O Governo quer que a Autoridade
Tributária, a GNR, a PSP, a Polícia Marítima (PM) e o SEF acedam às informações
dos passageiros portugueses e estrangeiros dos aviões comerciais. O objetivo é a investigação do terrorismo e
da criminalidade organizada grave e violenta.
Estava previsto que a base de dados atinente a esta matéria estivesse apenas
ligada à PJ (Polícia Judiciária), que tem tido competência
exclusiva nestas matérias. Porém, numa reviravolta discreta e eficaz, o Governo
decidiu criar uma unidade especial, na tutela do SSI (Sistema de Segurança Interna), para o que apresentou ao Parlamento a Proposta de Lei n.º 137/XIII/3.ª (GOV), que já mereceu a aprovação na generalidade no passado dia 6
de julho, mas com os votos contra do BE e do PCP. A isto os inspetores da PJ reagem
acusando o Governo de ter decido “a pressões securitárias” e denunciam “interesses difusos” e “estratégias pouco
claras” no seu plano que arrancou a esta polícia a base de dados de registo de
passageiros da aviação comercial e a põe no SSI sob tutela do Primeiro-Ministro.
Os 26 crimes cuja investigação permite o acesso
ao PNR (registo de
passageiros da aviação comercial ou, em inglês, Passenger Name Record) são: participação em associação criminosa; tráfico de seres humanos; exploração
sexual e pedopornografia; tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
tráfico de armas, munições e explosivos; corrupção; fraude (incluindo a lesiva dos interesses financeiros da UE, na aceção da Convenção
de 26 de julho de 1995, relativa à Proteção dos Interesses Financeiros das
Comunidades Europeias); branqueamento dos produtos do crime e contrafação de moeda (incluindo o euro); criminalidade informática e cibercrime; crimes contra o ambiente (incluindo o tráfico de espécies animais ameaçadas e de espécies e
variedades vegetais ameaçadas); auxílio à entrada e à permanência irregulares; homicídio voluntário, graves
ofensas à integridade física; tráfico de órgãos e tecidos humanos; rapto,
sequestro e tomada de reféns; furto ou roubo organizado ou à mão armada; tráfico
de bens culturais (incluindo antiguidades e obras
de arte); contrafação,
imitação e uso ilegal de marca; falsificação de documentos administrativos e
respetivo tráfico; tráfico de substâncias hormonais e de outros estimuladores
de crescimento; tráfico de materiais nucleares e radioativos; violação; crimes
abrangidos pela jurisdição do Tribunal Penal Internacional; desvio de avião ou
navio; sabotagem; tráfico de veículos furtados ou roubados; e espionagem
industrial.
***
A PJ recebeu
da tutela ordens e financiamento para receber esta gigantesca base de dados – o
Passenger Name Record (PNR), que
guarda informações de todas pessoas que viajam de avião – que o Governo
agora decidiu, com o apoio do PSD, colocar na dependência do SSI, sob tutela do
Primeiro-Ministro. Assim, desde 2012 que esta polícia se vem preparando para
este projeto que a UE considera um importante instrumento para a investigação
criminal, no âmbito da prevenção e investigação do terrorismo e outra
criminalidade grave e violenta, tendo recebido e despendido, para o efeito, 1,4
milhões de euros em fundos europeus para equipar as instalações e formar
quadros. Porém, sem prévio aviso e sob o pretexto da transposição da diretiva
comunitária, o Governo tomou outra opção.
Estamos a
falar do registo integral feito pelas companhias aéreas – num total de 19 itens
com informações sensíveis do passageiro/a (nome, morada e contactos, dados dos
cartões de pagamento, itinerário, o que comeu, entre outros), configurando uma recolha de informação em massa, de
suspeitos e não suspeitos, através da qual são analisados determinados padrões
com vista à identificação de potenciais criminosos. Segundo a proposta de lei
em referência, todas as outras policias – GNR, PSP e SEF – passam a ter acesso
a estes dados, pois a base de dados será instalada num novo organismo, o Ponto Único de Contacto para a Cooperação
Policial Internacional (PUC-CPI), do SSI, onde estão todas as forças e serviços de
segurança, o “balcão único” para todos os sistemas de partilha de informação,
como a Europol e a Interpol.
