Nos anos subsequentes à revolução
abrilina, era corrente depararmos com a palavra de ordem “os ricos que paguem a
crise”, nos muros, cartazes e jornais. Era com este estribilho que se
estabeleciam alguns processos de catarse ante fervores revolucionários e
desvios à marcha do rumo do processo revolucionário em curso, mormente no
período do PREC propriamente dito.
Depois, ficámos a perceber que
paulatinamente assomara à ribalta da sociedade um grupo alargado de novos ricos
e foram ressuscitando com notável incremento aqueles que a revolução parecia
ter sepultado. E, em 1989, a revisão constitucional, aliada a recente
integração na CEE (1-1-1986), deu azo a que se iniciasse todo um programa de
privatizações, se constituísse em regime de alastramento um surto de pequenas e
médias empresas, com o estrangulamento de significativo setor produtivo de
grande dimensão. A panaceia da subsidiodependência levou à minoração e
destruição da agricultura, das marinhas (de guerra, de pesca e comercial). A
esperança na floresta – por desordenada e pela insistência na monocultura
predominantemente de espécies resinosas, sem a suficiência de aceiros,
clareiras, charcas de água e vigilância preventiva – tornou-se cada vez mais irrealizável
por via dos fogos florestais de estio cada vez mais prolongado e propício ao
negócio de produtos e meios.
Mais tarde, vieram as
microempresas em barda apoiadas pelos fundos europeus e pelo Estado Português,
muitas das quais entravam em inatividade após o uso dos fundos e o prazo dos
cinco anos de compromisso estipulado no protocolo que sancionava o respetivo
projeto.
Com a inauguração da zona Euro, a
da moeda única, sem unidade económica e bancária, aflorou nas economias dos
países do Sul o sinal errado da confiança nas virtualidades do crédito pessoal
e à habitação própria, até que se chegou ao ponto da acusação grave de que
vivêramos acima das nossas possibilidades.
Com o advento da crise
estado-unidense da banca, que rapidamente passou a uma Europa, que não soube
enfrentá-la, ela tornou-se inexorável pandemia nos países europeus mais débeis.
E a crise alastrada, que aproximou alguns países da barra da bancarrota, houve
por bem criar a ideia da inevitabilidade da punição social e económica que se
abatia virulentamente sobre os cidadãos. Assim, três países da “solidária
Europa” foram objeto e sujeito de um agressivo e explícito programa de
ajustamento económico e financeiro – Irlanda, Grécia e Portugal. A Espanha teve
um programa similar, mas sob a capa da revitalização bancária. E a economia de
Itália e a da própria França levaram um valente estremeção. Entretanto, a banca
alemã e, em parte, a banca francesa encontraram uma excelente oportunidade de
autoinjeção de capital fresco, enquanto os Estados sob intervenção externa viam
a dívida soberana a crescer e o serviço da dívida a tornar-se incomportável, o
défice a persistir no recrudescimento e a austeridade a asfixiar as economias e
a aniquilar os cidadãos.
Nominalmente, todos sofreram com
a crise. Até os pobres, que não podem pagar, sofreram mais. Pensão não
aumentada ou mesmo congelada deixou de bastar para o sustento próprio,
dificultou o acesso a serviços de saúde, à farmácia, ao minimercado, aos
transportes (os géneros alimentícios, apesar das marcas brancas, e o IVA
aumentaram para todos). O grosso dos contribuintes – públicos e privados –
levaram, logo em 2011, com uma sobretaxa que rendeu ao Estado uns 50% do
subsídio de Natal. Depois, vieram supressões de subsídios de férias e de Natal
para funcionários do Estado e mais cortes de salários. As pensões de
aposentação e de reforma levaram um corte brutal pela via da CES (contribuição
extraordinária de solidariedade), pela supressão se subsídios, pela via do
recálculo, pelo aumento do coeficiente da idade média de idade, pelo recálculo
da taxa de sustentabilidade e pelo aumento da idade de aposentação/reforma.
Os impostos aumentaram
brutalmente (bem o reconheceu Vítor Gaspar). Foi o IRS, o ISP, o IA, o IUC. Vem
aí a fiscalidade verde (e nós ficamos todos amarelados). E a inevitabilidade
levou ao engrossamento desmedido da onda emigratória e emagreceu drasticamente
o fluxo imigratório; o consumo interno decresceu a olhos vistos; inúmeras
empresas encerraram; muitas procederam a despedimentos coletivos; e outras
negociaram a baixa de salários, alegadamente para evitarem a dispensa de
colaboradores. Os funcionários públicos, insatisfeitos com as desconfortáveis
condições de trabalho, entraram em depressão, passaram à situação de
aposentação antecipada, foram sujeitos a requalificação (que leva a
despedimento, mais dia menos dia), foram convidados a programas de rescisão da
relação de trabalho por mútuo acordo e os restantes sujeitaram-se ao invariável
regime de trabalho de 40 horas semanais.
A crise financeira tornou-se
económica; de económica passou a social; de social transmutou-se em
psicológica; de psicológica passou a moral, correndo o risco de virar a
anarquia.
As instituições de solidariedade
social, face a um Estado que reduziu ao máximo os apoios sociais, não têm mãos
a medir. Muitas pessoas, que antes contribuíam, passaram a necessitar de ajuda.
