sábado, 15 de setembro de 2018

Sobre os dados dos registos de identificação de aeropassageiros


O Governo quer que a Autoridade Tributária, a GNR, a PSP, a Polícia Marítima (PM) e o SEF acedam às informações dos passageiros portugueses e estrangeiros dos aviões comerciais. O objetivo é a investigação do terrorismo e da criminalidade organizada grave e violenta.
Estava previsto que a base de dados atinente a esta matéria estivesse apenas ligada à PJ (Polícia Judiciária), que tem tido competência exclusiva nestas matérias. Porém, numa reviravolta discreta e eficaz, o Governo decidiu criar uma unidade especial, na tutela do SSI (Sistema de Segurança Interna), para o que apresentou ao Parlamento a Proposta de Lei n.º 137/XIII/3.ª (GOV), que já mereceu a aprovação na generalidade no passado dia 6 de julho, mas com os votos contra do BE e do PCP. A isto os inspetores da PJ reagem acusando o Governo de ter decido “a pressões securitárias” e denunciam “interesses difusos” e “estratégias pouco claras” no seu plano que arrancou a esta polícia a base de dados de registo de passageiros da aviação comercial e a põe no SSI sob tutela do Primeiro-Ministro.
Os 26 crimes cuja investigação permite o acesso ao PNR (registo de passageiros da aviação comercial ou, em inglês, Passenger Name Record) são: participação em associação criminosa; tráfico de seres humanos; exploração sexual e pedopornografia; tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas; tráfico de armas, munições e explosivos; corrupção; fraude (incluindo a lesiva dos interesses financeiros da UE, na aceção da Convenção de 26 de julho de 1995, relativa à Proteção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias); branqueamento dos produtos do crime e contrafação de moeda (incluindo o euro); criminalidade informática e cibercrime; crimes contra o ambiente (incluindo o tráfico de espécies animais ameaçadas e de espécies e variedades vegetais ameaçadas); auxílio à entrada e à permanência irregulares; homicídio voluntário, graves ofensas à integridade física; tráfico de órgãos e tecidos humanos; rapto, sequestro e tomada de reféns; furto ou roubo organizado ou à mão armada; tráfico de bens culturais (incluindo antiguidades e obras de arte); contrafação, imitação e uso ilegal de marca; falsificação de documentos administrativos e respetivo tráfico; tráfico de substâncias hormonais e de outros estimuladores de crescimento; tráfico de materiais nucleares e radioativos; violação; crimes abrangidos pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional; desvio de avião ou navio; sabotagem; tráfico de veículos furtados ou roubados; e espionagem industrial.
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A PJ recebeu da tutela ordens e financiamento para receber esta gigantesca base de dados – o Passenger Name Record (PNR), que guarda informações de todas pessoas que viajam de avião – que o Governo agora decidiu, com o apoio do PSD, colocar na dependência do SSI, sob tutela do Primeiro-Ministro. Assim, desde 2012 que esta polícia se vem preparando para este projeto que a UE considera um importante instrumento para a investigação criminal, no âmbito da prevenção e investigação do terrorismo e outra criminalidade grave e violenta, tendo recebido e despendido, para o efeito, 1,4 milhões de euros em fundos europeus para equipar as instalações e formar quadros. Porém, sem prévio aviso e sob o pretexto da transposição da diretiva comunitária, o Governo tomou outra opção.
Estamos a falar do registo integral feito pelas companhias aéreas – num total de 19 itens com informações sensíveis do passageiro/a (nome, morada e contactos, dados dos cartões de pagamento, itinerário, o que comeu, entre outros), configurando uma recolha de informação em massa, de suspeitos e não suspeitos, através da qual são analisados determinados padrões com vista à identificação de potenciais criminosos. Segundo a proposta de lei em referência, todas as outras policias – GNR, PSP e SEF – passam a ter acesso a estes dados, pois a base de dados será instalada num novo organismo, o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI), do SSI, onde estão todas as forças e serviços de segurança, o “balcão único” para todos os sistemas de partilha de informação, como a Europol e a Interpol.
Por ofício enviado a todos os grupos parlamentares, a ASFIC (Associação Sindical dos Funcionários da Investigação Criminal) denunciou esta reviravolta legislativa em que vê “interesses difusos” e “estratégias pouco claras”, fazendo a sua derradeira tentativa de levar os deputados a travarem, no debate de especialidade, a aprovação da proposta de lei, que determina a criação do GIP (Gabinete de Informação de Passageiros) no PUC-CPI (Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional), sob a coordenação do SSI.
Revela a ASFIC na predita missiva que as indicações de que seria a PJ a responsável pelo PNR se fundamentaram no anteprojeto de lei que determinava a criação da UIP na dependência deste corpo especial de polícia e no facto de a PJ ter sido a beneficiária de dois programas europeus, em 2012 e 2014. Aduz ainda aquela estrutura sindical que o referido anteprojeto foi já preparado pelo atual governo e foram ouvidas várias entidades.
