Para os
estudiosos da Bíblia, a profissão de fé adiantada por Simão Pedro, em Cesareia
de Filipe, de que Jesus é o “Messias” (Mc 8,29), o “Messias, o Filho de Deus
vivo” (Mt
16,16) ou o “Messias
de Deus” (Lc 9,20),
marca um momento de viragem no percurso dos discípulos com o Mestre. Com
efeito, parecia que, a partir desta confissão de fé que reconhece em Jesus o
Messias de Deus, estavam criadas as condições para o aprofundamento do mistério
de Cristo, mas efetivamente não estavam. No entanto, o Senhor prossegue a sua
propedêutica, sabedor de que o Espírito Santo iria, a seu tempo, abrir os olhos
e os ouvidos dos discípulos para entenderem as Escrituras e fortalecê-los com a
força do Alto a fim de serem verdadeiros arautos do Evangelho em todo o mundo.
***
Depois
de os interpelar sobre o que por ali diziam os outros quem era Jesus, o desafio
que Jesus lançou aos discípulos sobre “quem dizeis vós que eu sou” era
pertinente. Eles, porém, sabiam dizer o que os outros pensavam e diziam, mas
tinham receio de dizerem o que pensavam eles próprios, até que Pedro se
adiantou e o professou em nome de todos.
O texto
de Marcos não se expande como o de Mateus, em que sobre a rocha petrina o
Senhor edificará a Igreja. Aqui, apenas ordena que não digam nada a ninguém.
Logo a
seguir, fica patente que Pedro não percebe e não aceita o genuíno messianismo
de Jesus. Quando o Mestre faz o primeiro anúncio da Paixão, Morte e
Ressurreição, em virtude da rejeição dos homens, é Pedro quem se adianta e,
interpretando os interesses dos homens em detrimento dos interesses de Deus,
começou a repreendê-lo, pois não percebia e não aceitava outro estatuto para o
Messias que não fosse o cumprimento do desígnio político de restaurar e
consolidar a independência e supremacia de Israel, como esperavam tantos.
Porém, o
messianismo de Jesus, o que liberta o homem do pecado e das suas consequências,
é o profetizado em Isaías (Is 50,5-9): saber
dar palavras de alento aos desanimados, mas, para isso, passar pela experiência
do sofrimento, aprendendo como os discípulos, apresentando as espáduas e a face
aos que lhe arrancam a barba, não desviando o rosto dos que o ultrajam e lhe
cospem e sentindo que o Senhor Deus vem em seu auxílio. Este será o caminho
para que todos os inimigos caiam “esfrangalhados como roupa velha, roída pela
traça”.
E é num
panorama destes que Jesus lança o repto à multidão:
“Se
alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e
siga-me. […] Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há de
salvá-la. […] Quem se envergonhar de mim e das minhas palavras entre esta
geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele,
quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.” (Mc 8,34.35b.38).
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Depois
da transfiguração perante Pedro, Tiago e João num monte elevado, em que se fez
ouvir a voz do Pai, “Este é o meu Filho muito amado: escutai-o”
(Mc
9,9), Jesus “ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham
visto, senão depois de o Filho do Homem ter ressuscitado dos mortos. E eles
guardaram a recomendação, discutindo uns com os outros o que seria ressuscitar
de entre os mortos” (Mc 9,10). Não estavam a
perceber mesmo nada!
Entretanto,
o Mestre não desistiu de instruir os discípulos e fez pela segunda vez o
anúncio da sua morte, limite extremo da humildade, dedicação e amor pelos
amigos (“Prova
de amor maior não há do que dar a vida pelos seus amigos” – Jo 15,13), dizendo-lhes:
“«O
Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens que o hão de matar»; mas,
três dias depois de ser morto, ressuscitará. E eles, como não entendiam esta
linguagem, tinham receio de o interrogar.” (Mc 9,310-31).
