terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Até os feriados pagam a crise!

Nos anos subsequentes à revolução abrilina, era corrente depararmos com a palavra de ordem “os ricos que paguem a crise”, nos muros, cartazes e jornais. Era com este estribilho que se estabeleciam alguns processos de catarse ante fervores revolucionários e desvios à marcha do rumo do processo revolucionário em curso, mormente no período do PREC propriamente dito.
Depois, ficámos a perceber que paulatinamente assomara à ribalta da sociedade um grupo alargado de novos ricos e foram ressuscitando com notável incremento aqueles que a revolução parecia ter sepultado. E, em 1989, a revisão constitucional, aliada a recente integração na CEE (1-1-1986), deu azo a que se iniciasse todo um programa de privatizações, se constituísse em regime de alastramento um surto de pequenas e médias empresas, com o estrangulamento de significativo setor produtivo de grande dimensão. A panaceia da subsidiodependência levou à minoração e destruição da agricultura, das marinhas (de guerra, de pesca e comercial). A esperança na floresta – por desordenada e pela insistência na monocultura predominantemente de espécies resinosas, sem a suficiência de aceiros, clareiras, charcas de água e vigilância preventiva – tornou-se cada vez mais irrealizável por via dos fogos florestais de estio cada vez mais prolongado e propício ao negócio de produtos e meios.
Mais tarde, vieram as microempresas em barda apoiadas pelos fundos europeus e pelo Estado Português, muitas das quais entravam em inatividade após o uso dos fundos e o prazo dos cinco anos de compromisso estipulado no protocolo que sancionava o respetivo projeto.
Com a inauguração da zona Euro, a da moeda única, sem unidade económica e bancária, aflorou nas economias dos países do Sul o sinal errado da confiança nas virtualidades do crédito pessoal e à habitação própria, até que se chegou ao ponto da acusação grave de que vivêramos acima das nossas possibilidades.
Com o advento da crise estado-unidense da banca, que rapidamente passou a uma Europa, que não soube enfrentá-la, ela tornou-se inexorável pandemia nos países europeus mais débeis. E a crise alastrada, que aproximou alguns países da barra da bancarrota, houve por bem criar a ideia da inevitabilidade da punição social e económica que se abatia virulentamente sobre os cidadãos. Assim, três países da “solidária Europa” foram objeto e sujeito de um agressivo e explícito programa de ajustamento económico e financeiro – Irlanda, Grécia e Portugal. A Espanha teve um programa similar, mas sob a capa da revitalização bancária. E a economia de Itália e a da própria França levaram um valente estremeção. Entretanto, a banca alemã e, em parte, a banca francesa encontraram uma excelente oportunidade de autoinjeção de capital fresco, enquanto os Estados sob intervenção externa viam a dívida soberana a crescer e o serviço da dívida a tornar-se incomportável, o défice a persistir no recrudescimento e a austeridade a asfixiar as economias e a aniquilar os cidadãos.
Nominalmente, todos sofreram com a crise. Até os pobres, que não podem pagar, sofreram mais. Pensão não aumentada ou mesmo congelada deixou de bastar para o sustento próprio, dificultou o acesso a serviços de saúde, à farmácia, ao minimercado, aos transportes (os géneros alimentícios, apesar das marcas brancas, e o IVA aumentaram para todos). O grosso dos contribuintes – públicos e privados – levaram, logo em 2011, com uma sobretaxa que rendeu ao Estado uns 50% do subsídio de Natal. Depois, vieram supressões de subsídios de férias e de Natal para funcionários do Estado e mais cortes de salários. As pensões de aposentação e de reforma levaram um corte brutal pela via da CES (contribuição extraordinária de solidariedade), pela supressão se subsídios, pela via do recálculo, pelo aumento do coeficiente da idade média de idade, pelo recálculo da taxa de sustentabilidade e pelo aumento da idade de aposentação/reforma.
Os impostos aumentaram brutalmente (bem o reconheceu Vítor Gaspar). Foi o IRS, o ISP, o IA, o IUC. Vem aí a fiscalidade verde (e nós ficamos todos amarelados). E a inevitabilidade levou ao engrossamento desmedido da onda emigratória e emagreceu drasticamente o fluxo imigratório; o consumo interno decresceu a olhos vistos; inúmeras empresas encerraram; muitas procederam a despedimentos coletivos; e outras negociaram a baixa de salários, alegadamente para evitarem a dispensa de colaboradores. Os funcionários públicos, insatisfeitos com as desconfortáveis condições de trabalho, entraram em depressão, passaram à situação de aposentação antecipada, foram sujeitos a requalificação (que leva a despedimento, mais dia menos dia), foram convidados a programas de rescisão da relação de trabalho por mútuo acordo e os restantes sujeitaram-se ao invariável regime de trabalho de 40 horas semanais.
A crise financeira tornou-se económica; de económica passou a social; de social transmutou-se em psicológica; de psicológica passou a moral, correndo o risco de virar a anarquia.