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Como foi referido, a PJ beneficiou, para o efeito, de dois programas europeus. O primeiro foi o Projeto HOME/2012/ISEC/AG/PNR/4000004448, no valor de 1 153 318,68 euros, que permitiu desenvolver software e adquirir licenças, servidores, computadores e restante equipamento (secretárias, cadeiras, etc.) com vista a equipar os postos de trabalho necessários à prossecução da missão. Segundo a ASFIC, este projeto está finalizado e a solução encontrada está pronta a funcionar, 24 horas por dia, 7 dias por semana, com ligação à base de dados da PJ (apenas terrorismo e criminalidade grave), Sistema de Informação Schengen e Interpol.
No outro projeto, HOME/2014/ISFP/LAWX/7150, no valor de 184 798,91 euros, ​​​​​​​liderado pela Hungria, a PJ participou no estudo duma solução de interoperabilidade de bases de dados PNR, com vista a “assegurar um quadro legal comum e garantir soluções tecnológicas idênticas com vista ao intercâmbio de informações sobre dados PNR entre Estados-membros”.
A este respeito, a ASFIC assinala:
O investimento financeiro foi feito e os prazos foram cumpridos; criando-se as necessárias condições para que a UIP opere na PJ, entidade que, de acordo como a Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), tem a competência em matéria de investigação criminal de todos os crimes graves elencados na diretiva comunitária”.
E fontes próximas da anterior direção da PJ referem que, pelo menos, até ao início deste ano, não houve nenhuma indicação do Governo relativa à mudança de planos, de modo que tudo se processou com base em orientações da tutela no tempo do anterior Executivo e que o atual não alterara até à apresentação da mencionada proposta de lei.
Por isso, os inspetores da PJ consideram que a opção carece de clareza no atinente à orientação política do Governo, mormente após o largo investimento feito pela PJ, sendo exigível ao Estado “um mínimo de certeza e segurança do direito quando estão em causa dados pessoais dos cidadãos”. E discorre a ASFIC:
Num Estado de Direito Democrático onde a ordem de valores repousa essencialmente na Constituição, na segurança jurídica e na liberdade, não podem os cidadãos permitir a sua submissão a interesses difusos e a estratégias pouco claras que ultrapassam o interesse público, tantas vezes estando em causa finalidades que servem as organizações e os lugares de Estado em si mesmos e não os propósitos ou as missões por que foram criados”.
Por outro lado, acusa o Governo de ter enveredado por um paradigma securitário:
No fundo, parece-nos que já não estão em causa as questões suscitadas pelos competentes pareceres acima mencionados, mas tão só a defesa de um paradigma securitário onde se confunde o que é o tratamento de dados estritamente policiais ou o intercâmbio de informações ao nível da cooperação policial com o tratamento e análise de dados pessoais, de todos os cidadãos – e que se frise, cidadãos à partida não suspeitos de qualquer atividade ilícita – que viajam em transportadoras áreas”.
E, no seu apelo seu apelo, adverte a
Que se tenha consciência de que não se trata aqui de um mero controlo administrativo de fronteiras que permite localizar indivíduos já conhecidos entre os passageiros de voos intracomunitários ou extracomunitários; pelo contrário, o que se pretende é elevar o nível da análise de determinados padrões tendo por escopo a deteção de indivíduos não conhecidos, que possam estar diretamente relacionados com o terrorismo e a criminalidade grave”.
Depois os inspetores consideram:
O que verdadeiramente está em causa é uma cedência de privacidade face a uma necessidade muito específica: a identificação de indivíduos desconhecidos relacionados com o terrorismo e a criminalidade grave, razão pela qual uma unidade com a atribuição de tratar dados PNR se deve posicionar na esfera do judiciário e deter competência para a investigação desses crimes”.
Dilematicamente os inspetores reconhecem a abertura de portas ao “alargamento das competências de prevenção e deteção nesta matéria a outras entidades” devido ao fenómeno do terrorismo fundado no radicalismo islâmico”, mas consideram, dado o melindre da matéria PNR em direitos fundamentais, a necessidade de se “ter presente o âmbito de intervenção e os limites funcionais de cada uma destas entidades ao nível do terrorismo, do financiamento do terrorismo e da criminalidade transnacional ou internacional grave”. E reside aqui a grande contradição: consideram que, nesta matéria, a PJ é “a entidade de referência” e que outras polícias “devem integrar a UIP, possibilitando a articulação em diferentes planos por forma a oferecer uma resposta mais eficaz”. E descalçam a bota da contradição, propondo que o trabalho das polícias siga sob a orientação da PJ e não do SSI.
Ora, dependendo as diversas polícias de Ministérios diferentes, a coordenação da UIP deve caber não a uma dessas polícias, por mais competente que seja, mas a uma entidade policial dependente do Primeiro-Ministro, que é o caso do SSI, atualmente dirigido pela procuradora-geral adjunta, nomeada por Pedro Passos Coelho e que António Costa reconduziu.
