É comum
dizer-se que, se alguém quer ser respeitado, deve dar-se ao respeito. E
poderemos dizer com a mesma certeza que, antes de mais, a via para granjearmos
o respeito dos outros e também para os respeitarmos verdadeiramente é o cultivo
contínuo e intenso do respeito por nós próprios.
O
sacerdote que presidiu, ao meio-dia, à celebração da Eucaristia do XX domingo
do tempo comum neste Ano B na igreja dos Passionistas, em Santa Maria da Feira,
evocou o caso do pai e do filho que foram à pesca numa reserva, devidamente
autorizados, mas com a condição de não pescarem espécies cuja pesca fosse
proibida. Entretanto, o filho apanhou um peixe cuja recolha o pai percebeu ser
ilegal, pelo que ordenou ao filho que relançasse o dito peixe na água pelo
facto de se estar a cometer uma ilegalidade. Porém, o filho retorquiu: “Não está aqui ninguém”. Ao que o pai
sentenciou: “Estamos aqui nós e é quanto
basta”.
Aquele
pai estava a ensinar que nós, para cumprirmos a lei, não precisamos de vigilância
de mais ninguém a não ser da nossa. Esta atitude implica autorresponsabilidade,
boa consciência e respeito por nós próprios.
Além
disso, para o crente, é mais que certo que Deus, que nos acompanha sempre e em
toda a parte, vê todas as nossas ações e escrutina todos os nossos pensamentos
e sentimentos: perscruta-nos o coração e os rins a
fim de recompensar cada um pela sua conduta e pelos frutos das suas ações (Jr 17,10).
Por isso, é anedótico para um cristão o caso que um pregador,
há muitos anos, referia de um par que integrava um baile. Quando o rapaz
solicitava a rapariga para algo menos decente, esta respondia que Deus estava a
ver. Mas o rapaz, ao ver um crucifixo na sala, tapou-o discretamente com um
pano e volveu à rapariga: “Agora podes
dançar à vontade, que ele já não vê”. Era a confusão entre a imagem e
aquilo que ela representa, o que infelizmente é típico de muitos cristãos
superficiais, que não de atitude.
***
A
pregação do mencionado sacerdote gravitou hoje em torno de excertos do
Deuteronómio (Dt 4,1-2.6-8),
primeira leitura, Epístola de São Tiago (Tg 1,17-18.21b-22.27), segunda leitura, e do
Evangelho de São Marcos (Mc 7,1-8.14-15.21-23), terceira leitura.
O pano
de fundo desta Liturgia da Palavra é o cumprimento da lei natural que Deus
imprimiu no coração de cada pessoa humana e que explicitou no Decálogo, desenvolvido nos livros do
Êxodo (a
lembrar a saída da escravidão do Egito e, consequentemente, a travessia do
deserto) e do
Deuteronómio (a significar “segunda promulgação da Lei”).
O Deuteronómio enfatiza o discurso de
Moisés ao povo, segundo o qual Israel deve saber que tem de conhecer e pôr em
prática as leis e preceitos que Deus lhe outorgou como condição de vida e de
posse da terra prometida, não podendo nem devendo acrescentar nada ao que foi
determinado pelo Senhor nem lhe suprimir nada.
O
cumprimento de tudo quanto foi determinado pelo Senhor será a marca identitária
deste povo em relação aos demais povos – um povo cheio de sabedoria, prudência
e justiça e que sente a proximidade do seu Deus, sobretudo quando o invoca. Na
verdade, nenhum outro povo tinha mandamentos e preceitos tão justos como
Israel, nenhum sentia tão perto de si a divindade como Israel. Nenhum era tão
sábio e tão prudente. E eram estas marcas – justiça, proximidade de Deus e
justiça – que faziam de Israel uma grande nação. Porém, estes mandamentos e
preceitos, enquanto garantiam a proteção divina, implicavam o compromisso do
povo com a fidelidade à lei, sem acrescentos ou omissões.
Não
obstante, o povo esqueceu-se muitas vezes da aliança que firmou com Deus e fez
alianças com outros povos; caiu na idolatria, servindo e adorando outros deuses,
tal como faz a esposa, que se escapa do esposo e se entrega a outros homens –
situação que os profetas denunciam, anunciando o castigo divino, mas abrindo os
portais da esperança porque Deus dará sempre nova oportunidade; e, embora, não
tenham incorrido em notórias omissões na Lei, os doutores e os escribas
acrescentaram ao Decálogo 634
prescrições especificativas e, sobretudo, fixavam-se na exterioridade oca e na
ritualização mecânica do cumprimento dos preceitos, impondo-os aos outros, sem
que eles próprios se empenhassem no seu cumprimento, como denuncia Jesus no
Evangelho. Aliás, os profetas insistiam no valor real da Aliança e no
cumprimento da Lei em profundidade, sobretudo do lado do interior, com o
coração de carne e não de pedra.
