A questão levanta-se a partir do
texto de Mateus sobre o jovem rico a quem o Mestre lançara o desafio de que, se
queria ser perfeito, que fosse, vendesse tudo o que possuía, desse o dinheiro
aos pobres – ganharia um tesouro nos Céus – que voltasse e que O seguisse (cf
Mt 19,16-26; Mc 10,17-27; Lc 18,18-27).
Perante a retirada do jovem
contristado, que possuía muitos bens, Jesus exclama perante os discípulos: “Em verdade vos digo que dificilmente um rico
entrará no reino dos Céus. Repito-vos: é mais fácil passar um camelo pelo fundo
de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus” (Mt
19,23-24; Mc 10,23; Lc 18,22).
À estupefação dos discípulos e à sua interrogação sobre quem poderia salvar-se,
Cristo assegura: “Aos homens é impossível,
mas a Deus tudo é possível” (Mt 19,26; Mc 10,27; Lc 18,27).
Por outro lado, Lucas 6, 20.24-25
enuncia as bem-aventuranças de modo diferente de Mateus. Enquanto este põe na
boca do Mestre a primeira bem-aventurança como “bem-aventurados os pobres em
espírito, por que deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3), Lucas escreveu, “felizes sois
vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus” (Lc 6,20). E, na perícopa das
imprecações, o evangelista transcreve dos lábios de Cristo “Mas ai de vós, os ricos, porque já recebestes
a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome!” (6, 24-25).
Também, quando envia em missão os discípulos,
impõe-lhes o despojamento dos bens, como que se eles fossem um peso supérfluo e
um estorvo e porque também receberam tudo de graça. Leia-se, a propósito, em
Mateus: “Recebestes de graça, dai de graça. Não possuais ouro
nem prata nem cobre, em vossos cintos; nem
alforge, para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o
trabalhador merece o seu sustento.” (Mt 10,8-9). Mas tal
despojamento implica que eles, na sua pobreza, hajam alguns direitos, já que o
salário do trabalhador é um direito e um reconhecimento do mérito.
Marcos confirma
a imposição de os discípulos nada levarem consigo, a não ser um cajado (cremos
que seja como arrimo na caminhada e não para bater em alguém). E o Mestre
recomenda que, em qualquer casa em que entrassem, permanecessem nela até
partirem daquela terra (cf Mc 6,8.10). É também o
reconhecimento de que ao apostolado há de corresponder a recompensa mínima para
possibilitar a sobrevivência do apóstolo e a do trabalho apostólico.
Por seu turno,
Lucas (cf. Lc 10,1-11) reitera a imposição do despojamento já referenciado,
recomendando a não perda de tempo com saudação a quem quer que seja pelo
caminho, porque era preciso que fossem a todas as cidades e lugares aonde o
Mestre havia de ir. Mais: alertou-os para os perigos da missão – “envio-vos
como cordeiros para o meio de lobos” (Lc
10,3)
– e sugere-lhes a reivindicação do sustento: Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá
houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa. Em qualquer cidade em que entrardes e
vos receberem, comei do que vos for servido…” (Lc 10,7-8).
É certo que o abandono da riqueza,
no caso do jovem rico, entende-se como condição de vontade de perfeição (se queres ser perfeito…), já que o jovem começou por
interpelar o Mestre sobre o que era preciso para alcançar a vida eterna (supostamente,
a salvação) e Ele
indicou a observância dos mandamentos – o que o jovem confessou vir a cumprir
tudo isso desde há muito tempo (cf Mt 19,20; Mc 10,20; Lc 18,21). Já no caso da missão dos
discípulos, o despojamento poderia entender-se como condição de disponibilidade
para o trabalho apostólico, colocação de parte do que fosse supérfluo ou
estorvante e como estatuto de quem prepara a ida do Messias (“enviou-os
a todas as cidade e lugares aonde Ele devia ir” – Lc 10,1) e segue de perto o Senhor (“Olha
que nós deixámos tudo e seguimos-Te”, disse Pedro – Mt 19,27). Porém, quer as
bem-aventuranças de Lucas quer as imprecações ou invectivas como as referidas,
apontam o perigo das riquezas para todos relativamente à Salvação. E quando o
Rabi se lamenta de como é difícil um rico salvar-se (cf
Mt 19,23), parece
estar a abarcar o universo de todos e não apenas os que almejam a perfeição.
