quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

XXIII Dia Mundial do Doente

A Sala de Imprensa da Santa Sé publicou ontem dia, 30 de dezembro, a mensagem do Papa Francisco para o XXIII Dia Mundial do Doente (Esta jornada foi instituída por São João Paulo II.) em torno do tema Sapientia Cordis (sabedoria do coração). O texto ontem publicado, redigido no passado dia 3 de dezembro, memória de São Francisco Xavier, e referente ao dia do doente, que se celebrará a 11 de fevereiro de 2015, memória litúrgica de Nossa Senhora de Lourdes, começa, por citar um treno de Job “Eu era os olhos do cego e servia de pés para o coxo (Jb 29,15) – que mais do que palavra do homem é palavra de Deus, que significa a imensa solidariedade para com o homem, urgindo a solidariedade do homem para com o outro homem.
Francisco dirige-se aos doentes – “todos vós que carregais o peso da doença, encontrando-vos, de várias maneiras, unidos à carne de Cristo sofredor” – e a quem deles tem o cuidado, os “profissionais e voluntários no campo da saúde”.
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Da Sabedoria do coração diz não se tratar de “um conhecimento teórico, abstrato, fruto de raciocínios”, mas sabedoria “pura (…), pacífica, indulgente, dócil, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem hipocrisia” (Tg 3,17). É, pois, um dom do Espírito Santo enquanto disposição infundida por Ele na mente e no coração para se abrir ao sofrimento dos irmãos e a neles reconhecer a imagem de Deus. É um dom que também se implora: “Ensina-nos a contar assim os nossos dias, / para podermos chegar à sabedoria do coração” (Sl 90/89,12).
Depois, Sabedoria do coração é servir o irmão, numa ótica de fé. Nas palavras de Job, acima transcritas, evidencia-se a dimensão de serviço aos necessitados por parte de um homem justo – serviço que lhe dá uma estatura moral reconhecida pelos seus conterrâneos e se manifesta na dedicação ao pobre, bem como no “cuidado do órfão e da viúva” (cf. Jb 29,12-13; Tg 1,27).
Este serviço cristão testemunha-se hoje, segundo o Papa, não só com as palavras, mas sobretudo com a vida radicada numa fé genuína, que implica ser “os olhos do cego” e “os pés para o coxo”. Também configura é um especial caminho de santificação: “permanecer junto dos doentes que precisam de assistência contínua, de ajuda para se lavarem, vestirem e alimentarem” – serviço que, especialmente “quando se prolonga no tempo, pode tornar-se cansativo e pesado”. E continua: “é relativamente fácil servir alguns dias, mas torna-se difícil cuidar de uma pessoa durante meses ou até anos, inclusive quando ela já não é capaz de agradecer” (Note-se o detalhe existencial sublinhado por Francisco!). Então, conta-se com a proximidade do Senhor, que é também “de especial apoio à missão da Igreja”.
Porém, mais do que o excesso “martista” de atividade, Sabedoria do coração é estar com o irmão. “O tempo gasto junto do doente é um tempo santo”, de amor e de conforto – ensina o Pontífice. “É louvor a Deus, que nos configura à imagem do seu Filho, que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão” (Mt 20,28). Já a presença de fé e paciência junto do doente é sacramento da presença de Jesus, o “Verbo Encarnado que habita entre nós” (cf Jo 1,14) e que nos disse: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve” (Lc 22,27).
Por contraste, o Papa Francisco vem denunciar a hipocrisia e a mentira de quem negligencia o valor desta presença, a eficácia deste serviço e a humildade desta assistência, refugiando-se na técnica e no estribilho vazio de expressões hoje em voga como a da “qualidade da vida”, “para fazer crer que as vidas gravemente afetadas pela doença não mereceriam ser vividas”.
Por outro lado, não basta esperar que o doente surja ou nos procure. É que Sabedoria do coração é sair de si ao encontro do irmão. É algo que o nosso mundo esquece. O dom da gratuitidade parece ficar colocado de lado quando se insiste demasiado na técnica e no exclusivismo profissionalista (considerando os outros meramente curiosos). Depois, quem vive obcecado “pela rapidez, pelo frenesim do fazer e do produzir” não avalia o interesse da prestação generosa de cuidar, de se encarregar do outro, mormente quando se gasta algum tempo à cabeceira do doente. “No fundo, por detrás desta atitude – lamenta-se Francisco – há muitas vezes uma fé morna e o esquecimento da palavra escatológica do Mestre: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40).