***
Ora,
Jesus não veio revogar a Lei ou a Profecia, mas aperfeiçoá-las e dar-lhes pleno
cumprimento, de modo que, “ainda que passem o céu e a terra, não
passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra”.
Por isso, se alguém violar um
destes preceitos mais pequenos e ensinar assim aos homens, será o menor no
Reino dos Céus, mas aquele que os praticar e ensinar será grande no Reino dos
Céus, porque, se a justiça dos discípulos não superar a dos doutores da Lei e
dos fariseus, não entrarão no Reino dos Céus. (Mt 5,17-20).
Assim, o
Evangelho de Marcos refere que a tradição levou a que os fariseus e os judeus em geral não
comessem sem ter lavado e esfregado bem as mãos, conforme a tradição dos
antigos; ao voltar da praça pública, não comiam sem se lavarem; e havia muitos
outros costumes que seguiam, por tradição, como a lavagem das taças, jarros e
vasilhas de cobre (cf Mc 7,2-4).
Porém, os fariseus e alguns doutores da Lei
vindos de Jerusalém viram que vários dos discípulos de Jesus comiam pão com as
mãos impuras, isto é, sem as lavarem. Por isso, acercaram-se de Jesus e
questionaram-no sobre o motivo por que os seus discípulos não obedeciam à
tradição dos antigos e tomavam alimento com as mãos impuras. (cf Mc 7,1.5).
Ora, Jesus conhecia as intenções e as manhas dos interpelantes e viu que a
preocupação destes era com as exterioridades ocas, não acompanhadas pelo
compromisso do coração e retomou a denúncia dos profetas, mencionando Isaías:
“Bem profetizou Isaías a vosso
respeito, hipócritas, quando escreveu: Este povo honra-me com os lábios,
mas o seu coração está longe de mim. Vazio é o culto que me prestam e
as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos. Descurais
o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens.” (Mc
7,6-8).
Depois de responder aos fariseus e doutores da Lei, chamou
de novo a multidão, para lhe dizer que “nada
há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro”, mas, sim, “aquilo que sai do homem é que o torna impuro”
(cf Mc 7,15).
E aos discípulos, quando estes, ao chegarem a casa, O interrogaram sobre o que
dissera à multidão, garantiu que “o que sai do homem, isso é que torna o homem
impuro” e explicitou:
“Porque
é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as
prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má-fé,
devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios. Todas estas maldades saem
de dentro e tornam o homem impuro.” (Mc 7,19-22).
Ora, as tradições religiosas herdadas dos
antepassados têm um valor inegável, mas apenas na medida em que traduzam
concretamente os mandamentos do Senhor e desde que exprimam e favoreçam a
adesão profunda a Deus e à sua vontade, sem lhe acrescentarem ou diminuírem
nada. Porém, se nos ficamos pela exterioridade balofa e meramente ritual, se
nos escaparmos do cumprimento dos mandamentos e os impusermos aos outros, a
prática ritual, que deveria conduzir à união com Deus e ao compromisso com o
próximo, nomeadamente para com os que mais necessitam, degenera em hipocrisia e
falsidade, que certamente não enganam a Deus nem encantam o próximo. Quando as
tradições se tornam um capricho histórico, constituem um obstáculo ou uma
insuperável dificuldade. Assim, elas devem evoluir e deixar que sejam
reformuladas à luz dos sinais dos tempos, uma vez que a religião que Jesus
ensina é a religião do coração e das obras que resultam do compromisso com Deus
e com os irmãos.
Com efeito, Jesus, quando Lhe perguntaram qual
era o maior mandamento da Lei, não escolheu um dos dez preceitos do decálogo,
mas formulou a síntese da Lei nos termos seguintes:
“Este é o maior e o primeiro
mandamento (Mt 22,38): Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente (Mt 22,37). O segundo é semelhante: Amarás
ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei
e os Profetas. (Mt 22,39-40).”.
E,
depois, a medida do amor ao próximo já não é só “como a nós mesmos”, mas como
Jesus nos amou. E esta é a novidade e a marca do discipulado e, por
conseguinte, do cristianismo. Na verdade, depois da última Ceia, Jesus disse
aos discípulos: “Dou-vos um novo mandamento, que vos ameis uns aos outros, que vos ameis
uns aos outros assim como Eu vos amei. Nisto é que todos conhecerão que
sois meus discípulos – se vos amardes uns aos outros.” (Jo 13, 34-35).
