando e nacionalizando. Mais tarde, pulularam as organizações privadas pela via da criação ou por via da (re)privatização, algumas vezes conseguida pelas aquisições e fusões. Grandes empresas viram chegar paulatinamente o fim de seus dias, alegadamente para se incrementarem as pequenas e médias empresas e, depois, as microempresas (muitas delas cessaram no termo da vigência da subsidiodependência a elas afeta, quando não antes, mantendo-se de pé artificiosamente). E perdurou o Instituto de Participações do Estado.
Depois que o país ficou de tanga, emergindo do pântano, o primeiro-ministro em exercício emigrou para a Europa e verificámos que a alternância entre o governo socialdemocrata e o do socialismo democrático não apresentava diferenças essenciais, mas apenas de estilo. E a governança praticamente não se distinguia, a não ser nalgumas das matérias de costumes. A privatização de empresas públicas, bens e serviços continuou e vai até atingir o limite, com uma lei-quadro de permeio, que não é tida em conta. Entretanto, ao invés nacionalizaram-se dois bancos, o segundo por via indireta (um fundo de resolução!) e passaram para a alçada do Estado fundos de pensões privados, ficando o mesmo Estado com a responsabilidade dos encargos com as respetivas pensões.
Nos últimos 20 anos, multiplicaram-se as parcerias público-privadas, os serviços públicos eclipsam-se, desfazem-se ou vendem-se ao desbarato. Que é feito do desígnio socialdemocrata, gerador de aumento da produtividade e competitividade e da melhor distribuição da riqueza produzida, bem como da promoção do Estado de Bem-estar Social? Em nome da troika, que nem tanto exigia, pelos vistos, passou a reinar o desígnio do neoliberalismo travestido do alegado pressuposto de que vivêramos acima das nossas possibilidades (e, sim, uns tantos – bastante poucos – viveram e vivem acima das possibilidades da média do povo português) e sob o falso signo da inevitabilidade, pulverizam-se as entidades estratégicas do país. E por cada cavadela, surge um monstro de minhocas – branqueamento de capitais, corrupção ativa e passiva (para consecução de benefícios lícitos e benefícios ilícitos), fraude fiscal, tráfico de influências e quejandos, em empresários, políticos e detentores de cargos públicos.
As forças políticas da alternância governativa estiveram de acordo em 10 estádios de futebol TGV, novo aeroporto internacional de Lisboa e submarinos. Nos estádios nem o número os distinguiu. O aeroporto tergiversou em localização: Rio Frio, Ota, Alcochete ou aumento da Portela e adaptação de um aeroporto militar a estrutura para voos low coast. O número de linhas TGV e o dos submarinos dividiu as hostes políticas. O TGV não vingou e os submarinos circunscrevem-se a dois, restando os nefandos episódios das contrapartidas.
A atual governança desde os últimos períodos pré-eleitorais contesta os projetos faraónicos propondo, em alternativa, o investimento em projetos de bens transacionáveis (Quais?). O certo é que o projeto de aeroporto está a marinar ou arredado. Entretanto, outros países captam as rotas transcontinentais e Portugal ficará a ver de longe os aviões. O TGV ficou para ser substituído por uma via ferroviária de alta prestação (invenção expressional deste governo). E os comboios de mercadorias chineses vêm de Yiwu, no leste da China, até Madrid e vice-versa, ficando Lisboa a ouvi-los apitar ao longe. Apita o comboio, apita o comboio, mas carrega e descarrega lá em Madrid!
Em vez da regionalização, cuja matéria foi objeto de uma lei-quadro, mas cuja instituição em concreto foi rejeitada em referendo, sucedeu-se a propalada descentralização, através das mais que duas áreas metropolitanas e, agora, pelas comunidades intermunicipais, que nem se sabe se são ou não autarquias ou meras associações. Mas o poder central é, na prática, omnipotente. Mesmo os municípios, que dispõem teoricamente de larga autonomia, muitas vezes, cingem-se a gerir os enlatados que a administração central lhes remete.