Mateus, que assume por inteiro as
palavras do Senhor, abre, no âmbito das bem-aventuranças, um caminho, “Felizes
os pobres em espírito” (ou os que o são no seu íntimo). Alguns veem na palavra
assumida por Mateus a condenação da riqueza como restrita à riqueza em espírito
– a avareza, a onzena (usura), o espezinhamento do pobre e a exploração aliadas
à abundância de bens. Talvez se deva antes, em qualquer dos evangelhos
sinóticos, entrever a consagração da pobreza como atitude, que pode passar pela
disponibilidade do supérfluo (o que é muito pouco), levar à partilha, sobretudo
com quem não tem, de modo que ninguém tenha necessidade (o que é muito bom), e
chegar ao despojamento total em favor os pobres, exigido pela vida de
perfeição, de seguimento do Senhor e de trabalho apostólico (excelente),
contudo com abertura a receber a justa recompensa da parte dos destinatários da
evangelização ou de quem for com eles solidário.
***
Todavia, a Sagrada
Escritura assinala às riquezas o seu caráter efémero e de perigo.
O caráter efémero
das riquezas vem apontado no Antigo Testamento, logo no salmo 39 (38). Falando
do homem, o salmista exclama: “Ele passa
como simples sombra! E em vão se agita: amontoa riquezas e não sabe para quem
ficam.” (Sl 39,7). A riqueza é tão fugaz como o próprio homem. Ainda que o
gira, aumente e domine, enquanto vivo, não consegue garantir a subsistência do
seu património, se o alienar ou se o deixar em herança ou em testamento.
O livro do Eclesiastes também se lhe refere, embora de forma indireta:
“Ilusão
das ilusões: tudo é ilusão” (Ecl 1,2). “A vista não se sacia com o que vê,
nem o ouvido se contenta com o que ouve” (Ecl 1,9).
Aquele que ama o dinheiro nunca se saciará do dinheiro,
e aquele que ama a riqueza, a riqueza não virá ao seu encontro. (…) Onde abundam os bens, abundam os que os devoram. E que vantagem tem o dono dos bens
além de vê-los com os seus olhos? (…) A abundância do rico não o deixa dormir
descansado. Vi outra dolorosa miséria debaixo do Sol: a riqueza entesourada
para desgraça do seu dono. Perdem-se essas riquezas num mau negócio, e se
tiver um filho, este fica sem nada nas mãos. (Ecl 5,9-13).
O avaro
detentor do dinheiro é insaciável e sujeita-se a que lhe devorem toda a
riqueza. Não terá um sono descansado e a riqueza entesourada pode ser a
desgraça do dono: pode perdê-la em mau negócio e o herdeiro pode ficar sem
nada. Assim, de que valerá viver amontoando sem ponderar outros valores e
outros horizontes?
Por sua vez,
o Novo Testamento, sobretudo nas cartas – 1.ª aos Coríntios, 1.ª a Timóteo e na
de Tiago – assegura a índole passageira das riquezas, tal como a do tempo:
“O tempo é breve. Doravante (…) os que compram (vivam)
como se não comprassem, os que usam deste mundo, como se não o usufruíssem
plenamente. Porque este mundo de aparências está a terminar. (1Co 7,29-31). Nada
trouxemos ao mundo e nada dele levaremos. Os que
querem enriquecer caem na tentação, na armadilha e em múltiplos desejos insensatos
e nocivos que precipitam os homens na ruína e perdição, porque a raiz de todos os males é a
ganância do dinheiro. Arrastados por ele, muitos se desviaram da fé e se
enredaram em muitas aflições.” (1Tm 6,7.9-10). “Com efeito, ao despontar o Sol com ardor, a erva seca e a sua flor cai,
perdendo toda a beleza; assim murchará também o rico em seus empreendimentos”
(Tg 1,11).