De resto, a argumentação com os benefícios para a democracia apenas dá para disfarçar a tentadora ótica corporativa. E, no respeitante ao aludido investimento, feito pelo Estado para uma determinada finalidade, ele deve ser afetado à entidade que visa diretamente tal finalidade, seja a PJ, que o esperava, seja a UIP que passa a perseguir tal finalidade. Ademais, cabe ao Governo definir as políticas públicas (mesmo que envolvam alteração, restrição, ampliação ou alargamento de competências em matéria de prevenção, investigação e repressão criminal) e ao Parlamento ratificá-las ou alterá-las pela via legislativa e acompanhá-las pela via fiscalizadora.
Quanto aos pareceres emitidos, “absolutamente contraditórios sobre a entidade que deve ser responsável pelo tratamento destes dados”, é de relevar que o da CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) respalda claramente a perspetiva da ASFIC, ao passo que o do CSM (Conselho Superior da Magistratura) respalda a posição do Governo (empate democrático).
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Embora a discussão na especialidade do diploma em causa não esteja agendada, não há sinais de mudança de ideias, pelo menos da parte do PS e do PSD, suficientes para o diploma passar.
Fonte do grupo parlamentar do PS adiantou que serão apresentadas algumas propostas de alteração, mas não quis revelar o conteúdo, muito menos em relação à eventual hipótese de o PNR poder voltar à PJ.
Já o PSD foi mais assertivo. A este respeito, o deputado Luís Marques Guedes, coordenador na bancada parlamentar para esta área, sustentou:
Está fora de questão. Não faz qualquer sentido que um projeto com este alcance fique na dependência só de uma polícia, quando existe uma entidade como o Ponto Único de Contacto-Cooperação Policial Internacional na dependência do SSI, onde todas as polícias podem desempenhar o seu importante papel na prevenção e combate ao terrorismo e à criminalidade grave.”.
Marques Guedes adianta que os sociais-democratas farão uma proposta de alteração, mas para que os serviços de informações, SIED e SIS, e a AT (Autoridade Tributária) possam integrar a UIP (Porque não?). E justifica:
São entidades que têm um papel fundamental no combate aos crimes em causa. Os serviços de informações da sua deteção, o primeiro pilar da Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo, a AT contra o seu financiamento.”.
E, se a esquerda (BE, PEV e PCP), que tem compreensíveis objeções de princípio ao PNR, dada a obsessão securitária europeia e norte-americana, também não revela se vai propor mudanças à proposta de lei – provavelmente por não acreditar na validade do diploma acrescentado de remendos de melhoria –, o CDS mostra-se mais sensível às preocupações dos inspetores da PJ, mas remete uma posição definitiva para depois do conhecimento de todos os pareceres pedidos pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Dieitos, Liberdades e Garantias a várias entidades. A isto diz a deputada Vânia Dias da Silva:
Entendemos que, em princípio, essa entidade deverá ficar sob a alçada da PJ – que é quem, à partida, tem competência para a investigação desses crimes. Mas esperamos por mais pronúncias para tomarmos uma decisão final.”.
Lembrando que os pareceres recebidos até agora – um da CNPD, outro do CSM – “são absolutamente contraditórios sobre a entidade que deve ser responsável pelo tratamento destes dados. Segundo a CNPD, a proposta de lei não cumpre a diretiva porque o SSI não é a autoridade competente para a prevenção e a repressão de infrações terroristas e criminalidade grave, ao passo que, segundo o CSM, cumpre. Mas há que aguardar os pareceres do Conselho Superior do Ministério Público e da secretária-geral do SSI.
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De facto, o parecer da CNPD é portador duma ótica altamente restritiva do acesso à informação sobre dados da privacidade dos cidadãos, nem sempre consequente com a necessidade de defesa dos mesmos cidadãos. Veja-se o que se passa com a tentação de devassa da privacidade dos cidadãos no âmbito da AT ou nas sucessivas importunações ao cidadão por parte das operadoras de telecomunicações. Porém, quando está em causa a segurança e o interesse dos cidadãos, lá vem o alerta para a necessidade do respeito pela privacidade, em detrimento de outras garantias e do respeito por outros interesses legítimos.
No caso vertente, em relação as críticas à proposta de lei, tudo o que é objeto de reparo por parte da CNPD é revertível na execução e na aplicação da Lei. Quanto às competências policiais, em nada fica beliscada a Lei da Segurança Interna (aprovada pela Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, e cuja última alteração foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2017, de 24 de maio), podendo, não obstante, ser dada nova redação aos seus artigos 25.º e 27.º, bem como promover a melhoria da Lei de Organização da Investigação Criminal (aprovada pela Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, e cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 57/2015, de 23 de junho).

Ora, se a PJ se vem carpindo pela falta de recursos humanos, como é que pretende ter mais trabalho, adveniente da coordenação do PUC-CPI?
E não pode ir o Estado para lá da diretiva, que só exige o registo de e para países fora da UE?
2018.09.15 – Louro de Carvalho  

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