domingo, 9 de setembro de 2018

Em Espanha o restauro amador de imagens dá para tudo


Nos últimos dias, deu brado em Espanha, chocando os espanhóis, o restauro duma peça do século XV feito por María Luisa Menéndez, uma paroquiana de Rañadorio, no município de Tineo, nas Astúrias, que pediu autorização ao pároco local para dar nova cor à imagem de Maria e de Jesus – a que chamam o “Ecce Homo asturiano” – numa ermida da paróquia.
A “artista” defende o seu trabalho estribada no seu pensamento do que seriam as cores certas e no gosto dos vizinhos. Tanto assim que declarou a um jornalista do El Comercio:
Pintei o melhor que sabia usando o que pensava serem as cores certas. Os vizinhos também gostaram. Pergunte e vai ver.”.
Porém, as estatuetas, um conjunto de três (uma da Virgem Maria com o Menino Jesus e Santa Ana, outra de São Pedro, e outra da Virgem com o Menino Jesus), tinham sido alvo dum restauro no início deste século, mais propriamente no ano de 2003. E Luis Suárez Saro, o responsável por esse restauro ainda de há relativamente pouco tempo, disse ao The Guardian não saber se há de “rir ou chorar”, pois foi utilizado “um tipo de tinta de esmalte industrial que se vende para pintar tudo e cores absolutamente berrantes e absurdas” – do “verde-alface” ao rosa-choque. Ao El Comercio, garantiu que “nem a técnica nem as cores têm nada a ver com as originais”,  assegurando que as estátuas têm enorme valor histórico e artístico e que a intervenção foi um desastre. E adiantou que as estatuetas já foram analisadas através de infravermelhos para avaliar os danos e ver o que é possível restaurar.
O jornal espanhol um jornalista do El Comercio classifica esta intervenção amadora como um novo exemplo de um restauro falhado, depois de há alguns anos a pintura do “Ecce Homo” de Borja ter dado brado. Neste caso, a pintura original do rosto de Jesus, do pintor espanhol Elías García Martínez em 1930, correu mundo com a forma que lhe deu a octogenária de Borja Cecilia Giménez, em 2012, ao passar-lhe o pincel, por se apresentar bastante deteriorada.
Também este ano, em junho, foi notícia o desastroso restauro duma escultura do século XVI em Navarra. À revelia das autoridades locais e autonómicas, a paróquia de Estella encomendou o restauro a um artesão local, sem conhecimento especializado, ficando a peça irreconhecível.
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A escultura em madeira, do século de XVI, de um São Jorge que era uma das atrações da igreja de Estella, perto de Navarra, está irreconhecível, com uma camada de pintura que os peritos dizem ser “um desastre”. De facto, seis anos depois de Cecilia Giménez, uma octogenária da cidade de Borja, perto de Saragoça, ter feito um restauro caricato de Ecce Homo, uma pintura do início do século XX, da igreja local, desta feita, a sorte calhou a uma estátua de São Jorge do século XVI, um ex libris da igreja de São Miguel, de Estella, que ficou desfigurada.
A Artus Restauracion, entidade que reúne especialistas na área e que fez a denúncia através da sua página do Facebook, e as autoridades locais estão a ponderar consequências legais.
À revelia das autoridades locais e autonómicas, a paróquia de Estella encomendou o restauro da escultura a um artesão local, sem conhecimento especializado, e a peça agora está irreconhecível. A tinta original, com cerca de 500 anos, apresentava-se desbotada, mas agora está coberta por uma demão de tinta “inapropriada” para aquele trabalho, tendo São Jorge ficado transformado num cavaleiro de face rosada e inexpressiva.