Muitas ficaram com vergonha e outras assumiram um sentimento de culpabilidade
própria ou de fatalismo desesperante. Alguns entraram na via da delinquência e
da ação violenta; outros fogem ao fisco ou cumprem pressionados por quem pretende
candidatar-se ao sorteio do automóvel referente à fatura da sorte.
Aqueles que até há pouco tempo
reivindicavam perderam a voz; e o medo e a resignação apoderaram-se deles. O
silêncio e a falta de massa crítica são assustadores!
***
Entretanto, os mais ricos passam
pelas pingas grossas da chuva da crise e pouco molhados ficam. Passam até a
ganhar por outro lado. Atente-se no exemplo dos telefonemas de valor
acrescentado em favor das grandes causas ou no pagamento de géneros a favor das
grandes campanhas como as do banco alimentar contra a fome. O Estado não
renuncia à percentagem do IVA devida pelas chamadas telefónicas ou pelos
produtos transacionados nas unidades comerciais. Por seu turno, as empresas de
telecomunicações e os empresários das cadeias de fornecimento de produtos
alimentares não renunciam à sua margem de lucro. E os políticos que passam pelo
Governo, regra geral, desfrutam de postos de trabalho que lhes proporcionam
lustrosos vencimentos. Não creio que tenha sido por acaso que nenhum membro do
Governo nem qualquer grande empresário tenha comparecido no debate
“empobrecimento e solidão”, organizado pela RTP1 através do programa “Prós e
Contras”. Dá a impressão de que o Governo não quer ouvir e os empresários de
sucesso de escala cumprem a função social de empresa para marcar agenda.
Por seu turno, dos Bancos, uns
estenderam-se no lamaçal financeiro de efeito nefasto e devastador para
funcionários, depositantes, acionistas e contribuintes (BCP, BPN, BPP e agora o
BES/GES); outros candidataram-se aos programas de recapitalização aproveitando
os 12 mil milhões disponibilizados pela troika, para o efeito (BPI, BCP, CGD,
BANIF e agora o Novo Banco). A procissão das privatizações avança pelas ruas
principais da cristandade laica e o Estado vende em saldo, não somente os
anéis, mas também os dedos. E, se algum dedo restar, cortam-lhe a unha tão
rente que até fica a sangrar. A corrupção chegou aos altos escalões da
Administração Pública, como revelaram os indícios da operação “Labirinto” e aos
políticos, como parece indiciar a operação “Marquês” e as condenações de Vara e
Lima – fora aquilo que não se tem apurado ou de que nem se fala.
***
Muitos sofreram pela crise
(sobretudo na educação, saúde, prestação social, segurança social, combate à violência
doméstica…); e de muitos modos ela se manifesta. Como, a seguir à revolução dos
cravos, também agora era urgente que os mais ricos pagassem a crise (ou a fatia
maior do seu bolo). Não seria difícil: contribuir para as grandes causas;
manter até ao limite a empresa e os postos de trabalho; não deslocalizar para
outros países e paraísos fiscais sedes de empresa e capitais próprios;
satisfazer as exigências da fiscalidade e da segurança social; não exigir
compromissos desumanos no recrutamento, seleção e manutenção do pessoal; não
trapacear falência de empresa e subsequente abertura de outra em nome próprio
ou de outrem.
Para mais espantar, o Governo até
confiou a resolução da crise à supressão de quatro significativos feriados e de
uma tolerância de ponto. E, por ironia do destino, em tempo de crise, dois
desses feriados caíram em dia de sábado e/ou de domingo.
E, passada que foi a crise,
conforme nos pregaram sobre o seu termo a 17 de maio passado, os quatro
feriados continuam em eclipse. Por uns magros cêntimos, o Estado quer riscar do
imaginário do povo (em vez de o reavivar) o sentido da independência nacional,
hoje não inimiga da solidariedade internacional e de vizinhança (um de
dezembro); o perfil republicano do Estado, de rutura com o regime da monarquia,
que nos fez como povo e como passantes pelo mundo, mas configurador de um novo
regime que trouxe o sentido da contemporaneidade atualizada e um novo civismo
(cinco de outubro); o culto dos antepassados que só morrem efetivamente quando
a memória dos seus descendentes e amigos fazem questão de os sepultar na tumba
do esquecimento (um de novembro); e aquilo que distingue o país na sua tradição
quase milenar de apreço eucarístico, que o faz editar livros e livros, revistas
e pagelas de referência a Jesus Cristo (Corpo de Deus).
Quer dizer: em contexto de feroz
política austeritária, os magnates do dinheiro e da empresa podem ser
dispensados de pagar um IRC completo, ver reduzida a sua TSU e sentir um
imposto sobre capitais diminuído para os 5% se alinharem num RERT (regime
extraordinário de regularização tributária) – um ganhou a prisão preventiva em
virtude de um processo de grande complexidade! Mas os desgraçados e miseráveis
dos quatro feriados, que representam uns magritos cêntimos, são obrigados a
colaborar no pagamento da crise. Haja Deus!
Na minha terra, no tempo de
Salazar, os populares rogariam uma série de pragas e diriam um chorrilho de
palavrões. Não creio que hoje tenham força para os pronunciarem…
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