Uma certeza nos deixa o Novo Testamento: nada levaremos connosco. Porém,
a ganância leva à concupiscência, à ruína, à perdição, ao sofrimento e ao
desvio da fé. Por outro lado, a riqueza murcha como a erva e a flor. Por isso,
é conveniente que não nos agarremos a ela.
Em relação à periculosidade, conexa com a efemeridade, já está dito que
as riquezas podem levar o homem ao desvio da fé e à ruína. No entanto, os
textos bíblicos abundam, como se verá a seguir:
“Mais vale o pouco com o temor do Senhor que um grande
tesouro com a inquietação. Mais vale um
prato de legumes com amizade do que um vitelo gordo com ódio.” (Pr 15,16-17). “Fazem-se festins para haver alegria; o
vinho alegra a vida, e o dinheiro serve para tudo.” (Ecl 10,19). “Ninguém pode servir a dois senhores: ou não gostará de
um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não
podeis servir a Deus e ao dinheiro.” (Mt 6,24). “Aquele que recebeu a semente
entre espinhos é o que ouve a palavra, mas os cuidados deste mundo e a sedução
da riqueza sufocam a palavra que, por isso, não produz fruto.” (Mt 13,22).
“Quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que têm riquezas.” (Mc 10,23).
“Deus, porém, disse-lhe (ao homem que acumulou riquezas e queria construir
celeiros ainda maiores): ‘Insensato! Nesta mesma noite, vai ser reclamada a tua
vida; e o que acumulaste para quem será?’ Assim
acontecerá ao que amontoa para si, e não é rico em relação a Deus.” (Lc 12,
20-21). “Arrastados por ele (dinheiro), muitos
se desviaram da fé e se enredaram em muitas aflições.” (1Tm 6,10).
Para lá do que foi refletido antes sobre a riqueza e o rico nos
evangelhos sinóticos, aqui ressalta a insensatez de quem põe a sua confiança
nas riquezas e nas suas consequências, distraindo-se da vida eterna e do
caminho da fé que a ela conduz, começando por não fazer caso da Palavra de Deus.
E os textos apontam o caminho: ser rico aos olhos de Deus. Demais quem não se
lembra da parábola do rico avarento e do pobre Lázaro (cf Lc 18,19-31)? O rico não se
apercebeu a tempo de que do lado de lá já não havia hipótese de retoma do
caminho da felicidade eterna!
***
Perante o exposto, são de ter em conta algumas mensagens, sobretudo no
quadro dos parâmetros neotestamentários. A título de exemplo, citamos uma passagem
das epístolas católicas e outra das cartas pastorais de Paulo, sem esquecer que
era rico Lázaro, o amigo que Jesus ressuscitou (Jo 11,1-44). Porém, ele e as irmãs
puseram toda a riqueza ao serviço da causa de Cristo.
Assim, o apóstolo João deixa uma forte interpelação:
“Se alguém possuir bens deste mundo e,
vendo o seu irmão com necessidade, se lhe fechar o seu coração, como é que o
amor de Deus pode permanecer nele? Meus
filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com
verdade.” (1Jo 3,17-18).
E Paulo deixa as
seguintes recomendações e conselhos aos ricos:
“Aos
ricos deste mundo recomenda que não sejam orgulhosos, nem ponham a sua
esperança na riqueza incerta, mas em Deus que nos dá tudo com abundância para
nosso usufruto; que pratiquem o
bem, se enriqueçam de boas obras, sejam generosos, capazes de partilhar. Deste modo, acumularão um bom tesouro
para o futuro, a fim de conquistarem a verdadeira vida.” (1Tm 6,17-19).
Ora, tal interpelação e tais recomendações podem
fazer o caminho para a pobreza em espírito de que fala Mateus, que pode muito
bem consistir nos exemplos expressos no Livro dos Atos dos Apóstolos e nas
cartas de Paulo.
Nos atos:
“… possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam
o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um (At 2,44-45). Ninguém
chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum. Entre eles não
havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas
vendiam-nas, traziam o produto da venda e
depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme
a necessidade que tivesse. (At 4,32.34-35).
