Está patente ao público, desde o
passado dia 20 de setembro, a exposição Robert Mapplethorpe: Pictures, com menos 20 fotografias em relação ao que
fora programado (179
fotografias), que ocupam uma sala especial acessível a maiores
de 18 anos. Isto, depois de o curador da exposição e diretor artístico do Museu de
Arte Contemporânea de Serralves, João
Ribas, ter garantido que não haveria “salas especiais”, sentindo-se
agora desautorizado pela administração da Fundação de Serralves, o que o levou
a apresentar a sua demissão no dia seguinte.
A demissão Ribas vem na sequência
de a administração ter interditado a menores de 18 anos parte da exposição, por
si comissariada, dedicada ao fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe e
ter imposto a retirada de obras com conteúdo sexualmente explícito, ao
contrário do que o curador e a própria instituição anunciaram em comunicado de
imprensa.
Terá sido esta a primeira
manifestação pública do ambiente de tensão entre a administração e a direção artística
que, pelos vistos, já existia há algum tempo.
Questionado sobre a retirada das
preditas 20 fotografias, segundo o Público,
do dia 22, o gabinete de imprensa da Fundação de Serralves, num primeiro
momento, não revelou quem tomara a decisão de excluir fotografias da lista
inicial, mas depois, a administração de Serralves, presidida por Ana Pinho,
avançou que as fotografias tinham sido retiradas pelo próprio Ribas, com a
seguinte justificação:
“Por uma
questão de layout expositivo, o curador desta exposição retirou um
conjunto de 20 obras, correspondentes a várias fases do trabalho de Robert
Mapplethorpe, apenas e só por uma questão de uniformidade desta mostra e não
baseada em qualquer outro fator”.
É, assim, compreensível que, face
ao teor da resposta, Ribas tenha apresentado a sua demissão quanto antes.
***
Com efeito, inesperadamente, a
exposição abrange uma zona reservada (duas salas) a que os menores de 18 anos não
têm acesso, mesmo que acompanhados por adultos – opção desconcertante face ao
anúncio de que não haveria “censura, obras tapadas, salas especiais ou qualquer
tipo de restrição a visitantes de acordo com a faixa etária”.
Quanto a este espaço interdito a
menores de 18 anos, segundo o Público,
a Fundação aduziu que “a sinalização existente na exposição foi colocada de
acordo com a legislação em vigor”, remetendo para o decreto-lei 23/2014, de 14
de fevereiro – que “aprova o regime de funcionamento dos espetáculos de
natureza artística e de instalação e fiscalização dos recintos fixos destinados
à sua realização bem como o regime de classificação de espetáculos de natureza
artística e de divertimentos públicos” –, mas posteriormente contradisse-se, dizendo tratar-se de
“medidas que permitem ao visitante a liberdade de escolha”, mas não
justificando a existência da zona interdita a menores de 18 anos.
Ribas afirmara, em entrevista ao Ípsilon (um caderno semanal
do Público), que “não
será reservada uma sala à parte para as fotografias de teor mais sexual”,
designadamente as da série X Portfolio, que mostram práticas sexuais com
alusões explícitas a várias parafilias, incluindo o masoquismo. Ora, foi
justamente isso que sucedeu, tanto mais surpreendentemente quanto o curador não
se limitou a prometer não seguir as práticas censórias de outros museus,
designadamente nos Estados Unidos, onde exposições de Robert Mapplethorpe (1946-1989) foram canceladas já depois da
morte do fotógrafo, tendo até aduzido que
as obras da série X Portfolio não eram “imagens violentas”, mas testemunho
de “versões não normativas de prazer, de sedução, de dar e receber prazer”, que
apenas podiam “não se enquadrar na sensibilidade dominante do que é um corpo
normativo, ou de um corpo masculino que sai dos padrões de experiência
heteronormativa e branca”. E, alegando que tais imagens, datadas
maioritariamente dos anos 70, se integrariam na organização cronológica da
exposição, sustentou que “um museu não
pode condicionar, separar ou delimitar o acesso às obras, dizer o que as
pessoas podem ver ou não” – contrário do que Serralves está a fazer.
Em todo o caso, ciente de que “as
sensibilidades são múltiplas e reais”, João Ribas adiantara que os visitantes
iriam encontrar “um aviso sensato e informativo, colocado à entrada da primeira
sala”, referindo a “existência de certos conteúdos”. E assim sucede. Com
efeito, tanto num placard colocado junto à bilheteira como no início do
percurso expositivo, se pode ler:
“Algumas
obras da exposição Robert Mapplethorpe: Pictures contêm imagens
de natureza explicitamente sexual. A admissão de menores de 18 anos está
condicionada à companhia de um adulto”.
Porém, na porta de acesso à zona
reservada, lê-se:
“Aviso.
Alertamos para a dimensão provocatória e o caráter eventualmente chocante da sexualidade
contida em algumas obras expostas. A admissão nesta sala está reservada a
maiores de 18 anos.”.
