Celebra-se,
a 8 de setembro, a festa litúrgica da Natividade da Virgem Santa Maria, o que
dá, em termos populares e da piedade da piedosa prole, a multiplicidade de
festas marianas que neste dia se celebram por muitos lugares sob os mais
diversos títulos com que a devoção do povo presenteou Maria, sempre a mesma
Senhora, quer pelas necessidades que Ela ajudou e ajuda a colmatar, quer pelos
sítios e ocasiões em que uma sua presença simbólica veio concitar o aumento da
fé, o reforço da piedade ou o exercício da romagem e da peregrinação, quer
ainda pela especial atenção que o mistério a que Maria vem relacionada atraiu a
atenção dos crentes.
Não
obstante, a devoção à Senhora da Natividade, ou seja, o culto de Maria, incluindo
o motivado pelo seu nascimento, comemorado a 8 de setembro de cada ano, mesmo
que assumido inequivocamente pela Liturgia enquanto oração oficial da
comunidade eclesial, não pode distrair-nos da verdadeira finalidade da própria
Liturgia, que é a adoração e o louvor a Deus, mas deve encaminhar-nos, em
Igreja, para Cristo, o centro e o motor da nossa fé, e, por Ele, para a
comunhão com a Trindade e para a penetração no seu mistério.
A este
respeito, muito se tem pregado nos últimos decénios, aliás em consonância com a
genuína tradição eclesial, mas ainda muito resta para fazer, em virtude da
pretensa centralidade mariana e mesmo a fixação quase obsessiva nalguma das
suas imagens por parte de muitos crentes e não só. Conta-se que um bracarense,
enquanto confessava que não era católico nem mesmo cristão, ameaçava: “Se alguém disser mal da Senhora do Sameiro,
eu racho-o!”. E também sei dum sacerdote que estava a pregar um sermão de
teor mariano diante duma imagem de Nossa Senhora e eis que um dos ouvintes se
voltou para uma imagem do mesmo título, mas mais antiga, e exclamou em voz bem
timbrada: “Aquela é que é a minha mãe!”.
Ora, tem que vencer na mente do crente e da comunidade eclesial o aforismo
tradicional “Per Mariam ad Iesum” (Por Maria a Jesus), aliás no quadro da perspetiva pedagógica de Isabel que, na visita de
Maria descortinou e sentiu a felicidade de ter consigo “a Mãe do meu Senhor” (Senhor é um
dos títulos messiânicos) e bradou: “Bendita és tu entre as
mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (cf Lc
1,42-43). Mais,
ainda segundo Isabel, a bem-aventurança de Maria consiste em ter acreditado em
tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor (cf Id, 45).
Também o anjo Gabriel, quando veio ter com Maria trazer-lhe o repto de Deus,
não se ficou na saudação pelo elogio “Cheia
de Graça”, mas vincou a razão de ser do elogio, “O Senhor está contigo” (cf Lc 1,38). E não veio confiar-lhe uma
tarefa comum, uma qualquer missão, mas um nobre ofício que gravita
necessariamente em torno do Messias e da sua missão redentora: “Conceberás em teu seio e darás à luz um filho a quem porás o
nome de Jesus. Será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai
dar-lhe o trono de seu pai David, reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o
seu reinado não terá fim.” (Lc 1, 31-33).
Aqui fica traçado todo o rumo da vida de Maria: não viverá
mais em função de si mesma, mas em função do Filho Jesus (o Salvador, o que
tira os pecados do mundo – cf Jo 1,29.36) e do seu
desígnio “que tenham a vida e a tenham em
abundância” (Jo 10,10). E tudo isto
vem na sequência da vontade de Deus e é obra do Espírito Santo. Com efeito,
como disse o anjo, “O Espírito Santo virá
sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso,
aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35).
***
A festa
da Natividade da Virgem Santa Maria celebrou-se, em primeiro lugar, em
Jerusalém, na basílica edificada no lugar da piscina probática (cf
Jo 5,1-9), onde a
tradição localizava a casa de São Joaquim e de Santa Ana, pais de Maria. Foi
introduzida em Roma pelo Papa Sérgio I, celebrando-se na basílica liberiana (a
de Santa Maria Maior).