Por ofício
enviado a todos os grupos parlamentares, a ASFIC (Associação
Sindical dos Funcionários da Investigação Criminal) denunciou esta reviravolta legislativa em que vê “interesses
difusos” e “estratégias pouco claras”, fazendo a sua derradeira tentativa de
levar os deputados a travarem, no debate de especialidade, a aprovação da
proposta de lei, que determina a criação do GIP (Gabinete de Informação de
Passageiros) no PUC-CPI
(Ponto Único
de Contacto para a Cooperação Policial Internacional), sob a coordenação do SSI.
Revela a
ASFIC na predita missiva que as indicações de que seria a PJ a responsável pelo
PNR se fundamentaram no anteprojeto de lei que determinava a criação da UIP na
dependência deste corpo especial de polícia e no facto de a PJ ter sido a
beneficiária de dois programas europeus, em 2012 e 2014. Aduz ainda aquela
estrutura sindical que o referido anteprojeto foi já preparado pelo atual
governo e foram ouvidas várias entidades.
***
Como foi referido, a PJ beneficiou, para o efeito, de dois programas europeus. O primeiro foi o Projeto HOME/2012/ISEC/AG/PNR/4000004448,
no valor de 1 153 318,68 euros, que permitiu desenvolver software e
adquirir licenças, servidores, computadores e restante equipamento (secretárias,
cadeiras, etc.) com vista a
equipar os postos de trabalho necessários à prossecução da missão. Segundo a
ASFIC, este projeto está finalizado e a solução encontrada está pronta a
funcionar, 24 horas por dia, 7 dias por semana, com ligação à base de dados da
PJ (apenas
terrorismo e criminalidade grave), Sistema
de Informação Schengen e Interpol.
No outro
projeto, HOME/2014/ISFP/LAWX/7150, no
valor de 184 798,91 euros, liderado pela Hungria, a PJ participou no
estudo duma solução de interoperabilidade de bases de dados PNR, com vista a “assegurar um quadro legal comum e garantir
soluções tecnológicas idênticas com vista ao intercâmbio de informações sobre
dados PNR entre Estados-membros”.
A este
respeito, a ASFIC assinala:
“O investimento financeiro foi feito e os prazos foram cumpridos;
criando-se as necessárias condições para que a UIP opere na PJ, entidade que,
de acordo como a Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), tem a
competência em matéria de investigação criminal de todos os crimes graves elencados
na diretiva comunitária”.
E fontes
próximas da anterior direção da PJ referem que, pelo menos, até ao início deste
ano, não houve nenhuma indicação do Governo relativa à mudança de planos, de
modo que tudo se processou com base em orientações da tutela no tempo do
anterior Executivo e que o atual não alterara até à apresentação da mencionada
proposta de lei.
Por isso, os
inspetores da PJ consideram que a opção carece de clareza no atinente à
orientação política do Governo, mormente após o largo investimento feito pela
PJ, sendo exigível ao Estado “um mínimo de certeza e segurança do direito
quando estão em causa dados pessoais dos cidadãos”. E discorre a ASFIC:
“Num Estado de Direito Democrático onde a ordem de valores repousa
essencialmente na Constituição, na segurança jurídica e na liberdade, não podem
os cidadãos permitir a sua submissão a interesses difusos e a estratégias pouco
claras que ultrapassam o interesse público, tantas vezes estando em causa
finalidades que servem as organizações e os lugares de Estado em si mesmos e
não os propósitos ou as missões por que foram criados”.