Também a ACRE (associação de conservadores e restauradores de Espanha) se pronunciou contra o sucedido que, em seu entender, “manifesta uma pavorosa ausência da formação prévia requerida para realizar este tipo de intervenções”, como sublinha, segundo o El País. E, tendo em conta que estas ações estão regulamentadas por lei, obrigando a que sejam realizadas por técnicos especializados, a ACRE apresentará uma queixa judicial contra os responsáveis pela intervenção. E o alcaide de Estella, Koldo Leoz, manifestou idêntica posição, criticando o facto de o seu executivo não ter sido contactado, para que a intervenção pudesse ter sido feita em colaboração, ou, pelo menos, acompanhada pelos técnicos competentes da “alcalderia”, pelo que está a ponderar uma ação legal, conforme adiantou ao The Guardian.
Entretanto, como escreve o El País, citando a autoridade eclesiástica, o arcebispo de Pamplona, veio explicar que o pároco local só queria “limpar um espaço que estava sujo”. Porém, o resultado final mostra que alguém se entusiasmou para lá duma simples limpeza.
Agora, o caso de São Jorge de Estella está no Facebook a ser partilhado, e é notícia na imprensa internacional. Desta vez, ao invés de outros casos, os ânimos não parecem nada benevolentes.
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Porém, com a aludida intervenção restauradora de Cecilia Giménez, a cidade espanhola de Borja, com apenas cinco mil habitantes, próxima de Saragoça, quadruplicou o turismo.
Com efeito, a pintura original do rosto de Jesus, de Elías García Martínez, correu mundo com a forma que lhe deu Cecilia ao passar o pincel molhado por ela, que estava bastante deteriorada pela humidade e pela salinidade. A história do restauro da obra, gravada numa coluna da capela daquele santuário do século XV, alastrou pelo mundo e foi repercutida nas redes num sem-número de memes. Em 2012, entre agosto e dezembro, 45 824 pessoas, vindas de 110 diferentes países, fizeram a sua “peregrinação” até ao Ecce Homo. E, em agosto de 2016, contavam-se já 165 mil visitantes. Além dos bilhetes de dois euros, compram-se almofadas, T-shirts, crachás, ímanes, ursos de peluche, livros e blocos com a imagem do Ecce Homo.  
Depois de fazer o dito restauro, Cecilia saiu de Borja durante duas semanas. Mas, quando regressou, já o seu Cristo estava nas bocas do mundo. E, perante a hipótese que as irmãs lhe lançaram de ir para a prisão, respondia que o Ecce Homo fora a única coisa que fez mal, chamando a atenção para o efeito que surtiu. Com efeito, quando entrou na capela de cadeira de rodas, no dia da estreia da ópera, logo se viu rodeada de flashes, câmaras de televisão e gente que lhe pedia uma selfie.
Na entrada da capela onde está a imagem, há mapas colados na parede repletos de alfinetes com papelinhos de quase cada país do mundo. São como pequenas bandeiras de quem ali esteve. Na América do Sul não parece caber nem mais um alfinete. Na Europa tão-pouco. E depois estão sobre os Estados Unidos, Canadá, Angola, Austrália, Singapura. E vêm muitos japoneses.
Depois, também a benemerência lucrou. De facto, reverte para a fundação Hospital Sancti Spiritus y Santuario de Misericordia todo o dinheiro das entradas na capela e parte do merchandising vendido. Assim, 71 pessoas idosas vivem na residência do hospital por causa do Ecce Homo de Cecilia. E outra parte dos lucros do merchandising vendido vai para a própria octogenária, que “pinta desde sempre”.
No local existe um Centro de Interpretação Ecce Homo, onde os turistas podem pintar o seu quadro homónimo e tirar fotografias encaixando o rosto num espaço da pintura deixado vazio. Com um filho que sofre de paralisia cerebral e poliomielite, e outro que morreu aos 20 anos, vítima de doença degenerativa, Cecilia casou naquela mesma igreja que a haveria de tornar conhecida por toda a parte. Foi essa Cecilia, e não “a da senhora idosa e louca que tinha estragado uma obra, como estava a ser contado pelos media”, que Andrew Flack, um americano de Denver, quis mostrar na ópera Behold the Man (Eis aqui o Homem), cujo libreto escreveu. E esta é aquela que pode chamar-se a segunda parte da história a que muitos assistem como quem testemunha um episódio rocambolesco.
