A Sala de Imprensa da Santa Sé publicou ontem dia, 30 de dezembro, a
mensagem do Papa Francisco para o XXIII Dia Mundial do Doente (Esta jornada foi instituída por São
João Paulo II.) em torno do tema Sapientia Cordis (sabedoria do
coração). O texto ontem
publicado, redigido no passado dia 3 de dezembro, memória de São Francisco
Xavier, e referente ao dia do doente, que se celebrará a 11 de fevereiro de
2015, memória litúrgica de Nossa Senhora de Lourdes, começa, por citar um treno
de Job “Eu era os olhos do cego
e servia de pés para o coxo” (Jb 29,15) – que mais do que palavra do homem é palavra de
Deus, que significa a imensa solidariedade para com o homem, urgindo a solidariedade
do homem para com o outro homem.
Francisco
dirige-se aos doentes – “todos vós que carregais o peso da doença,
encontrando-vos, de várias maneiras, unidos à carne de Cristo sofredor” – e a
quem deles tem o cuidado, os “profissionais e voluntários no campo da saúde”.
***
Da Sabedoria do coração diz não se tratar
de “um conhecimento teórico, abstrato, fruto de raciocínios”, mas sabedoria “pura
(…), pacífica, indulgente, dócil, cheia de misericórdia e de bons frutos,
imparcial, sem hipocrisia” (Tg 3,17). É, pois,
um dom do Espírito Santo enquanto disposição
infundida por Ele na mente
e no coração para se abrir ao sofrimento dos irmãos e a neles reconhecer a
imagem de Deus. É um dom que também se implora: “Ensina-nos a contar assim os
nossos dias, / para podermos chegar à sabedoria do coração” (Sl 90/89,12).
Depois, Sabedoria do coração é servir o
irmão, numa ótica de fé. Nas
palavras de Job, acima transcritas, evidencia-se a dimensão de serviço aos
necessitados por parte de um homem justo – serviço que lhe dá uma estatura
moral reconhecida pelos seus conterrâneos e se manifesta na dedicação ao pobre,
bem como no “cuidado do órfão e da viúva” (cf. Jb 29,12-13; Tg 1,27).
Este serviço
cristão testemunha-se hoje, segundo o Papa, não só com as palavras, mas sobretudo
com a vida radicada numa fé genuína, que implica ser “os olhos do cego” e “os
pés para o coxo”. Também configura é um especial caminho de santificação: “permanecer
junto dos doentes que precisam de assistência contínua, de ajuda para se lavarem,
vestirem e alimentarem” – serviço que, especialmente “quando se prolonga no tempo,
pode tornar-se cansativo e pesado”. E continua: “é relativamente fácil servir
alguns dias, mas torna-se difícil cuidar de uma pessoa durante meses ou até
anos, inclusive quando ela já não é capaz de agradecer” (Note-se o detalhe
existencial sublinhado por Francisco!). Então, conta-se com a proximidade do
Senhor, que é também “de especial apoio à missão da Igreja”.
Porém, mais
do que o excesso “martista” de atividade, Sabedoria
do coração é estar com o irmão. “O tempo gasto junto do doente é um tempo
santo”, de amor e de conforto – ensina o Pontífice. “É louvor a Deus, que nos
configura à imagem do seu Filho, que “não veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida para resgatar a multidão” (Mt 20,28). Já a presença de fé e paciência junto do doente é sacramento
da presença de Jesus, o “Verbo Encarnado que habita entre nós” (cf Jo 1,14) e que nos disse: “Eu estou no meio
de vós como aquele que serve” (Lc 22,27).
Por contraste,
o Papa Francisco vem denunciar a hipocrisia e a mentira de quem negligencia o
valor desta presença, a eficácia deste serviço e a humildade desta assistência,
refugiando-se na técnica e no estribilho vazio de expressões hoje em voga como
a da “qualidade da vida”, “para fazer crer que as vidas gravemente afetadas
pela doença não mereceriam ser vividas”.
Por outro lado,
não basta esperar que o doente surja ou nos procure. É que Sabedoria do
coração é sair de si ao encontro do irmão. É algo que o nosso mundo esquece.
O dom da gratuitidade parece ficar colocado de lado quando se insiste demasiado
na técnica e no exclusivismo profissionalista (considerando os outros meramente
curiosos). Depois, quem vive obcecado “pela rapidez, pelo frenesim do fazer e
do produzir” não avalia o interesse da prestação generosa de cuidar, de se
encarregar do outro, mormente quando se gasta algum tempo à cabeceira do doente.
“No fundo, por detrás desta atitude – lamenta-se Francisco – há muitas vezes
uma fé morna e o esquecimento da palavra escatológica do Mestre: “Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes”
(Mt 25,40).