***
Também São Paulo, na sequência do ensinamento referido por Marcos (Mc 7, 19-22), nos destrinça os frutos do Espírito
e os frutos da carne, mandando que andemos “no Espírito” e não cumpramos “a concupiscência
da carne” (cf Gl 5,16). Com efeito, para vencermos as obras da carne, precisamos de andar
segundo os ditames e as moções do Espírito. Na verdade, a carne deseja o que é contrário ao Espírito e o Espírito o que é
contrário à carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façamos o que
queremos, mas o que o instinto dita. Ora, se nos deixarmos guiar pelo Espírito,
não estamos já sob a mera alçada da Lei. (cf Gl 5,17-18).
E Paulo especifica, contrapondo as obras da carne e os frutos do Espírito:
“As obras da carne estão à vista.
São elas: a fornicação, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria,
inimizades, contenda, ciúme, fúrias, ambições, discórdias, partidarismos,
invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas. […] Por seu lado, é
este o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade,
fidelidade, mansidão, autodomínio.” (Gl 5,19-21a.22-23a).
Depois, conclui que aqueles que praticarem as coisas ditadas pela carne “não
herdarão o Reino de Deus”, mas, uma vez que não há Lei contra as coisas do
Espírito, “os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com as suas paixões
e desejos”. Por isso, “se vivemos no Espírito, seguiremos também o Espírito” e
não nos tornaremos vaidosos, nem a provocar-nos uns aos outros ou a ser
invejosos uns dos outros. (cf Gl 21b.23-26).
Na Epístola aos Gálatas, Paulo, de maneira brilhante e contundente, trata o
assunto, mostrando o embate existente entre a carne e o Espírito. Faz uma
exposição da luta que se inicia, internamente, quando aceitamos Jesus como
Salvador e procuramos viver segundo a sua vontade. Ora, não é possível vencer a
natureza carnal mediante o autoflagelo, mas deixando-nos dominar pelo Espírito
Santo de Deus. É preciso sermos diariamente cheios do Espírito Santo, pela oração
de coração, pessoal e comunitária, cantando entre nós salmos, hinos e cânticos espirituais (cf Ef 5,18-19). Na verdade, se os crentes viverem uma vida controlada pelo Consolador,
terão plenas condições para resistirem à sua natureza pecaminosa. Se nos
abrirmos ao Espírito permitirmos que nos domine e guie, produziremos o fruto
que nos leva a agir como discípulos de Cristo (cf Gl 5,16) e nos dá a força de apóstolos e o
dinamismo andarilheiro de missionários com preocupações universais.
***
E o
apóstolo São Tiago, reconhecendo que todo o dom vem do Alto, d’ Aquele que nos
gerou pela palavra de verdade para sermos como que as primícias das suas
criaturas, quer de nós o acolhimento integral da Palavra, sendo, não apenas
ouvintes, mas cumpridores, sob pena de nos andarmos a enganar a nós mesmos.
Prático
como Paulo, Tiago não se contenta com intenções, promessas, mas exige factos,
obras. Diz-nos que a verdadeira religião – pura e sem mancha – consiste, aos
olhos de Deus Pai, em duas coisas: visitar os órfãos e viúvas em suas
tribulações; e manter-se limpo do contágio deste mundo. Os órfãos e viúvas,
pelo despeito a que eram votados na sociedade judaica, significam todos os que
estão em dificuldades, como refere o discurso do juízo final (cf
Mt 25,31-46). E o
manter-se limpo do contágio deste mundo ou desta geração perversa corporiza o
que diz a carta a Diagoneto, que os cristãos vivem no mundo, mas não são do
mundo:
“Vivem na sua pátria, mas como se
fossem forasteiros; participam de tudo como cristãos e tudo suportam como estrangeiros. Toda a pátria estrangeira
é sua pátria e cada pátria é para eles estrangeira. Casam-se como todos e geram
filhos, mas não abandonam os recém-nascidos.”.
E correspondem
ao pedido de Jesus Cristo ao Pai formulado na oração sacerdotal: “Não te peço que os retires do mundo, mas
que os livres do Maligno” (Jo 17,15).
E justificou: “Entreguei-lhes a tua palavra, e o mundo
odiou-os, porque eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. […] De
facto, eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo.” (cf Jo 17, 14.16).
***
A própria
cidadania poderá colher da Bíblia a ideia de que a Lei deve ser justa e
equânime; não é um fim em si mesma, mas um meio para a realização da pessoa
humana na sua dignidade e justas aspirações, bem como para a regulação da vida
social e promoção da sã convivência, nunca se deixando pautar por interesses
mesquinhos ou de vingança pessoal e/ou institucional. Mais proximidade, menos
burocracia! Menos atos isolados e mais atitude! Menos arrogância e lassidão e
mais respeito por si, por Deus e pelos outros!
2018.09.02 –
Louro de Carvalho
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