quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Benedictus Dominus Deus Noster qui dedit nobis signum

É com esta enunciação lapidar de ação de graças que Fernando Pessoa (1888-1935) constrói o pórtico de Mensagem (1934), o único livro dado à estampa em vida do poeta. Para o poeta de Mensagem, o sinal que é objeto da dádiva divina a um povo (Bendito o Senhor Deus nosso Deus que nos deu um sinal) é a marca de consagração do português cristão para a missão universal de unar a Terra (vd poemeto Infante) – o sinal do mar que não separa, mas une – expresso no padrão com a cruz e as quinas (vd poemeto Padrão).
A importância do sinal invade a História. Constantino I ou Constantino o Grande, imperador romano no poder de 306 a 337, terá visto em sonhos, antes de entrar em Roma, nas vésperas da batalha decisiva contra Maxêncio para o controlo do império, a cruz no céu e ouvido a voz, In hoc signo vinces (Por este sinal vencerás). Por consequência, às ordens do seu Pontifex Maximus, os soldados gravaram a cruz nos seus escudos e o imperador obteve a vitória na batalha da Ponte Mílvia. Há versões do facto que apenas configuram modulações: a visão ocorrera ainda na Gália, quando imperador e hostes iam a caminho da capital do Império; ou a visão miraculosa foi extensiva a todos os militares. De qualquer modo, o grande sinal é a cruz. E, a partir do ano 313, o da promulgação do édito de Milão, o sinal símbolo do cristianismo passa do “peixe” à “cruz”. Peixe em grego era o acrónimo de Cristo (Jesus Cristo Filho de Deus Salvador) e aos discípulos, na sua maioria, pescadores de peixes, Cristo transmutou-os em pescadores de homens (cf Mt 4,19; Mc 1,17; Lc 5,10). A cruz passa de instrumento de ignomínia e infâmia a “instrumento e sinal” de vitória e liberdade. Por isso, ela se exalta “Eis o madeiro da cruz no qual esteve suspensa a salvação do mundo” (vd Liturgia de Sexta-feira Santa). Vai alçada em procissões, é incensada em liturgias solenes, é exposta em lugar visível no templo e em qualquer lugar das localidades, edifícios, caminhos, vales e montes, peitos, vestuários ou insígnias. E os cristãos diariamente se benzem fazendo a cruz e se persignam com um gesto de cruz feito sobre si mesmos e rezando: “Pelo sinal da santa cruz livre-nos Deus, nosso Senhor, de nossos inimigos”. E Paulo, na 1.ª Carta aos Coríntios, clama: “Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para judeus e loucura para gentios; mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus” (cf 1Co 1,23-24).
***
A dinâmica dos sinais perpassa os textos bíblicos. Assim, sinal de aliança de Deus com os homens, em Noé é o arco-íris (Gn 9,13); em Abraão, sinal da aliança era a circuncisão (cf Gn 17,10-14); e nos outros patriarcas, Moisés, juízes reis e profetas sinal da aliança era o sangue dos animais oferecidos em sacrifício (cf Ex 12,7; 24,8); e em Cristo, o seu sangue é o sinal da nova e eterna aliança (Mt 26,28; Mc 14,24; Lc 22,20; 1Co 11,25). Por seu turno, a nuvem, a arca da aliança, o tabernáculo e o templo são sinais da presença (Shekinah) de Deus (Ex 40,34; 2 Sm 6,14.17; 1Rs 8,12), como Cristo é a imagem e presença do Pai: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14,9).
Jesus passou pelo mundo acreditado por Deus com milagres, prodígios e sinais (cf At 2,22). Lucas enuncia os sinais da presença do Messias: “cegos veem, coxos andam, leprosos ficam limpos, surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a boa nova é anunciada aos pobres” (Lc 7,22).
O Evangelho de João chama sinais a alguns dos milagres de Jesus, por exemplo: o da conversão da água em vinho em Caná (cf Jo 2,6-11); a cura do filho de um funcionário real (cf Jo 4,48-54); e a ressurreição de Lázaro (cf Jo 11,47). Mas oferece-nos eloquente sinal do estilo de vida preconizado por Si, o lava-pés, como símbolo de serviço fraterno e de imensa caridade divina (cf Jo 13,4-17). Jesus até criticou os contemporâneos por conhecerem bem os sinais do tempo e não conhecerem os do Messias. Assim, quando alguns doutores da Lei e fariseus Lhe pediam um sinal feito por Ele, o Mestre replicou:
“Geração má e adúltera! Reclama um sinal, mas não lhe será dado outro sinal, a não ser o de Jonas. Assim como Jonas esteve no ventre do monstro marinho, três dias e três noites, assim o Filho do Homem estará no seio da terra, três dias e três noites. No dia do juízo, os Ninivitas hão de levantar-se contra esta geração para a condenar, porque fizeram penitência quando ouviram a pregação de Jonas. Ora, aqui está quem é maior do que Jonas! No dia do juízo, a rainha do Sul há de levantar-se contra esta geração para a condenar, porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. Ora, aqui está alguém que é maior do que Salomão!” (Mt 12,39-42; cf Mc 8,11-12; Lc 11,29-32).