Porém,
os discípulos, teimando no reinado político como os demais reinados, discutiam
entre si em segredo (porque se envergonhavam de o propalar em
alta voz) sobre quem
seria o maior no Reino dos Céus. Por isso, quando chegaram a Cafarnaum e
estando em casa, Jesus interpelou-os sobre o que discutiam pelo caminho – interpelação
que os deixou em silêncio porque, no caminho, tinham discutido uns com os
outros sobre qual deles era o maior. Foi então que chamou os Doze e disse: ‘Se alguém quiser ser o primeiro, há de ser o
último de todos e o servo de todos’. E, colocando um menino no meio deles,
abraçou-o e disse-lhes: ‘Quem receber um
destes meninos em meu nome é a mim que recebe; e quem me receber, não me recebe
a mim mas àquele que me enviou’. (cf Mc 9,33-37). Recorde-se que, ao tempo, as
crianças nem sequer eram consideradas pessoas, não tendo voz ativa em matéria
alguma.
No
Evangelho de Mateus (vd Mt 20,20-28), que situa o ensinamento depois
do seu 3.º anúncio da Paixão e Ressurreição, foi a mãe de João e Tiago quem
pediu ao Senhor que ordenasse que se sentasse um à sua direita e o outro à sua
esquerda no seu Reino. Porém, Jesus perguntou-lhes se podiam beber o cálice que
Ele estava para beber. E, tendo respondido que sim, Jesus replicou:
“Na verdade, bebereis o meu cálice, mas sentar-se à minha direita ou à
minha esquerda não me pertence a mim concedê-lo: é para quem meu Pai o tem
reservado”.
E,
porque os outros dez ficaram indignados com os dois irmãos, Jesus chamou-os e
disse-lhes:
“Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores e que os
grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo
contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande seja o vosso servo; e quem no
meio de vós quiser ser o primeiro seja vosso servo. Também o Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a
multidão.”.
Marcos (Mc
10, 35-45), tal como
Mateus, também desenvolve esta lição do serviço a seguir ao 3.º anúncio da
Paixão e Ressurreição, mas por iniciativa dos filhos de Zebedeu e não por
iniciativa da mãe – o que Lucas (Lc 22,24-27) insere a seguir ao anúncio da
traição de Judas.
***
Pensando
na índole predominantemente política do Reino, quando o destacamento romano e os guardas ao serviço dos
sumos-sacerdotes e dos fariseus, munidos de lanternas, archotes e armas, entrou
no Horto das Oliveiras para prender Jesus, Simão Pedro, que trazia uma espada,
desembainhou-a e arremeteu contra um servo do Sumo-Sacerdote, cortando-lhe a
orelha direita. Mas Jesus, chamando a atenção para o caráter singular do seu
Reino, disse a Pedro: “Mete a espada na
bainha. Não hei de beber o cálice de amargura que o Pai me ofereceu?” (cf Jo 18,3.10.11). E, depois de Jesus preso, Pedro negou o Mestre; e, ao verem
Jesus a responder no Sinédrio e no Tribunal de Pilatos com a multidão a clamar
pela crucifixão, todos, desiludidos, fugiram. Apenas João, o Discípulo
predileto, se manteve firme junto à Cruz (cf Jo
19,25-27).
Ainda para mais, quando as mulheres disseram aos apóstolos
que Jesus tinha ressuscitado, pensaram que se tratava de um desvario delas e
não acreditaram nelas (cf Lc 24,11). E, mesmo no
momento da Ascensão, perguntaram-lhe
se era então que ia restaurar o Reino de Israel. Mas Jesus respondeu-lhes (cf At 1,6):
“Não vos compete saber os tempos nem os
momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do
Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em
Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.” (At
1,7-8).
Apesar
de tudo, Jesus não desistiu deles – Ele nunca desiste – e deixou que
viesse o Espírito Santo reensiná-los e dar-lhes a força necessária para a
missão até aos confins do mundo. Nunca foram as dúvidas e as confusões dos
discípulos que O fizeram parar.
***
Sobre o
tema falou o Papa na homilia da Missa no Parque
Santakos em Kaunas (Lituânia).