Por outro lado, acusa o Governo de ter enveredado por um paradigma
securitário:
“No fundo, parece-nos que já não estão em causa as questões suscitadas
pelos competentes pareceres acima mencionados, mas tão só a defesa de um
paradigma securitário onde se confunde o que é o tratamento de dados
estritamente policiais ou o intercâmbio de informações ao nível da cooperação
policial com o tratamento e análise de dados pessoais, de todos os cidadãos – e
que se frise, cidadãos à partida não suspeitos de qualquer atividade ilícita –
que viajam em transportadoras áreas”.
E, no seu
apelo seu apelo, adverte a
“Que se tenha consciência de que não se trata aqui de um mero controlo
administrativo de fronteiras que permite localizar indivíduos já conhecidos
entre os passageiros de
voos intracomunitários ou extracomunitários; pelo contrário, o
que se pretende é elevar o nível da análise de determinados padrões tendo por
escopo a deteção de indivíduos não conhecidos, que possam estar diretamente
relacionados com o terrorismo e a criminalidade grave”.
Depois os
inspetores consideram:
“O que verdadeiramente está em causa é uma cedência de privacidade face
a uma necessidade muito específica: a identificação de indivíduos desconhecidos
relacionados com o terrorismo e a criminalidade grave, razão pela qual uma
unidade com a atribuição de tratar dados PNR se deve posicionar na esfera do
judiciário e deter competência para a investigação desses crimes”.
Dilematicamente
os inspetores reconhecem a abertura de portas ao “alargamento das competências
de prevenção e deteção nesta matéria a outras entidades” devido ao fenómeno do
terrorismo fundado no radicalismo islâmico”, mas consideram, dado o melindre da
matéria PNR em direitos fundamentais, a necessidade de se “ter presente o âmbito de intervenção e os limites funcionais de cada
uma destas entidades ao nível do terrorismo, do financiamento do terrorismo e
da criminalidade transnacional ou internacional grave”. E reside aqui a
grande contradição: consideram que, nesta matéria, a PJ é “a entidade de
referência” e que outras polícias “devem integrar a UIP, possibilitando a
articulação em diferentes planos por forma a oferecer uma resposta mais eficaz”.
E descalçam a bota da contradição, propondo que o trabalho das polícias siga
sob a orientação da PJ e não do SSI.
Ora,
dependendo as diversas polícias de Ministérios diferentes, a coordenação da UIP
deve caber não a uma dessas polícias, por mais competente que seja, mas a uma
entidade policial dependente do Primeiro-Ministro, que é o caso do SSI,
atualmente dirigido pela procuradora-geral adjunta, nomeada por Pedro Passos
Coelho e que António Costa reconduziu.
De resto, a
argumentação com os benefícios para a democracia apenas dá para disfarçar a
tentadora ótica corporativa. E, no respeitante ao aludido investimento, feito
pelo Estado para uma determinada finalidade, ele deve ser afetado à entidade
que visa diretamente tal finalidade, seja a PJ, que o esperava, seja a UIP que
passa a perseguir tal finalidade. Ademais, cabe ao Governo definir as políticas
públicas (mesmo que envolvam alteração, restrição, ampliação ou alargamento de
competências em matéria de prevenção, investigação e repressão criminal) e ao Parlamento ratificá-las ou alterá-las pela via
legislativa e acompanhá-las pela via fiscalizadora.
Quanto aos
pareceres emitidos, “absolutamente contraditórios sobre a entidade que deve ser
responsável pelo tratamento destes dados”, é de relevar que o da CNPD (Comissão
Nacional de Proteção de Dados) respalda
claramente a perspetiva da ASFIC, ao passo que o do CSM (Conselho
Superior da Magistratura) respalda a
posição do Governo (empate democrático).
***
Embora a
discussão na especialidade do diploma em causa não esteja agendada, não há
sinais de mudança de ideias, pelo menos da parte do PS e do PSD, suficientes
para o diploma passar.
Fonte do
grupo parlamentar do PS adiantou que serão apresentadas algumas propostas de
alteração, mas não quis revelar o conteúdo, muito menos em relação à eventual hipótese
de o PNR poder voltar à PJ.