Também, quando entra no Templo e depara com o caos comercial de sabor profanatório, o novo e definitivo Profeta corre com os vendilhões e derruba as mesas das mercancias. Quando o interpelaram com que autoridade tomava tal atitude, ou que sinal lhes dava de poder fazer aquilo, desafiou-os: “Destruí este templo, e em três dias Eu o levantarei!” (Jo 2,19).
A dúvida dos judeus sobre a possibilidade de o Templo que levara 46 anos a construir vir ser a reedificado em 3 dias por veleidade de Jesus não impediu que muitos viessem a crer n’Ele e ficou na memória dos discípulos que, mais tarde, vieram a perceber que Ele falava do templo do seu corpo. Por isso, quando Jesus ressuscitou dos mortos, os discípulos recordaram-se de que Ele o tinha dito e creram na Escritura e nas palavras que tinha proferido. (cf Jo 2,13-23; Mt 21,12-17; Mc 11,15-19; Lc 19,45-48).
Os grandes sinais que Jesus apresenta ao povo são, efetivamente, os da Sua Morte e Ressurreição dos Mortos – o segmento nuclear do Credo: “padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos e ressuscitou ao terceiro dia”. Mas o Messias não deixa de nos apresentar também os sinais da sua vinda escatológica:
Sinais precursores – Virão muitos a dizer-se em nome de Jesus e bradar que o tempo está próximo, que não devem ser seguidos; falar-se-á de guerras e revoltas, que não devem alarmar. Mas Há de erguer-se povo contra povo e reino contra reino. Haverá grandes terramotos e, em vários lugares, fomes e epidemias, bem como fenómenos apavorantes e grandes sinais no céu.” (cf Lc 21,7-11; Mt 24,3-8; Mc 13, 3-8).
Perseguição aos discípulos – Serão perseguidos e entregues a sinagogas e prisões e conduzidos ante reis e governadores, por mor do nome de Cristo. Porém, terão azo de testemunhar. Têm, pois, de gravar no coração que não devem preocupar-se com a própria defesa, porque Ele lhes dará palavras de sabedoria, a que não resistirão os adversários. “Sereis entregues até por pais, irmãos, parentes e amigos. Hão de causar a morte a alguns de vós e sereis odiados por todos, por causa do meu nome. Mas não se perderá um só cabelo da vossa cabeça. Pela vossa constância é que sereis salvos.” (cf Lc 21,12-19; Mt 10,16-23; 24,9-14; Mc 13,9-13).
Vinda do Filho do Homem O Sol, a Lua e as estrelas apresentarão sinais; e, na Terra, haverá angústia entre os povos. Os homens morrerão de pavor na expectativa do que vai acontecer ao universo, pois as forças celestes serão abaladas. Então, hão de ver o Filho do Homem vir numa nuvem com grande poder e glória. Quando isto começar a acontecer, “levantai a cabeça, porque a vossa redenção está próxima.” (cf Lc 21,25-28; Mt 24,29-31; Mc 13,24-27).
E deixa-nos como paradigma o sinal da figueira – “Reparai na figueira e demais árvores. Ao vê-las deitar rebentos, sabeis que o Verão está próximo. Quando virdes essas coisas, conhecereis que o Reino de Deus está próximo. Não passará esta geração sem que tudo se cumpra. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar. (cf Lc 21,29-33; Mt 24,32-35; Mc 13,28-32).
***
O pecado do homem, em que este quer ser como Deus (cf Gn 3,2), comendo do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, postula a redenção. E os seus sinais não se fazem esperar:
A mulher e a descendência da mulher a esmagar a cabeça do dragão: Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar.” (Gn 3,15). É este o protoevangelho, o 1.º lampejo da Boa Nova.
A conceição virginal: Ao rei Acaz a quem o profeta Isaías lança o repto do pedido de um sinal de Deus e que responde que não o pede porque não quer tentar o Senhor, o profeta apresenta intempestivamente o sinal de Deus: “uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e há de pôr-lhe o nome de Ema­nuel.” (Is 7,14). Tal promessa cumpre-se em Maria de Nazaré e em seu Filho, como S. Paulo diz, “nascido de mulher” (Mt 1,20-25; Lc 1,31-32.42.44; 2,6-20; Gl 4,4).
O próprio sinal do nosso Deus é “um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12), sinal de contradição, “está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel” (Lc 2,34), mas Salvação oferecida por Deus a todos os povos, Luz para se revelar às nações e glória de Israel, seu povo” (Lc 2,30-32).
E este sinal projeta-se e prolonga-se no tempo in aeternum, na Igreja (mulher-mãe) e no Cristo que ela apresenta ao mundo, mesmo no meio da tribulação e na figura-protótipo da Igreja, Maria a Virgem, a Mãe, a Discípula, a Serva, a Corredentora, a Peregrina, a Companheira a Rainha:
Apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida e gritava com as dores de parto e o tormento de dar à luz. Ela deu à luz um filho varão. Ele é que há de governar todas as nações com cetro de ferro (Ap 12,1-2.5).