O serviço central dos impostos passou a Autoridade Tributária e Aduaneira. Foi criada uma direção-geral dos estabelecimentos escolares. Foram extintas as direções regionais de educação, mas restam umas DREN que não se sabe bem o que sejam. Criou-se um conselho de escolas, quando já existia um conselho nacional de educação. Da habilitação profissional para a docência faz parte obrigatoriamente uma PACC, que não é universal, de momento. São meros exemplos, mas que mostram quanto vale um Governo cujo ministro da economia se perde no comentário a taxas e taxinhas e não sabe das tolerâncias de ponto. Será que também envia o seu dinheiro para a Suíça para contribuir para a sustentabilidade da nossa economia ou um MEC, doutor em matemática que aplica fórmula errada? E um Governo cujo Chefe mandou lixar as eleições, que inventou pateticamente a salsicha da educação, a emigração como solução e o apelo à impieguice – e que diz coisas erráticas como “quem se lixou não foi o mexilhão” e ora afirma que os sacrifícios foram feitos por todos ou que quem mais sofreu foram os bancos – criou um conselho geral independente, inútil, para a RTP e um conselho de concertação territorial, para, entre outras coisas, proceder à municipalização da educação pública (quem sabe se também da saúde e das finanças), talvez porque os professores não tenham querido assumir a propriedade/concessão das escolas. Para dar sinal de sobriedade, reduziu o número de ministros, mas governou com um ministro da economia, desenvolvimento regional, emprego, empreendedorismo, inovação, competitividade, obras públicas, energia, turismo, transportes e comunicações e com uma ministra da agricultura, florestas, desenvolvimento rural, mar, ambiente e ordenamento do território (agora já fez divisões). Enfim…
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Como escreve Correia de Campos na página 44 do Público de hoje, dia 15, “o Governo não levanta voo” ou seja, erra ou mascara uma proclamação estatística, seja no âmbito da emigração e do emprego, seja no da economia. Acrescentemos as previsões do défice das contas ou das decisões do tribunal Constitucional. E, tal como António Costa, também o professor catedrático jubilado refere que não se entende “até com a privatização da TAP”, já que “o Memorando da Troika refere que o plano tem como objetivo uma antecipação de receitas de cerca de 5,5 mil milhões de euros até ao final do programa, apenas com alienação parcial prevista para todas as empresas de maior dimensão”.
É certo que os dois políticos não esquecem que mais adiante o Memorando admite “ir mais longe, prosseguindo uma alienação acelerada da totalidade das ações da EDP e da REN, e tem a expectativa de que as condições de mercado venham a permitir a venda destas duas empresas, bom como da TAP, até final de 2011”. E, se a política portuguesa desagradar ao Estado chinês, o verdadeiro dono da EDP e da REN, alegadamente privatizadas em favor de um Estado, não seremos objeto de boicote em bens essenciais? É o liberalismo ao serviço do estatismo alheio! Belo, não?!
No entanto, é de duvidosa certeza que a venda total daquelas grandes empresas, nomeadamente a TAP, não comprometa a identidade da empresa, a renovação e ampliação da sua frota e a sua vocação estratégica do país, a nível regional e transcontinental. Talvez nada disto se garanta com a inclusão de cláusulas adequadas no documento de venda e compra.
Ora, se “o Governo anterior não se comprometeu a privatizar toda a TAP, mas apenas parte”, e, se “já se ultrapassou a meta de encaixe para abater à dívida, a decisão irreversível da venda ficará a dever-se a um desígnio ideológico de retirar o Estado da economia. Se é aceitável o desiderato de “menos Estado, melhor Estado”, não é aceitável que o Estado se eclipse de todo num setor estratégico e num país de economia periférica. O professor citado entende que, “se houver condições de mercado, nada haverá a opor a que se aliene parte dela, como previsto”, porém, “aliená-la toda, mesmo que o mercado oferecesse condições financeiras excecionais, seria pura servidão ideológica”. E os resultados de tal venda total seriam significativos: desequilibraria a balança de transações correntes; reduziria em um terço os postos de trabalho; destruiria “uma das últimas bandeiras de Portugal no mundo”; e, se deslocasse para fora do país o seu centro de decisão e de operações, induziria a perda de muitos milhões de receitas fiscais nacionais. Quanto à perda de receitas fiscais, já estamos habituados a ver o governo a assistir passivamente à deslocalização de empresas portuguesas ou de interesse português para outros lugares da Europa e do Planeta. Não sei como ainda não teve a ideia de sortear um automóvel por cada um dos tais empresários a ver se mantinham a sede de seus grupos empresariais em Portugal!
Talvez Álvaro Cunhal, se fosse vivo hoje, achasse que tinha razão, embora por motivos contrários, quando garantiu a Oriana Falacci, “seguramente que não teremos um Portugal socialdemocrata. Jamais.” (cf João Carlos Espada, in Público, de hoje, pg 25). E não estamos tão longe da estatolatria como parece: o Governo faz que ouve; o medo da precariedade e da perda de emprego instalou-se; as pessoas deixaram de se manifestar; os serviços são controlados ao minuto; as liberdades são formalmente respeitadas, mas são materialmente atropeladas a cada passo; a Justiça ou não funciona ou funciona mal. Pode não passar de pormenor, mas é significativo: dantes, os impressos eram encabeçados pelo logótipo nacional e SR (Serviço da República) e designação da entidade respetiva; agora, o logótipo nacional vem secundado da epígrafe “Governo de Portugal”. Somos funcionários do Governo e não só do Estado ou da coletividade. Querem melhor protagonismo? E de quem? Do Estado? Não. Do Governo.

Ao endeusamento do capital, que permanece, segue-se o autismo governamental, que se disfarça em Conselhos, Institutos, Autoridades, etc. já não sei se devemos bradar “Viva a República!” se “Viva o Governo!”.

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