Por isso, o
Papa correlaciona com a sua perspetiva da imagem da Igreja em saída às periferias
existenciais (e a doença constitui-se em periferia física e psicossocial) esta mensagem
para o Dia mundial do Doente: “gostaria de recordar uma vez mais a absoluta
prioridade da saída de si próprio para o irmão, como um dos dois mandamentos
principais que fundamentam toda a norma moral e como o sinal mais claro para
discernir sobre o caminho de crescimento espiritual em resposta à doação
absolutamente gratuita de Deus” (Exort. ap. Evangelii
gaudium,179). Mais:
naquela exortação apostólica, que é considerada a peça-base do seu programa
pontifical, o Bispo de Roma, na sua solicitude por toda a Igreja, ensina que “é
da própria natureza missionária da Igreja que brotam a caridade efetiva para
com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove” (Ibid.,179).
Finalmente, o
Papa Francisco ensina que é preciso resistir à tentação de julgar, avaliar e só
depois acorrer. Tanto cuidado ao doente
e ao necessitado que deixa de se prestar porque o projeto apresentado não era
viável ou porque eles o não merecem! Sabedoria do coração é ser
solidário com o irmão, sem o julgar. A caridade – diz o Papa, aludindo ao
exemplo dos amigos de Job – “precisa de tempo, tempo para cuidar dos doentes e
tempo para os visitar, tempo para estar junto deles”. Os amigos de Job “ficaram
sentados no chão, ao lado dele, sete dias e sete noites, sem lhe dizerem
palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande” (Jb 2,13). No entanto, “escondiam um juízo negativo acerca
dele”: como era corrente pensar-se no quadro do judaísmo de então, “pensavam
que a sua infelicidade fosse o castigo de Deus por alguma culpa dele”. Ao invés,
o Papa argentino declara que “a verdadeira caridade é partilha que não julga,
que não tem a pretensão de converter o outro; está livre daquela falsa
humildade que, fundamentalmente, busca aprovação e se compraz com o bem
realizado”.
E não podemos
olvidar que a experiência de Job, proverbialmente considerado a referência paciencial,
é a figura veterotestamentária da entrega paciente de Cristo até à morte na
cruz (aparentemente abandonado
pelo Pai: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? – Mt 27,46). Pelo que essa experiência de Job “só
encontra a sua resposta autêntica na Cruz de Jesus, ato supremo de
solidariedade de Deus para connosco, totalmente gratuito, totalmente
misericordioso”. E Francisco respiga, neste contexto, algo de profundo que
proferiu na homilia da canonização de dois dos seus predecessores, João XIII e
João Paulo II: “esta resposta de amor ao drama do sofrimento humano,
especialmente do sofrimento inocente, permanece para sempre gravada no corpo de
Cristo ressuscitado, naquelas suas chagas gloriosas que são escândalo para a
fé, mas também verificação da” fé (cf. Homilia na canonização de João XXIII e João
Paulo II, 27 de abril de 2014).
A esse drama
da cruz Paulo associa o sofrimento do doente e do atribulado: “completo na minha
carne o que falta à Paixão de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja” (cf Cl 1,24). E o Papa assegura que “mesmo
quando a doença, a solidão e a incapacidade levam a melhor sobre a nossa vida
de doação, a experiência do sofrimento pode tornar-se lugar privilegiado da
transmissão da graça e fonte para adquirir e fortalecer a sapientia cordis”. E, voltando à experiência de Job,
que no final – e Francisco transcreve as palavras de evidência do antes sofredor
– exclama: “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas agora veem-Te os
meus próprios olhos” (Jb
42,5). E conclui que “também
as pessoas imersas no mistério do sofrimento e da dor, se acolhido na fé, podem
tornar-se testemunhas vivas duma fé que permite abraçar o próprio sofrimento,
ainda que o homem não seja capaz, pela própria inteligência, de o compreender
até ao fundo”.
***
Nesta época
de Natal, o Pontífice entrega todos os doentes à proteção materna de Maria, que
acolheu no ventre e gerou a Sabedoria encarnada (Santa Sofia), Jesus Cristo,
nosso Senhor. Ela é efetivamente a “Mãe de Cristo”, a “Sede de Sabedoria” e a “Saúde
dos Enfermos”, como se invoca na ladainha lauretana.
Por isso,
aqui fica ipsis verbis a pequena
prece papal, bem ao jeito da prece salomónica (2Cr 1,10.11.12):
“Ó Maria, Sede da Sabedoria,
intercedei como nossa Mãe por todos os doentes e quantos cuidam deles. Fazei
que possamos, no serviço ao próximo sofredor e através da própria experiência
do sofrimento, acolher e fazer crescer em nós a verdadeira sabedoria do coração”.
Sirva esta
mensagem de prenda pontifícia para os doentes e de reconhecimento e estímulo
para aquelas e aqueles que deles tratam com profissionalismo e com generosidade
alicerçada na fé genuína.
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