E daí se difundiu por todo o Ocidente.
Porém, em alguns lugares, com relevo para Lamego, festeja-se a
Senhora sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios. Esta invocação resulta
quer da lenda quer da história.
Ao nível da lenda, destaca-se o relato de Mariano Calado em Peniche na História e na Lenda (edição do autor, 1991, pg 142), de que se faz síntese.
Tendo sido invadido
pelos sarracenos pelo século VII, o território do atual concelho de Peniche, os
cristãos, receosos que uma venerável imagem da Virgem fosse profanada pelos
invasores, tê-la-ão escondido numa gruta cavada nos rochedos das imediações
do Cabo Carvoeiro, aí ficando imune a assaltos e sacrilégios. Porém,
nos fins do século XII, reinando Dom Afonso Henriques, um criminoso fugido
à justiça procurou refúgio nas cavernas da costa ocidental da Ilha, pois se lhe
afigurava como a única salvação para a sua liberdade. E um providencial acaso
levou o foragido a acolher-se na gruta onde, havia quinhentos anos, a imagem da
Virgem tinha sido escondida. Apesar de maravilhado com a descoberta, não ousou revelá-la
no povoado, aguardando que alguém se aproximasse. Mas não se conteve que a não
revelasse a um grupo de crianças que se entretinha a brincar nos rochedos, as
quais foram a correr dar a notícia as pais e toda a gente da povoação vinha a
admirar o precioso achado.
Receando
que, tão perto do mar, a imagem não ficasse resguardada de assaltos e
profanações, levaram-na para a igreja de São Vicente, em Peniche de
Cima. Contudo, todas as vezes que o tentaram, a imagem desaparecia misteriosamente
do templo vindo a reaparecer na gruta onde fora encontrada. Certos de isso
corresponder à vontade da Senhora, ergueram no local uma capelinha, começando
por cavar a golpes de picão o nicho onde a Virgem aparecera, aquela que ocupa a
reentrância do lado esquerdo do corpo da atual capela de Nossa Senhora dos
Remédios.
Diz-se
também que, sempre que lhe vestiam quaisquer trajes ou mantos, os encontravam
depois caídos a seus pés, como se a Virgem se contentasse apenas com os trajos
esculpidos na própria figura. E diz o povo que, numa cruz natural existente à
entrada da capela, do lado direito, sempre que se dava alguma graça por
intercessão da Senhora, apareciam, sobre cada um dos orifícios dos cravos, três
gotas de água pura, como pérolas brilhantes.
Historicamente, esta devoção mariana foi trazida para Portugal por religiosos franceses
da Ordem Hospitalar da Santíssima
Trindade ou dos Trinitários, que estiveram em Lisboa no século XIII. A
ordem, fundada para resgatar os cristãos cativos no Oriente, não
dispunha de recursos financeiros para realizar o objetivo. Apareceu então Nossa Senhora aos fundadores, São
João da Mata e São Félix de Valois, entregando-lhes uma bolsa cheia de dinheiro,
concedendo-lhes assim o “remédio” para o problema. Desde então a Virgem ganhou
o título de Nossa Senhora dos Remédios, tornando-se a padroeira desta Ordem.
Com a difusão desta devoção pela Europa, 900 mil prisioneiros foram libertados
até ao século XVIII.
***
Em
Lamego, a 8 de setembro, depois de novena de pregações, meditação e oração, com
relevo para a celebração do Sacramento da Penitência ou da Reconciliação e para
a Celebração Eucarística, celebra-se a festa de Nossa Senhora dos Remédios,
cuja imagem parece mais a da Senhora do Leite, dado na Senhora se visualizar o
ato de aleitamento ao menino. A celebração religiosa, com Missa Solene e
Procissão de Triunfo, decorre no meio da azáfama em obediência ao programa de
diversão popular e de manifestações culturais, além de diversas movimentações
espontâneas – tudo constituindo a famosa “Romaria de Portugal”.