Marcos dedica
parte considerável do seu texto ao ensinamento dirigido aos discípulos, como se,
como acentua Francisco, “Jesus quisesse que os seus renovassem a sua opção,
sabendo que este seguimento comportaria momentos de provação e sofrimento”. E,
nas três ocasiões em que anunciou a sua Paixão, eles “expressaram a sua
perplexidade e resistência”, mas “o Senhor quis, nessas três ocasiões, “deixar-lhes”
o correto ensinamento.
Na verdade, “a vida cristã sempre atravessa momentos de
cruz”, que parecem, por vezes, “intermináveis”. E, falando na Lituânia, o
Papa referiu que “as gerações passadas
viram gravar a fogo o tempo da ocupação, a angústia daqueles que eram
deportados, a incerteza por aqueles que não voltavam, a vergonha da delação, da
traição”, aplicando-se-lhes o teor do Livro da Sabedoria (cf Sab 2,20-20) na passagem que mostra o justo
perseguido e a sofrer insultos e tormentos só por ser bom, com o agravo de não
sentir a presença defensora de Deus. Também, nesse sentido, o povo lituano “pode
corroborar em uníssono com o apóstolo Tiago, na passagem da sua Carta: cobiçam, matam, invejam, lutam e fazem
guerra” (cf Tg 4,2).
E tem razão
Francisco: a Paixão de Cristo espelha-se no sofrimento das pessoas e dos povos.
Porém, como
sublinha o Papa, os discípulos não queriam ouvir falar “de sofrimento e de cruz” pois o seu interesse era poder e glória, “o modo mais comum de se comportar daqueles
que não conseguem curar a memória da sua história e, talvez por isso mesmo, não
aceitam sequer comprometer-se no trabalho do momento presente”. E veja-se
como o Pontífice classifica esta atitude da parte de quem discute “sobre quem mais brilhou, quem foi mais puro
no passado, quem possui mais direito do que os outros a ter privilégios”:
“É
uma atitude estéril e vã, que se recusa a envolver-se na construção do
presente, perdendo o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel. Não
podemos ser como aqueles peritos
espirituais que se limitam a julgar de fora e passam o tempo inteiro a falar sobre o que se deveria fazer.”.
Ora,
prosseguindo, a homilia papal assinala a proposta de Jesus de um antídoto
contra as lutas de poder e recusa do sacrifício: põe no centro, equidistante, “um rapazinho que habitualmente ganhava
alguns trocados prontificando-se para recados que ninguém queria fazer”,
hoje personalizado talvez nas “minorias
étnicas da nossa cidade” ou nos “desempregados
que são forçados a emigrar”, nos “idosos
abandonados” ou nos “jovens que não
encontram um sentido na vida, porque perderam as suas raízes”. E ensinou os
discípulos o que é essencial: acolher estas crianças, estes que não têm
protagonismos; e, neste acolhimento, acolhe-se Cristo e o Pai.
Depois,
requer-se a atitude de despojamento e de saída, para a qual Francisco deu um
exemplo visualizante para um ensinamento programático:
“Lá,
na cidade de Vilna, tocou ao rio Vilna oferecer as suas águas e perder o nome
relativamente ao Neris; aqui, é o próprio Neris que perde o nome oferecendo as
suas águas ao Nemunas. É precisamente disto que se trata: ser uma Igreja ‘em
saída’, não ter medo de sair e gastar-se mesmo quando parece que nos
dissolvemos, não ter medo de nos perdermos atrás dos mais pequenos, dos
esquecidos, daqueles que vivem nas periferias existenciais. Mas sabendo que
aquele sair implicará também em determinados casos deter o passo, colocar de
lado anseios e urgências para saber olhar nos olhos, escutar e acompanhar quem
ficou na beira da estrada. Às vezes, será necessário comportar-se como o pai do
filho pródigo, que permanece junto da porta à espera do seu regresso, para lhe
abrir logo que chegue.”.