Já o PSD foi
mais assertivo. A este respeito, o deputado Luís Marques Guedes, coordenador na
bancada parlamentar para esta área, sustentou:
“Está fora de questão. Não faz qualquer sentido que um projeto com este
alcance fique na dependência só de uma polícia, quando existe uma entidade como
o Ponto Único de Contacto-Cooperação Policial Internacional na dependência do
SSI, onde todas as polícias podem desempenhar o seu importante papel na
prevenção e combate ao terrorismo e à criminalidade grave.”.
Marques
Guedes adianta que os sociais-democratas farão uma proposta de alteração, mas
para que os serviços de informações, SIED e SIS, e a AT (Autoridade
Tributária) possam integrar a UIP (Porque não?). E justifica:
“São entidades que têm um papel fundamental no combate aos crimes em
causa. Os serviços de informações da sua deteção, o primeiro pilar da Estratégia
Nacional de Combate ao Terrorismo, a AT contra o seu financiamento.”.
E, se a
esquerda (BE, PEV e PCP), que tem compreensíveis
objeções de princípio ao PNR, dada a obsessão securitária europeia e
norte-americana, também não revela se vai propor mudanças à proposta de lei –
provavelmente por não acreditar na validade do diploma acrescentado de remendos
de melhoria –, o CDS mostra-se mais sensível às preocupações dos inspetores da
PJ, mas remete uma posição definitiva para depois do conhecimento de todos os
pareceres pedidos pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Dieitos,
Liberdades e Garantias a várias entidades. A isto diz a deputada Vânia Dias da
Silva:
“Entendemos que, em princípio, essa entidade deverá ficar sob a alçada
da PJ – que é quem, à partida, tem competência para a investigação desses
crimes. Mas esperamos por mais pronúncias para tomarmos uma decisão final.”.
Lembrando
que os pareceres recebidos até agora – um da CNPD, outro do CSM – “são
absolutamente contraditórios sobre a entidade que deve ser responsável pelo
tratamento destes dados. Segundo a CNPD, a proposta de lei não cumpre a
diretiva porque o SSI não é a autoridade competente para a prevenção e a
repressão de infrações terroristas e criminalidade grave, ao passo que, segundo
o CSM, cumpre. Mas há que aguardar os pareceres do Conselho Superior do
Ministério Público e da secretária-geral do SSI.
***
De facto, o
parecer da CNPD é portador duma ótica altamente restritiva do acesso à
informação sobre dados da privacidade dos cidadãos, nem sempre consequente com
a necessidade de defesa dos mesmos cidadãos. Veja-se o que se passa com a
tentação de devassa da privacidade dos cidadãos no âmbito da AT ou nas
sucessivas importunações ao cidadão por parte das operadoras de telecomunicações.
Porém, quando está em causa a segurança e o interesse dos cidadãos, lá vem o
alerta para a necessidade do respeito pela privacidade, em detrimento de outras
garantias e do respeito por outros interesses legítimos.
No caso
vertente, em relação as críticas à proposta de lei, tudo o que é objeto de
reparo por parte da CNPD é revertível na execução e na aplicação da Lei. Quanto
às competências policiais, em nada fica beliscada a Lei da Segurança Interna (aprovada
pela Lei n.º 53/2008,
de 29 de agosto, e cuja última alteração foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 49/2017, de 24 de maio), podendo, não obstante, ser dada nova redação aos seus
artigos 25.º e 27.º, bem como promover a melhoria da Lei de Organização da
Investigação Criminal (aprovada pela Lei n.º 49/2008, de
27 de agosto, e cuja última alteração foi introduzida pela Lei n.º 57/2015, de
23 de junho).
Ora, se a PJ
se vem carpindo pela falta de recursos humanos, como é que pretende ter mais
trabalho, adveniente da coordenação do PUC-CPI?
E não
pode ir o Estado para lá da diretiva, que só exige o registo de e para países
fora da UE?
2018.09.15 –
Louro de Carvalho
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