O
epicentro da devoção lamecense à Senhora dos Remédios é o Santuário
de Nossa Senhora dos Remédios situado no topo do monte de Santo
Estêvão, sendo atualmente parte integrante do panorama da cidade à qual está
unido por um escadório cenográfico.
A devoção
popular no local remonta a uma capela da invocação de Santo Estêvão, erguida
em 1361. Porém, no século XVI (melhor, em 1568), foi demolida por ameaçar ruína e iniciou-se a construção
de novo templo, onde foi depositada uma imagem da Virgem com o Menino.
Com o passar
do tempo, a devoção a Santo Estêvão diminuiu e sucedeu-lhe a devoção à Virgem.
A devoção dos que a ela recorriam em busca de alívio para as doenças deu
origem, por sua vez, à devoção a Nossa Senhora dos Remédios. E o atual
santuário foi principiado em 1750, e concluído apenas em 1905.
***
Mas, voltando
ao nascimento de Maria e ao título desta reflexão, ele surge-nos, de acordo com
o hino de Laudes como a promessa do grande dom que há de vir. Com efeito, “vem
cumprir a profecia deste mistério profundo: era nela (em Nazaré, pobre aldeia, de gentes
simples) que nascia a
Mãe de Deus sobre o mundo. E tanto a Liturgia das Horas como a Missa nos
convidam a, por Maria, nos encaminharmos para Jesus.
Assim, a
antífona o invitatório apela:
“Celebrando
o nascimento da Virgem Santa Maria, adoremos
o seu Filho, Jesus Cristo, o Senhor”.
E a antífona
de entrada da Missa exorta:
“Exumemos
de alegria no Senhor ao celebrar o nascimento da Virgem
Santa Maria, da qual nasceu o sol da justiça, Cristo nosso Deus”.
Duas das
antífonas de Laudes são verdadeiramente elogiosas para Maria, é certo, mas a
meta é Jesus. Diz a ant. 2 que “o
nascimento da Santíssima Virgem Maria iluminou o mundo inteiro”, é “geração
gloriosa, raiz santa”, pelo que exclamamos “bendito o seu fruto”! Por seu
turno, exorta a ant. 3 a que “celebremos
com alegria o nascimento da Virgem Santa Maria, para que interceda por nós
diante de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Na verdade, a
Mãe de Jesus e nossa Mãe tem um papel importante junto de nós e do mundo: não
sendo o caminho, ela aponta o caminho, que é Jesus; não sendo a salvação, ela
deu à luz o Salvador e cuidou dele de forma discreta e eficaz, respeitando e
favorecendo a sua autonomia, responsabilidade e missão; não sendo a Graça, ela
é intercessora pelos homens junto de Deus (“Não têm vinho” – Jo 2,3), despenseira da graça e auxílio das pessoas e comunidades;
e, não sendo a legisladora nem a juíza, por Jesus adverte-nos (“fazei o que Ele vos disser” – Jo 2,5) . E, quando mais não podia,
guardava tudo silenciosamente em seu coração, assumindo-se como serva do Senhor
e deixando que se realizasse nela a palavra de Deus e as suas maravilhas.
Na 1.ª
leitura da Missa (Mq
5,1-4a), salienta-se que
de Belém, “há de sair aquele que governará em Israel”… e “Ele próprio será a paz”. Quer isto dizer
que Deus “só abandonará o seu povo até ao
tempo em que der à luz aquela que há de dar à luz, e em que o resto dos
seus irmãos há de voltar para junto dos filhos de Israel”. E da leitura alternativa
(Rm 8,28-30) é de destacar, ao lado dos
escolhidos e predestinados como Maria, o dado cristológico: “àqueles
que Ele de antemão conheceu, também os predestinou para serem uma imagem
idêntica à do seu Filho, de tal modo que Ele é o primogénito de muitos irmãos;
e àqueles que predestinou, também os chamou; e àqueles que chamou, também os
justificou; e àqueles que justificou, também os glorificou”.