Assim, em conformidade com o
aviso, as instruções verbais, contrariando o aviso de entrada na exposição e do
placard junto da bilheteira, são mesmo no sentido de não deixar entrar menores
de 18 anos, mesmo que acompanhados. E, em caso de dúvida, percebe-se pelo
bilhete, pois o dos menores de 18 anos é mais barato e tem uma aparência
diferente.
Seja como for, desde a inauguração, no dia 21, até ao dia 23, a exposição
de Serralves dedicada a Robert Mapplethorpe recebeu perto de 6.000 visitantes, como
adiantou, no dia 24, à Lusa fonte da
instituição.
***
Ora, o decreto-lei 23/2014, de 14
de fevereiro, invocado pela Fundação de Serralves para a sua decisão, confere,
nos termos do art.º 23.º, o estabelecimento da classificação à Comissão de Classificação e, entre os
seus escalões, discriminados no art.º 25.º, está o “para maiores de 18 anos”, sendo que o n.º 3 do art.º 25.º
acrescenta que “os espetáculos e divertimentos públicos são ainda classificados
‘Para maiores de 18 anos – Pornográfico’
sempre que possuam conteúdos considerados pornográficos, de acordo com os
critérios fixados pela comissão”. Ora, em Serralves, a indicação à porta da
sala de acesso condicionado menciona apenas o alerta para “a dimensão
provocatória e o caráter eventualmente chocante da sexualidade contida em
algumas obras expostas” e a reserva “a maiores de 18 anos”, não tendo apensa a
classificação com a categorização “pornográfico”.
O mencionado normativo inclui as obrigações
dos promotores, como a comunicação prévia à IGAC (Inspeção-Geral
das Atividades Culturais)
com vista ao registo da existência destes eventos e a definição dos vários
limites etários que constam da classificação das obras. A classificação etária,
nos termos do art.º 22.º, é obrigatória e “consiste
em aconselhar a idade a partir da qual se considera que o conteúdo não é suscetível
de provocar dano prejudicial ao desenvolvimento psíquico ou de influir
negativamente na formação da personalidade dos menores”. Por outro lado, a
idade dos menores deve ser atestada por documento “ou suprida pela responsabilização
dos pais ou de um adulto identificado que os acompanhe”.
O procedimento da Fundação para
com a exposição em causa não deixa de ser incoerente com o que se passa em
relação a outra exposição. Assim, enquanto proíbe a menores as imagens de sexualidade
explícita de Mapplethorpe, limita-se a aconselhar “acompanhamento por um
familiar ou adulto” aos menores que queiram ver, na segunda parte da exposição
dedicada à colecção Sonnabend, igualmente patente no museu, uma peça como Red
Doggy (Canzana), que exibe uma imagem deveras explícita, em grande formato
e a cores, do artista Jeff Koons a penetrar por trás a artista porno
Cicciolina.
A este respeito, um ex-dirigente
do Ministério da Cultura ligado aos museus confessou ao Público que não se lembra de “nenhuma
exposição que barrasse a entrada a menores de idade em determinadas salas por
causa dos conteúdos”. Como Serralves é uma fundação privada, se bem que
tenha fundos públicos, “também não há nada que a impeça de tomar essa decisão”,
embora a aludida fonte refira não conheça legislação específica sobre a limitação
aplicada às exposições.
***
As reações não se fizeram esperar. Entre estas, ganha relevância a carta aberta
dirigida à presidente da Fundação de Serralves em que se recorda que Robert
Mapplethorpe se tornou uma figura canónica da arte norte-americana do final do
século XX, com trabalho elogiado pelas formas como “explora temas de erotismo,
sexo e sexualidade”.
Com efeito, segundo o Expresso on
line, mais de 400 personalidades subscreveram a predita carta contra as
restrições à exposição de Robert Mapplethorpe, que provocaram a demissão do
curador e diretor artístico do museu.
Contam-se entre os signatários da carta dirigida a Ana Pinho, que está a
circular na plataforma Google forms: os artistas Wolfgang Tillmans, Ana
Vidigal, Pedro Pinheiro e Tania Bruguera, a historiadora de arte Maria José
Goulão, da Universidade do Porto, a historiadora e professora universitária
Irene Flunser Pimentel, da Universidade Nova de Lisboa, o diretor do CA2M – Centro
de Arte Dos de Mayo, de Madrid, Manuel Segade, o curador e antigo diretor dos
museus do Chiado e Coleção Berardo, Pedro Lapa. E referem que é com “tristeza
que continuamos a ver o trabalho do fotógrafo” – que recentemente teve mostras
individuais nos museus J.Paul Getty e de Los Angeles (LACMA), nos EUA – “aparentemente censurado” por
instituições como Serralves, numa base exclusivamente “moral”.
