segunda-feira, 24 de setembro de 2018

A teimosia em não aceitar o verdadeiro messianismo de Jesus


Para os estudiosos da Bíblia, a profissão de fé adiantada por Simão Pedro, em Cesareia de Filipe, de que Jesus é o “Messias” (Mc 8,29), o “Messias, o Filho de Deus vivo” (Mt 16,16) ou o “Messias de Deus” (Lc 9,20), marca um momento de viragem no percurso dos discípulos com o Mestre. Com efeito, parecia que, a partir desta confissão de fé que reconhece em Jesus o Messias de Deus, estavam criadas as condições para o aprofundamento do mistério de Cristo, mas efetivamente não estavam. No entanto, o Senhor prossegue a sua propedêutica, sabedor de que o Espírito Santo iria, a seu tempo, abrir os olhos e os ouvidos dos discípulos para entenderem as Escrituras e fortalecê-los com a força do Alto a fim de serem verdadeiros arautos do Evangelho em todo o mundo.
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Depois de os interpelar sobre o que por ali diziam os outros quem era Jesus, o desafio que Jesus lançou aos discípulos sobre “quem dizeis vós que eu sou” era pertinente. Eles, porém, sabiam dizer o que os outros pensavam e diziam, mas tinham receio de dizerem o que pensavam eles próprios, até que Pedro se adiantou e o professou em nome de todos.
O texto de Marcos não se expande como o de Mateus, em que sobre a rocha petrina o Senhor edificará a Igreja. Aqui, apenas ordena que não digam nada a ninguém.
Logo a seguir, fica patente que Pedro não percebe e não aceita o genuíno messianismo de Jesus. Quando o Mestre faz o primeiro anúncio da Paixão, Morte e Ressurreição, em virtude da rejeição dos homens, é Pedro quem se adianta e, interpretando os interesses dos homens em detrimento dos interesses de Deus, começou a repreendê-lo, pois não percebia e não aceitava outro estatuto para o Messias que não fosse o cumprimento do desígnio político de restaurar e consolidar a independência e supremacia de Israel, como esperavam tantos.
Porém, o messianismo de Jesus, o que liberta o homem do pecado e das suas consequências, é o profetizado em Isaías (Is 50,5-9): saber dar palavras de alento aos desanimados, mas, para isso, passar pela experiência do sofrimento, aprendendo como os discípulos, apresentando as espáduas e a face aos que lhe arrancam a barba, não desviando o rosto dos que o ultrajam e lhe cospem e sentindo que o Senhor Deus vem em seu auxílio. Este será o caminho para que todos os inimigos caiam “esfrangalhados como roupa velha, roída pela traça”. 
E é num panorama destes que Jesus lança o repto à multidão:
Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. […] Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há de salvá-la. […] Quem se envergonhar de mim e das minhas palavras entre esta geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.” (Mc 8,34.35b.38).
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Depois da transfiguração perante Pedro, Tiago e João num monte elevado, em que se fez ouvir a voz do Pai, “Este é o meu Filho muito amado: escutai-o” (Mc 9,9), Jesus “ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. E eles guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos” (Mc 9,10). Não estavam a perceber mesmo nada!
Entretanto, o Mestre não desistiu de instruir os discípulos e fez pela segunda vez o anúncio da sua morte, limite extremo da humildade, dedicação e amor pelos amigos (“Prova de amor maior não há do que dar a vida pelos seus amigos” – Jo 15,13), dizendo-lhes: 
“«O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens que o hão de matar»; mas, três dias depois de ser morto, ressuscitará. E eles, como não entendiam esta linguagem, tinham receio de o interrogar.” (Mc 9,310-31).
Porém, os discípulos, teimando no reinado político como os demais reinados, discutiam entre si em segredo (porque se envergonhavam de o propalar em alta voz) sobre quem seria o maior no Reino dos Céus. Por isso, quando chegaram a Cafarnaum e estando em casa, Jesus interpelou-os sobre o que discutiam pelo caminho – interpelação que os deixou em silêncio porque, no caminho, tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior. Foi então que chamou os Doze e disse: ‘Se alguém quiser ser o primeiro, há de ser o último de todos e o servo de todos’. E, colocando um menino no meio deles, abraçou-o e disse-lhes: ‘Quem receber um destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me receber, não me recebe a mim mas àquele que me enviou’. (cf Mc 9,33-37). Recorde-se que, ao tempo, as crianças nem sequer eram consideradas pessoas, não tendo voz ativa em matéria alguma.
No Evangelho de Mateus (vd Mt 20,20-28), que situa o ensinamento depois do seu 3.º anúncio da Paixão e Ressurreição, foi a mãe de João e Tiago quem pediu ao Senhor que ordenasse que se sentasse um à sua direita e o outro à sua esquerda no seu Reino. Porém, Jesus perguntou-lhes se podiam beber o cálice que Ele estava para beber. E, tendo respondido que sim, Jesus replicou:
Na verdade, bebereis o meu cálice, mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence a mim concedê-lo: é para quem meu Pai o tem reservado”.