Nas cartas de
Paulo, as igrejas,
geralmente, recebiam o dinheiro de contribuições voluntárias dos membros e o
apóstolo
Paulo ensinava que
os cristãos deveriam dar voluntariamente e com alegria:
“Quanto à coleta
para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No
primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade,
e vá juntando, para que não se as façam coletas só quando eu for.” (1Co 16;1-2). "Cada um contribua
segundo o que tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade;
porque Deus ama a quem dá com alegria." (2Co 9,7).
***
Entretanto, a leitura do romance
histórico de Bodie e Brock Thoene, Take
this Cup – traduzido para Português por Dina Antunes, sob o título A Última Ceia de Jesus (eu
preferia a transliteração do título original para “Toma este cálice”), editado pelo Clube do Autor –
dá-nos mais uma pista para ultrapassar a dificuldade de o rico se salvar e garantir
que “a Deus tudo é possível”.
O protagonista do romance e
narrador autodiegético, Nemi ou Neemias, o copeiro-mor que havia de entregar a
taça de José do Egito ao Messias, em Jerusalém, refere que Jesus, perante os discípulos,
comentou com tristeza a recusa do jovem a quem Ele desafiara a segui-Lo,
dizendo que era mais fácil passar pelo fundo de uma agulha uma “corda” grossa (klav-la,
em hebraico) que um
rico entrar no reino dos Céus. Só que alguns escutaram pela referida palavra
hebraica a parónima gam-la, que
significa camelo.
Embora as palavras que significam
“corda” e “camelo” tenham sons semelhantes, segundo Nemi, Jesus terá mesmo pronunciado
a palavra que significa corda. É verdade que algumas edições da Bíblia, em Português,
traduziam aquela palavra por “calabre”, a tal corda grossa de navio. Não podemos
esquecer que, na Terra de Jesus, além dos pastores, abundavam os pescadores, os
agricultores e também os viandantes. Mas não sei se os discípulos, que estavam
habituados com barcos e unidades de rebanho, eram peritos a lidar com camelos.
Ora Nemi, mocinho pastor e filho
de uma fiandeira, conta que, quando era mais pequeno, vira muitas vezes a mãe
tecer a corda para colocar (klav-la) um badalo dependurado em volta
do pescoço dum carneiro. A corda começava a ganhar forma a partir de um simples
fio por entre os dedos da mãe de Nemi. Então, se da corda feita, por mais grossa
que fosse, se retirasse toda a fibra em excesso, restaria apenas um fio. Diz ele
que “o coração de uma corda consiste num único fio”. Afinal, seria difícil, mas
possível passar esse fio central pelo buraco da agulha. E a comparação aduzida por Jesus
fazia todo o sentido (cf op cit pgs 289-290).
Então, com Nemi, podemos afirmar
que o Mestre estava a colocar ante os olhos dos que O ouviam um caminho difícil,
mas possível. Se o homem, como dizem alguns dos textos citados acima e a experiência
de vida o atesta, nasce nu e sem nada, e nada leva quando partir desta vida,
importa que reduza ao máximo a corda grossa dos bens, em favor de quem não tem
e/ou ao serviço das grandes causas e apure o fio de fé, levantado em esperança
aos Céus, para atravessar sem qualquer receio os portões da eternidade,
confiado na misericórdia e nos atos.
Mas não vale aliar o capitalismo
desenfreado (de pessoa singular, de grupo económico e/ou financeiro ou do
Estado) à pobreza em espírito de que fala o Senhor em Mateus. Isso é o que em linguagem
desportiva se chama “batota” e, em termos relacionais, será a fraude.
Em termos da pós-modernidade, o
caminho é o da rendibilização dos recursos, da cooperação formativa, da
promoção da justiça distributiva e social (mas acorrer
voluntariosamente às situações de emergência que não possam esperar), da atitude permanente de
solidariedade. E, se a este caminho insuflarmos a caridade como dom de Deus em
postura de doação pelo semelhante, estaremos no rumo certo. Difícil? Mas
possível e em igualdade de oportunidades!
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