Cristo é o sinal e sacramento do encontro dos homens entre si e com Deus. E a Igreja, através do anúncio de Cristo Salvador e da ministração dos sacramentos como ações de Cristo, torna-se instrumento de salvação e prepara os homens para a entrada no reino eterno preparado desde início para os homens. Mas estes terão de fazer aos irmãos (melhor, a Cristo, presente em cada um dos irmãos) a saciação da fome e da sede, a cobertura da nudez, o acolhimento aos peregrinos e desabrigados, a visita a enfermos e encarcerados (cf Mt 25,34-36.39-40).
E, como preparou um povo para experiência da Salvação, de que surgiria o Salvador, também Deus preparou para o Salvador digna morada no seio virginal e imaculado da Mãe, a Imaculada logo na conceção – a Cheia de Graça, a mãe de todos os homens – que aponta ao mundo o Sinal (Cristo) e sua esposa, povo e corpo (a Igreja). Ela é a mulher regenerada e regeneradora prometida no Génesis, a virgem profetizada por Isaías, a mulher-sinal visionada no Apocalipse e a mulher de que nasceu Cristo, dito sintética e epigraficamente por Paulo, como nascido de mulher.
Não terá sido este o mistério que a Igreja celebrou a 8 de dezembro passado e celebrará no Natal? Não será esta a mensagem da disponibilidade fraterna e o apelo à contemplação do dom de Deus?
***
Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do Céu nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que nos escolheu em Cristo antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis na sua presença, no amor (Ef 1,3-4).

Benedictus Dominus Deus Noster qui dedit nobis signum!

Sem comentários:

Enviar um comentário