E, porque os outros dez ficaram indignados com os dois irmãos, Jesus chamou-os e disse-lhes:
Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro seja vosso servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão.”.
Marcos (Mc 10, 35-45), tal como Mateus, também desenvolve esta lição do serviço a seguir ao 3.º anúncio da Paixão e Ressurreição, mas por iniciativa dos filhos de Zebedeu e não por iniciativa da mãe – o que Lucas (Lc 22,24-27) insere a seguir ao anúncio da traição de Judas.
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Pensando na índole predominantemente política do Reino, quando o destacamento romano e os guardas ao serviço dos sumos-sacerdotes e dos fariseus, munidos de lanternas, archotes e armas, entrou no Horto das Oliveiras para prender Jesus, Simão Pedro, que trazia uma espada, desembainhou-a e arremeteu contra um servo do Sumo-Sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. Mas Jesus, chamando a atenção para o caráter singular do seu Reino, disse a Pedro: “Mete a espada na bainha. Não hei de beber o cálice de amargura que o Pai me ofereceu?” (cf Jo 18,3.10.11). E, depois de Jesus preso, Pedro negou o Mestre; e, ao verem Jesus a responder no Sinédrio e no Tribunal de Pilatos com a multidão a clamar pela crucifixão, todos, desiludidos, fugiram. Apenas João, o Discípulo predileto, se manteve firme junto à Cruz (cf Jo 19,25-27).
Ainda para mais, quando as mulheres disseram aos apóstolos que Jesus tinha ressuscitado, pensaram que se tratava de um desvario delas e não acreditaram nelas (cf Lc 24,11). E, mesmo no momento da Ascensão, perguntaram-lhe se era então que ia restaurar o Reino de Israel. Mas Jesus respondeu-lhes (cf At 1,6):
Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.” (At 1,7-8).    
Apesar de tudo, Jesus não desistiu deles – Ele nunca desiste – e deixou que viesse o Espírito Santo reensiná-los e dar-lhes a força necessária para a missão até aos confins do mundo. Nunca foram as dúvidas e as confusões dos discípulos que O fizeram parar.
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Sobre o tema falou o Papa na homilia da Missa no Parque Santakos em Kaunas (Lituânia).
Marcos dedica parte considerável do seu texto ao ensinamento dirigido aos discípulos, como se, como acentua Francisco, “Jesus quisesse que os seus renovassem a sua opção, sabendo que este seguimento comportaria momentos de provação e sofrimento”. E, nas três ocasiões em que anunciou a sua Paixão, eles “expressaram a sua perplexidade e resistência”, mas “o Senhor quis, nessas três ocasiões, “deixar-lhes” o correto ensinamento.
Na verdade, “a vida cristã sempre atravessa momentos de cruz”, que parecem, por vezes, “intermináveis”. E, falando na Lituânia, o Papa referiu que “as gerações passadas viram gravar a fogo o tempo da ocupação, a angústia daqueles que eram deportados, a incerteza por aqueles que não voltavam, a vergonha da delação, da traição”, aplicando-se-lhes o teor do Livro da Sabedoria (cf Sab 2,20-20) na passagem que mostra o justo perseguido e a sofrer insultos e tormentos só por ser bom, com o agravo de não sentir a presença defensora de Deus. Também, nesse sentido, o povo lituano “pode corroborar em uníssono com o apóstolo Tiago, na passagem da sua Carta: cobiçam, matam, invejam, lutam e fazem guerra” (cf Tg 4,2).
E tem razão Francisco: a Paixão de Cristo espelha-se no sofrimento das pessoas e dos povos.
Porém, como sublinha o Papa, os discípulos não queriam ouvir falar “de sofrimento e de cruz” pois o seu interesse era poder e glória, “o modo mais comum de se comportar daqueles que não conseguem curar a memória da sua história e, talvez por isso mesmo, não aceitam sequer comprometer-se no trabalho do momento presente”. E veja-se como o Pontífice classifica esta atitude da parte de quem discute “sobre quem mais brilhou, quem foi mais puro no passado, quem possui mais direito do que os outros a ter privilégios”:
É uma atitude estéril e vã, que se recusa a envolver-se na construção do presente, perdendo o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel. Não podemos ser como aqueles peritos espirituais que se limitam a julgar de fora e passam o tempo inteiro a falar sobre o que se deveria fazer.”.
Ora, prosseguindo, a homilia papal assinala a proposta de Jesus de um antídoto contra as lutas de poder e recusa do sacrifício: põe no centro, equidistante, “um rapazinho que habitualmente ganhava alguns trocados prontificando-se para recados que ninguém queria fazer”, hoje personalizado talvez nas “minorias étnicas da nossa cidade” ou nos “desempregados que são forçados a emigrar”, nos “idosos abandonados” ou nos “jovens que não encontram um sentido na vida, porque perderam as suas raízes”. E ensinou os discípulos o que é essencial: acolher estas crianças, estes que não têm protagonismos; e, neste acolhimento, acolhe-se Cristo e o Pai.