Por isso, o Papa correlaciona com a sua perspetiva da imagem da Igreja em saída às periferias existenciais (e a doença constitui-se em periferia física e psicossocial) esta mensagem para o Dia mundial do Doente: “gostaria de recordar uma vez mais a absoluta prioridade da saída de si próprio para o irmão, como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a norma moral e como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de crescimento espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus” (Exort. ap. Evangelii gaudium,179). Mais: naquela exortação apostólica, que é considerada a peça-base do seu programa pontifical, o Bispo de Roma, na sua solicitude por toda a Igreja, ensina que “é da própria natureza missionária da Igreja que brotam a caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove” (Ibid.,179).
Finalmente, o Papa Francisco ensina que é preciso resistir à tentação de julgar, avaliar e só depois acorrer. Tanto cuidado ao doente e ao necessitado que deixa de se prestar porque o projeto apresentado não era viável ou porque eles o não merecem! Sabedoria do coração é ser solidário com o irmão, sem o julgar. A caridade – diz o Papa, aludindo ao exemplo dos amigos de Job – “precisa de tempo, tempo para cuidar dos doentes e tempo para os visitar, tempo para estar junto deles”. Os amigos de Job “ficaram sentados no chão, ao lado dele, sete dias e sete noites, sem lhe dizerem palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande” (Jb 2,13). No entanto, “escondiam um juízo negativo acerca dele”: como era corrente pensar-se no quadro do judaísmo de então, “pensavam que a sua infelicidade fosse o castigo de Deus por alguma culpa dele”. Ao invés, o Papa argentino declara que “a verdadeira caridade é partilha que não julga, que não tem a pretensão de converter o outro; está livre daquela falsa humildade que, fundamentalmente, busca aprovação e se compraz com o bem realizado”.
E não podemos olvidar que a experiência de Job, proverbialmente considerado a referência paciencial, é a figura veterotestamentária da entrega paciente de Cristo até à morte na cruz (aparentemente abandonado pelo Pai: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? – Mt 27,46). Pelo que essa experiência de Job “só encontra a sua resposta autêntica na Cruz de Jesus, ato supremo de solidariedade de Deus para connosco, totalmente gratuito, totalmente misericordioso”. E Francisco respiga, neste contexto, algo de profundo que proferiu na homilia da canonização de dois dos seus predecessores, João XIII e João Paulo II: “esta resposta de amor ao drama do sofrimento humano, especialmente do sofrimento inocente, permanece para sempre gravada no corpo de Cristo ressuscitado, naquelas suas chagas gloriosas que são escândalo para a fé, mas também verificação da” fé (cf. Homilia na canonização de João XXIII e João Paulo II, 27 de abril de 2014).
A esse drama da cruz Paulo associa o sofrimento do doente e do atribulado: “completo na minha carne o que falta à Paixão de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja” (cf Cl 1,24). E o Papa assegura que “mesmo quando a doença, a solidão e a incapacidade levam a melhor sobre a nossa vida de doação, a experiência do sofrimento pode tornar-se lugar privilegiado da transmissão da graça e fonte para adquirir e fortalecer a sapientia cordis”. E, voltando à experiência de Job, que no final – e Francisco transcreve as palavras de evidência do antes sofredor – exclama: “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas agora veem-Te os meus próprios olhos” (Jb 42,5). E conclui que “também as pessoas imersas no mistério do sofrimento e da dor, se acolhido na fé, podem tornar-se testemunhas vivas duma fé que permite abraçar o próprio sofrimento, ainda que o homem não seja capaz, pela própria inteligência, de o compreender até ao fundo”.
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Nesta época de Natal, o Pontífice entrega todos os doentes à proteção materna de Maria, que acolheu no ventre e gerou a Sabedoria encarnada (Santa Sofia), Jesus Cristo, nosso Senhor. Ela é efetivamente a “Mãe de Cristo”, a “Sede de Sabedoria” e a “Saúde dos Enfermos”, como se invoca na ladainha lauretana.  
Por isso, aqui fica ipsis verbis a pequena prece papal, bem ao jeito da prece salomónica (2Cr 1,10.11.12):
“Ó Maria, Sede da Sabedoria, intercedei como nossa Mãe por todos os doentes e quantos cuidam deles. Fazei que possamos, no serviço ao próximo sofredor e através da própria experiência do sofrimento, acolher e fazer crescer em nós a verdadeira sabedoria do coração”.


Sirva esta mensagem de prenda pontifícia para os doentes e de reconhecimento e estímulo para aquelas e aqueles que deles tratam com profissionalismo e com generosidade alicerçada na fé genuína.

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