Mais explicou
porque ansiamos por receber Jesus na sua palavra, na Eucaristia, nos
pequeninos:
“Para
que Ele reconcilie a nossa memória e nos acompanhe num presente que continue a
apaixonar-nos pelos seus desafios, pelos sinais que nos deixa; para que O
sigamos como discípulos, porque nada há de verdadeiramente humano que não tenha
ressonância no coração dos discípulos de Cristo e, assim, sentimos como nossas
as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso
tempo, sobretudo dos pobres e dos atribulados (GS, 1). E porque, como comunidade, nos sentimos verdadeira e intimamente
solidários com a humanidade […] e com a sua história, queremos doar a vida no serviço
e na alegria e, assim, fazer saber a todos que Jesus Cristo é a nossa única
esperança.”.
***
Também o
reitor do Santuário de Fátima afirmou, na Missa dominical, celebrada no Recinto
de Oração, perante milhares de peregrinos portugueses e estrangeiros que,
apesar do calor, peregrinaram à Cova da Iria, que “servir e dar a vida é o maior sinal de grandeza dos cristãos”.
Com
efeito a linguagem do serviço, “como atitude e disposição” para se dar sem
reservas, “não colher simpatias”, é a marca distintiva do “ser cristão e seguir
a Jesus”.
Contudo,
o sacerdote, lembrando que a História dos homens é predominantemente marcada
pelo desejo de domínio, “de sermos
maiores, de impormos a nossa vontade ou desejarmos o reconhecimento”,
confessou: “Se perguntarmos a alguém se
quer ser servo, a resposta é que não”. Efetivamente não é o exemplo do
serviço o que vem da parte dos que estão no topo.
Segundo
o Padre Carlos Cabecinhas, “a ideia de
servir não reúne nem simpatias nem consensos, mas a verdadeira grandeza a
que devemos aspirar é sermos servos”. Porém, nos termos evangélicos, “uma vida centrada em nos próprios é uma vida
perdida e, pelo contrário, uma vida doada aos outros, feita de serviço, é uma
vida grande e ganha”. E “desta
sabedoria que vem do Alto dá-nos exemplo Jesus Cristo, que se fez servo
de Deus”.
Depois, lembrando
o exemplo de Nossa Senhora e dos santos Pastorinhos Francisco Marto e Jacinta
Marto, o responsável pelo Santuário fatimita referiu:
“Jesus foi sempre o servo por excelência: serviu o Pai e serviu os
homens e as mulheres. Ser cristão e seguidor de Jesus implica necessariamente
assumir esta atitude, por mais difícil que seja e é. […] Na escola de Maria
também os Pastorinhos adotaram este modelo: eles não procuraram aplausos ou
reconhecimento; em momento algum quiseram ser os primeiros a não ser diante do
amor a Deus.”.
Ora, “tal
como os Pastorinhos fizeram da sua vida uma doação a Deus, com uma atenção
privilegiada aos outros”, também nós somos convidados a “experimentar a
verdadeira grandeza: servir e dar a vida”. E “é isto que significa ser grande” –
disse ainda a partir do Evangelho Marcos (Mc 9,30-37), proclamado em toda a Igreja no
XXV domingo do Tempo Comum no Ano B e que exorta os cristãos a seguirem Jesus,
imitando-o nas suas atitudes.
***
À luz do
Evangelho fica, pois, condenado o clericalismo enquanto elite demolidora dentro
da Igreja, muito semelhante ao escol fabricado pelas sociedades civis, gerador
e fautor dos mecanismos de sustentação no poder político e económico, tantas
vezes criador de situações e atos de repressão, opressão e descarte. E, de
igual modo, se contraindica o carreirismo, que, ao invés do serviço, almeja a
ascensão na estrutura a ponto de conseguir o domínio antievangélico.
Sendo assim,
é de questionar como semanários, escolas teológicas, conventos e outros centros
de formações não combatem eficazmente o carreirismo e não promovem a conversão
das mentalidades, corações, atitudes e comportamentos à glória de Deus e ao
serviço abnegado aos irmãos. Mas também é de destacar e apreciar o trabalho generoso
de tantos e tantas que, abjurando de qualquer forma de protagonismo, se
esforçam por fazer valer, na dedicação, dor e sofrimento, os interesses de Deus
e a dignidade de todos e de cada um dos irmãos e irmãs.
2018.09.23 –
Louro de Carvalho
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