Depois, requer-se a atitude de despojamento e de saída, para a qual Francisco deu um exemplo visualizante para um ensinamento programático: 
Lá, na cidade de Vilna, tocou ao rio Vilna oferecer as suas águas e perder o nome relativamente ao Neris; aqui, é o próprio Neris que perde o nome oferecendo as suas águas ao Nemunas. É precisamente disto que se trata: ser uma Igreja ‘em saída’, não ter medo de sair e gastar-se mesmo quando parece que nos dissolvemos, não ter medo de nos perdermos atrás dos mais pequenos, dos esquecidos, daqueles que vivem nas periferias existenciais. Mas sabendo que aquele sair implicará também em determinados casos deter o passo, colocar de lado anseios e urgências para saber olhar nos olhos, escutar e acompanhar quem ficou na beira da estrada. Às vezes, será necessário comportar-se como o pai do filho pródigo, que permanece junto da porta à espera do seu regresso, para lhe abrir logo que chegue.”.
Mais explicou porque ansiamos por receber Jesus na sua palavra, na Eucaristia, nos pequeninos:
Para que Ele reconcilie a nossa memória e nos acompanhe num presente que continue a apaixonar-nos pelos seus desafios, pelos sinais que nos deixa; para que O sigamos como discípulos, porque nada há de verdadeiramente humano que não tenha ressonância no coração dos discípulos de Cristo e, assim, sentimos como nossas as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e dos atribulados (GS, 1). E porque, como comunidade, nos sentimos verdadeira e intimamente solidários com a humanidade […] e com a sua história, queremos doar a vida no serviço e na alegria e, assim, fazer saber a todos que Jesus Cristo é a nossa única esperança.”.
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Também o reitor do Santuário de Fátima afirmou, na Missa dominical, celebrada no Recinto de Oração, perante milhares de peregrinos portugueses e estrangeiros que, apesar do calor, peregrinaram à Cova da Iria, que “servir e dar a vida é o maior sinal de grandeza dos cristãos”.
Com efeito a linguagem do serviço, “como atitude e disposição” para se dar sem reservas, “não colher simpatias”, é a marca distintiva do “ser cristão e seguir a Jesus”.
Contudo, o sacerdote, lembrando que a História dos homens é predominantemente marcada pelo desejo de domínio, “de sermos maiores, de impormos a nossa vontade ou desejarmos o reconhecimento”, confessou: “Se perguntarmos a alguém se quer ser servo, a resposta é que não”. Efetivamente não é o exemplo do serviço o que vem da parte dos que estão no topo.
Segundo o Padre Carlos Cabecinhas, “a ideia de servir não reúne nem simpatias nem consensos, mas a verdadeira grandeza  a que devemos aspirar é sermos servos”. Porém, nos termos evangélicos, “uma vida centrada em nos próprios é uma vida perdida e, pelo contrário, uma vida doada aos outros, feita de serviço, é uma vida grande e ganha”. E “desta sabedoria que vem do Alto dá-nos exemplo Jesus Cristo,  que se fez servo de Deus”.
Depois, lembrando o exemplo de Nossa Senhora e dos santos Pastorinhos Francisco Marto e Jacinta Marto, o responsável pelo Santuário fatimita referiu:
Jesus foi sempre o servo por excelência: serviu o Pai e serviu os homens e as mulheres. Ser cristão e seguidor de Jesus implica necessariamente assumir esta atitude, por mais difícil que seja e é. […] Na escola de Maria também os Pastorinhos adotaram este modelo: eles não procuraram aplausos ou reconhecimento; em momento algum quiseram ser os primeiros a não ser diante do amor a Deus.”.
Ora, “tal como os Pastorinhos fizeram da sua vida uma doação a Deus, com uma atenção privilegiada aos outros”, também nós somos convidados a “experimentar a verdadeira grandeza: servir e dar a vida”. E “é isto que significa ser grande” – disse ainda a partir do Evangelho Marcos (Mc 9,30-37), proclamado em toda a Igreja no XXV domingo do Tempo Comum no Ano B e que exorta os cristãos a seguirem Jesus, imitando-o nas suas atitudes.
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À luz do Evangelho fica, pois, condenado o clericalismo enquanto elite demolidora dentro da Igreja, muito semelhante ao escol fabricado pelas sociedades civis, gerador e fautor dos mecanismos de sustentação no poder político e económico, tantas vezes criador de situações e atos de repressão, opressão e descarte. E, de igual modo, se contraindica o carreirismo, que, ao invés do serviço, almeja a ascensão na estrutura a ponto de conseguir o domínio antievangélico.
Sendo assim, é de questionar como semanários, escolas teológicas, conventos e outros centros de formações não combatem eficazmente o carreirismo e não promovem a conversão das mentalidades, corações, atitudes e comportamentos à glória de Deus e ao serviço abnegado aos irmãos. Mas também é de destacar e apreciar o trabalho generoso de tantos e tantas que, abjurando de qualquer forma de protagonismo, se esforçam por fazer valer, na dedicação, dor e sofrimento, os interesses de Deus e a dignidade de todos e de cada um dos irmãos e irmãs.  
2018.09.23 – Louro de Carvalho

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