Do Evangelho, na sua forma longa (Mt
1,1-16.18-23) e na sua forma breve (Mt 1,18-23),
resulta que tudo desemboca em “Jesus, que se chama Cristo” (vd Mt 1,16). Assim, o anjo tranquiliza José:
“José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que
ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual
darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.” (Mt
20-21).
E
o evangelista explica na linha de que Maria é agora a promessa que está a
concretizar a promessa antiga constante da profecia:
“Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo
profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão de chamá-lo
Emanuel, que quer dizer: Deus connosco. Despertando do sono, José fez como
lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua esposa. E, sem que antes a tivesse
conhecido, ela deu à luz um filho, ao qual ele pôs o nome de Jesus.” (Mt
1,22-25).
A própria oração dos fiéis da Missa, a
pretexto do nascimento de Maria, é eminentemente cristológica. Logo a exortação
inicial frisa que Nossa Senhora “deu ao mundo a Cristo Salvador” e propõe a
invocação do nosso Deus. Depois, roga-se que a Igreja, “que nasceu do lado
aberto de Cristo” encontre “n’Ele” a paz e a segurança; que o povo de Israel,
“pela intercessão de Maria de Nazaré”, descubra “em Jesus o Messias prometido”;
e que todos os membros da assembleia, “imitando a santidade de Maria”, se
tornem “imagens de seu Filho Jesus”. E, na conclusão, pede-se a Deus, que ouça
as preces o povo que “celebra a festa da natividade da Santíssima Virgem Maria”
e que, “por sua intercessão e auxílio”, ele se enriqueça com os dons da divina
graça.
Do hino de
Vésperas salienta-se que Deus escolheu maria para nos dar Jesus e essa escolha
redundou em “alegria do Céu que encheu o mundo de luz”. A ant.1 frisa que “da raiz de Jessé nasceu a Virgem Maria, que
mereceu ser a Mãe do Filho de Deus”. E a antífona do Magnificat, o
cântico do louvor e da misericórdia entoado por Maria, é do teor
seguinte:
“Celebremos
o santo nascimento da gloriosa Virgem Maria. O Senhor olhou para a sua
humildade; e pela anunciação do Anjo, Ela concebeu o Redentor do Mundo.”.
À leitura
breve (Rm 9,4-5), que exalta Cristo, “que está acima
de todas as coisas e que bendiz a Deus por todos os séculos, responde-se consonantemente
com “Ave, Maria, cheia de graça o Senhor
é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso
ventre”.
E os
versículos das horas de sexta e de noa referem, respetivamente “V. Bendita seja a Virgem Santa Maria, R. Que trouxe ao mundo o Filho do eterno Pai”
(em resposta à leitura
breve de bênção - Jdt 12,24.25) e “V. Bendita sois Vós entre as
mulheres R. E bendito é o fruto do
vosso ventre” (em
resposta à leitura breve evocativa da morda de Deus com os homens – Ap 21,3).
***
Ora, sendo
Maria o protótipo da Igreja, que também é promessa (vd Mt 16,18), que nasceu do lado adormecido de
Cristo (vd Jo 19, 34-35) e que foi dotada com a força do
Alto (vd Lc24,49; At
2,1-41), como Maria, a
Igreja deve dar Cristo ao mundo e encaminhar o mundo para Ele; não se centrar
em si mesma, mas ter como referência Jesus Cristo; não se refugiar no seu reduto
defensivo, mas orar, pregar, ir aos encontro das pessoas, fazer comunidade,
avisar, interceder, auxiliar, cuidar, encaminhar. Enfim, Por Cristo, em Igreja
e com Maria, edificaremos discipulado sempre e em toda a parte para o apostolado em
missão preferencialmente pelos e junto dos pobres, enquanto cantamos: “A minha alma glorifica o Senhor…”.
2018.09.08 – Louro de Carvalho
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