Apesar das muitas exposições e páginas de estudos dedicados ao trabalho de
Mapplethorpe, as imagens do fotógrafo norte-americano estiveram no centro das
designadas “Guerras Culturais” dos EUA, nas décadas de 1980 e 1990, tendo sido então
usadas por políticos conservadores, para pedir o fim do financiamento público
das artes.
Ora, os subscritores da carta lamentam que as imagens continuem a ser
vistas como ameaça à “moralidade” e à “decência” e contestam o facto de ter
sido invocada indevidamente legislação portuguesa para classificar como “pornográficas”
algumas obras. E sustentam:
“Embora existam debates eruditos legítimos
sobre as fronteiras entre arte e pornografia, estes não devem ser resolvidos com
decisões executivas a censurar pelos Conselhos de Administração dos museus,
devendo, em vez disso, continuar a ser explorados em toda a sua profundidade e
complexidade nos espaços expositivos e em estudos críticos”.
Por outro lado, aduzindo que “vivemos num momento de profunda incerteza
política, com o surgimento do populismo de direita, o ultranacionalismo e as
ameaças às liberdades artísticas e académicas” lamentam que “a Fundação de Serralves tenha perdido a
oportunidade de defender os valores que deveriam tê-la sustentado como um lar
para a cultura, o pensamento e a liberdade, e preferir sucumbir ao puritanismo
moral e ao conservadorismo social”.
Também a plataforma Artforum e os
jornais El País, ABC e o ‘site’ The World News
se contam entre as publicações internacionais que têm noticiado a polémica em
torno da exposição de Mapplethorpe, patente no Museu de Serralves, assim como a
carta em subscrição.
E, nas redes sociais, surgiram reações como a do fotógrafo Daniel Blaufuks,
que cancelou a prevista visita guiada à mostra, e a do encenador e realizador
de cinema Jorge Silva Melo, que escreveu na sua página do Facebook: “Pois é, Serralves: as administrações
deveriam ser constituídas por pessoas ‘maiores e vacinadas’. Até podem ter
menos de 18, cá por mim. Mas ‘maiores e vacinadas’, se faz favor”. Também
David Santos, antigo diretor do Museu do Chiado e atual subdiretor-geral do
Património Cultural, escreveu um comentário na sua página pessoal, em que se
lê: “Serralves volta a revelar-se...
Solidariedade com João Ribas!”.
O Conselho de Administração da Fundação de Serralves disse, em comunicado
do dia 22, que “não retirou nenhuma obra da exposição”, composta por 159
fotografias, “todas elas escolhidas pelo curador”, João Ribas. Omitiu o facto
de estarem previstas 179.
No dia 24, à entrada de uma das salas da exposição, estava uma placa com a
indicação:
“Dado o caráter sexualmente explícito de
obras expostas nesta área, o acesso à mesma é reservado a maiores de 18 anos e
a menores acompanhados dos respetivos representantes legais”.
Contudo, num primeiro aviso, afixado no mesmo local, no final da semana
passada, lia-se o já transcrito aviso: “Alertamos
para a dimensão provocatória e o caráter eventualmente chocante da sexualidade
contida em algumas obras expostas. A admissão nesta sala está reservada a
maiores de 18 anos”.
Por seu turno, o ex-diretor João Fernandes, um homem que esteve dentro da
casa desde a sua fundação, critica a censura a Mapplethorpe e alerta para perda
de credibilidade da instituição.
Confessando que “tudo isto é muito preocupante” e que a comunidade
artística internacional está muito preocupada com o que se passa em Serralves,
alerta a administração, a sociedade civil e política para a “quebra da
confiança necessária entre a administração e a direção da instituição” e
acredita que, só restabelecendo essa confiança, Serralves poderá “manter o seu
estatuto a nível mundial como uma casa da cultura e da arte contemporâneas”.
Segundo o atual diretor-adjunto do Museu Reina Sofia, em Madrid, a
preocupação estende-se à necessária independência de toda e qualquer direção
artística, pois, no caso vertente, “terá havido falta de sintonia, cumplicidade
e confiança entre administração e direção”.
***
Como, de acordo com a IGAC, “as exposições de arte não carecem de
classificação etária” e dada a polémica gerada, a administração da Fundação de
Serralves anunciou um encontro com a imprensa para o dia 26.
No entanto, os curadores temem pelo futuro de Serralves tendo em conta as
atitudes da administração, o descontentamento dos artistas e dos críticos e a saída
de pessoal (só nos últimos três anos houve a saída de mais de 15 funcionários, cerca de
20% do pessoal),
***
Sempre houve polémica em torno de obras de arte. Contudo, preferia que os
críticos insistissem na liberdade de expressão artística e na excelência da
arte, abstendo-se de pôr o ato censório em categorias de conservadorismo e
progressismo (há puristas e libertinos em todos os setores). E, como a sociedade é libertária, com elites hipócritas e um Estado alegadamente
neutro, resta às famílias e às Igrejas (já não digo às escolas, que não o
assumem) a educação para a resiliência moral.
2018.09.24 –
Louro de Carvalho
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