As instituições de solidariedade social, face a um Estado que reduziu ao máximo os apoios sociais, não têm mãos a medir. Muitas pessoas, que antes contribuíam, passaram a necessitar de ajuda. Muitas ficaram com vergonha e outras assumiram um sentimento de culpabilidade própria ou de fatalismo desesperante. Alguns entraram na via da delinquência e da ação violenta; outros fogem ao fisco ou cumprem pressionados por quem pretende candidatar-se ao sorteio do automóvel referente à fatura da sorte.
Aqueles que até há pouco tempo reivindicavam perderam a voz; e o medo e a resignação apoderaram-se deles. O silêncio e a falta de massa crítica são assustadores!
***
Entretanto, os mais ricos passam pelas pingas grossas da chuva da crise e pouco molhados ficam. Passam até a ganhar por outro lado. Atente-se no exemplo dos telefonemas de valor acrescentado em favor das grandes causas ou no pagamento de géneros a favor das grandes campanhas como as do banco alimentar contra a fome. O Estado não renuncia à percentagem do IVA devida pelas chamadas telefónicas ou pelos produtos transacionados nas unidades comerciais. Por seu turno, as empresas de telecomunicações e os empresários das cadeias de fornecimento de produtos alimentares não renunciam à sua margem de lucro. E os políticos que passam pelo Governo, regra geral, desfrutam de postos de trabalho que lhes proporcionam lustrosos vencimentos. Não creio que tenha sido por acaso que nenhum membro do Governo nem qualquer grande empresário tenha comparecido no debate “empobrecimento e solidão”, organizado pela RTP1 através do programa “Prós e Contras”. Dá a impressão de que o Governo não quer ouvir e os empresários de sucesso de escala cumprem a função social de empresa para marcar agenda.
Por seu turno, dos Bancos, uns estenderam-se no lamaçal financeiro de efeito nefasto e devastador para funcionários, depositantes, acionistas e contribuintes (BCP, BPN, BPP e agora o BES/GES); outros candidataram-se aos programas de recapitalização aproveitando os 12 mil milhões disponibilizados pela troika, para o efeito (BPI, BCP, CGD, BANIF e agora o Novo Banco). A procissão das privatizações avança pelas ruas principais da cristandade laica e o Estado vende em saldo, não somente os anéis, mas também os dedos. E, se algum dedo restar, cortam-lhe a unha tão rente que até fica a sangrar. A corrupção chegou aos altos escalões da Administração Pública, como revelaram os indícios da operação “Labirinto” e aos políticos, como parece indiciar a operação “Marquês” e as condenações de Vara e Lima – fora aquilo que não se tem apurado ou de que nem se fala.
***
Muitos sofreram pela crise (sobretudo na educação, saúde, prestação social, segurança social, combate à violência doméstica…); e de muitos modos ela se manifesta. Como, a seguir à revolução dos cravos, também agora era urgente que os mais ricos pagassem a crise (ou a fatia maior do seu bolo). Não seria difícil: contribuir para as grandes causas; manter até ao limite a empresa e os postos de trabalho; não deslocalizar para outros países e paraísos fiscais sedes de empresa e capitais próprios; satisfazer as exigências da fiscalidade e da segurança social; não exigir compromissos desumanos no recrutamento, seleção e manutenção do pessoal; não trapacear falência de empresa e subsequente abertura de outra em nome próprio ou de outrem.
Para mais espantar, o Governo até confiou a resolução da crise à supressão de quatro significativos feriados e de uma tolerância de ponto. E, por ironia do destino, em tempo de crise, dois desses feriados caíram em dia de sábado e/ou de domingo.
E, passada que foi a crise, conforme nos pregaram sobre o seu termo a 17 de maio passado, os quatro feriados continuam em eclipse. Por uns magros cêntimos, o Estado quer riscar do imaginário do povo (em vez de o reavivar) o sentido da independência nacional, hoje não inimiga da solidariedade internacional e de vizinhança (um de dezembro); o perfil republicano do Estado, de rutura com o regime da monarquia, que nos fez como povo e como passantes pelo mundo, mas configurador de um novo regime que trouxe o sentido da contemporaneidade atualizada e um novo civismo (cinco de outubro); o culto dos antepassados que só morrem efetivamente quando a memória dos seus descendentes e amigos fazem questão de os sepultar na tumba do esquecimento (um de novembro); e aquilo que distingue o país na sua tradição quase milenar de apreço eucarístico, que o faz editar livros e livros, revistas e pagelas de referência a Jesus Cristo (Corpo de Deus).
Quer dizer: em contexto de feroz política austeritária, os magnates do dinheiro e da empresa podem ser dispensados de pagar um IRC completo, ver reduzida a sua TSU e sentir um imposto sobre capitais diminuído para os 5% se alinharem num RERT (regime extraordinário de regularização tributária) – um ganhou a prisão preventiva em virtude de um processo de grande complexidade! Mas os desgraçados e miseráveis dos quatro feriados, que representam uns magritos cêntimos, são obrigados a colaborar no pagamento da crise. Haja Deus!

Na minha terra, no tempo de Salazar, os populares rogariam uma série de pragas e diriam um chorrilho de palavrões. Não creio que hoje tenham força para os pronunciarem…

Sem comentários:

Enviar um comentário