Aquando da apresentação da ópera, Andrew Flack parecia extasiado com tudo o que se passava à sua volta. E Paul Fowles, o compositor que, não se restringindo à realidade dos factos, contou a história do mítico restauro ocorrido naquela pequena cidade de Aragão não pôde comparecer.
O autor do libreto referia ter sido “chamado a escrever esta ópera como a Cecilia foi chamada a restaurar aquela pintura” e revelou ter conhecido Cecilia na esplanada do bar do santuário, havia três anos. Além disso, confessou que, ao rumar de Denver a Borja, já tinha “umas três ou quatro cenas escritas”. E, coincidência ou não, tudo o que era palpite seu coincidia com o que esta lhe contava de si. E Flack avaliou:
Ela não se zangou com Deus nem com as pessoas. Pensou: provavelmente Deus tem um plano para mim e vou continuar. Esta é a lição que a Cecilia nos ensina a todos: o teu desastre também pode ser o teu milagre, se tiveres a paciência e a fé suficientes.”.
Aquando da apresentação, a primeira cena, que foi interpretada pelo Coral Vientos del Pueblo, de Borja, mostrava, antes do restauro de Cecilia, o presidente da câmara a lamentar-se, perguntando como poderia tirar a cidade da crise económica que atravessava. Mas o verdadeiro presidente, que não o da ópera, Eduardo Arilla Pablo, declarou que “o turismo quadruplicou: vinham a Borja umas seis ou sete mil pessoas turisticamente” e “passaram para 27, 28 mil turistas anuais, que veem o Ecce Homo, mas que também vão a Borja”. Assim, o consumo aumentou e o desemprego diminuiu.
Quanto à ópera, “que tem tragédia e comédia, canto gregoriano, canções típicas da zona ou indie-rock”, como disse o autor do libreto que está a ser traduzido para espanhol, tem como cenário o sítio do santuário. Até porque, a certa altura, adianta Flack, ouve-se cantar: When you come to Borja, baby, you better have a glass of wine and buy a hat.
Ora, com que então, depois de todas as piadas a que deu origem na internet, agora a história da senhora de Borja inspirou uma ópera. Andrew Flack, ex-publicitário, fez questão de conhecer a artista e, nessa altura, começou a pensar na criação duma ópera que contasse a história de Cecilia Giménez e do seu restauro tão peculiar. E, segundo avançava a edição online do El Pais, a ópera estava terminada em 2016 e foi apresentada ao público pela primeira vez a 18 de julho. Não fora ainda a versão final, tratando-se apenas duma leitura encenada da obra numa capela de Boulder, no Colorado (EUA). “A reação do público foi muito boa”, disse Andrew Flack ao El Pais.
A música [de Paul Fowler] é belíssima e a história é divertida e emotiva, pois a personagem de Cecilia é a de uma solícita mulher de fé que de súbito se vê no meio de uma controvérsia. Mas os responsáveis pela ópera têm-na como uma heroína porque seguiu o seu coração.
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Em Espanha, restauram-se imagens com recurso a amadores e por promessa ou segundo os gostos do público. O mesmo se passa em Portugal. Como em Portugal ou ainda mais, lá surgem os críticos com lamento e refinado azedume. Mas, em Espanha, as autoridades investigam e aplicam sanções à face da lei, o que raramente acontece entre nós. Só que, em Portugal, seria impensável compor uma ópera ou uma sinfonia ou dar uma condecoração em homenagem a um artista amador, a não ser que seja um artista político ou empresário – dos grandes!   
Em Espanha – está visto – o desastroso restauro amador de imagens dá para tudo.
2018.09.09 – Louro de Carvalho

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