quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Para conseguirmos ficar direitos, foi muito modificada a nossa coluna


Quando andava a estudar, fui aluno dum eclesiástico professor que era contestatário figadal da teoria da evolução das espécies, o transformismo, em nome do chamado criacionismo de raiz bíblica. E, entre os argumentos que utilizava, sobressaía o de que, em nome do princípio de que “natura non facit saltus” (a natureza não faz saltos) e o de que “natura horret vacuum” (a natureza não consente o vazio), entre o primata considerado a espécie imediatamente inferior ao homem e próprio homem, teria que haver uma espécie intermédia, porque, segundo aduzia, havia consideráveis diferenças entre os símios e os homens. E, contra aqueles que diziam que o cóccix humano era o resto da cauda, ele ironizava com a hipótese de ser antes o início da cauda. Quanto à espécie intermédia dita inexistente, nós dizíamos que ela efetivamente existia e víamo-la na pessoa de um outro eclesiástico também nosso professor, ainda vivo (apusemos-lhe o alcunha de “Queixadas”), que até veio a exercer altos cargos na hierarquia eclesiástica.
Porém, o professor antievolucionista, que até apreciava o trabalho do padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo francês Teilhar de Chardin, referindo que já Santo Agostinho sustentava que Deus não criara diretamente todas as espécies, mas as suas sementes, chegou a pôr a hipótese da verdade científica da transformação das espécies, mas com a aceitação duma intervenção especial de Deus no aparecimento de cada uma.
Como é óbvio, estávamos perante a pretensa ideia de que a Bíblia era o livro total da norma religiosa e do ditame científico-histórico, o que hoje o mundo eclesiástico não sustenta, remetendo as Sagradas Escrituras para o conteúdo exclusivamente religioso, embora dito nas categorias mentais vigentes ao tempo da escrita de cada um dos livros santos.           
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Entretanto, através da pena de Teresa Sofia Serafim, o Público de 25 de setembro exibe um texto, na secção “Ciência”, sob o títuloAntigos fósseis ajudam-nos a perceber a evolução da coluna nos mamíferos”. Segundo a articulista, embora a descrição dos mamíferos se baseie no sangue quente, cabelo e demais tipos de pelo como caraterísticas distintivas deste grupo animal, as análises de fósseis de antepassados dos mamíferos em confronto com as análises a animais da atualidade levam a inferir que a coluna dos mamíferos não teve sempre a estrutura e a tessitura atuais e que é uma das caraterísticas que mais contribui para a distinção deste grupo. Mais “é ela que tem um forte contributo na forma como corremos ou nadamos”.
O texto veicula as conclusões do recente estudo duma equipa internacional de cientistas – com destaque para as suas autoras, Stephanie Pierce e Katrina Jones, ambas da Universidade de Harvard (Cambridge, Estado de Massachusetts, nos Estados Unidos) – publicado na revista Science e que dá conta da análise a fósseis, com cerca de 300 milhões de anos, a partir da qual se fica a saber que a coluna vertebral, ao longo da evolução dos mamíferos, foi ganhando regiões, como a cervical, a torácica, a lombar e a sagrada, nos seres humanos.
Para Katrina Jones, “este estudo é muito importante porque os fósseis de colunas são muito raros e difíceis de estudar”, pelo que “a evolução da coluna nos mamíferos não tem sido documentada em detalhe”. Porém, enfatizando a relevância do trabalho realizado e as com conclusões a que chegaram as cientistas, considera:
Agora, sabemos algo realmente novo sobre as nossas origens evolutivas. Nos humanos, a coluna tem sido extremadamente modificada para que consigamos ficar direitos e este estudo demonstra a responsabilidade evolutiva da regionalização da coluna nisso.”.
Por sua vez, Stephanie Pierce sustenta que, “basicamente, a coluna é como uma série de missangas num colar e cada uma representa uma única vértebra”, sendo que tais missangas (com a espinal medula como fio longitudinal – a continuação do bulbo, que se aloja no interior da coluna em seu canal vertebral, ao longo do seu eixo crânio-caudal) são “especiais” nos mamíferos. Com efeito, segundo a investigadora, “em animais como os lagartos, as vértebras parecem ter a mesma função”, mas “nos mamíferos é diferente”, porquanto “as regiões da coluna – como o pescoço, o tórax e a região lombar – têm formas diferentes e funcionam separadamente”.
E Katrina Jones, por seu turno, adianta que “os mamíferos vivos têm colunas muito distintas e com regiões claramente definidas, o que os ajudou a adaptarem-se a diferentes ambientes” [e a correr ou a escalar].
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Para entenderem o facto misterioso de os mamíferos terem ficado com a coluna assim, as cientistas viajaram até aos tempos dos primeiros animais terrestres. E, querendo perceber “o que diferencia a coluna dos lagartos da dos mamíferos”, verificaram que “não há nenhum animal vivo que tenha registado no seu corpo a forma como terá acontecido essa transição”.
A este propósito, Katrina Jones refere:
Para o fazer, tínhamos de mergulhar até aos registos fósseis e observar os precursores extintos dos mamíferos, os synapsidas [classe que também inclui os mamíferos vivos e os seus precursores] que não eram mamíferos”.
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É de esclarecer que os synapsidas constituem uma classe de cordados, a primeira linha dos répteis a diferenciar-se dos anapsídeos primitivos, caraterizados por possuírem uma só fenestra temporal pós-orbital em posição inferior, localizada entre os ossos escamosal, pós-orbital, jugal e quadrado-jugal. Os euriápsidos também possuem apenas uma fenestra temporal, mas esta possui posição superior. Os sinapsídeos são considerados como o grupo ancestral dos mamíferos. Os ossos apendiculares dos synapsidas, durante a evolução do grupo, experimentaram rotação para a posição vertical, sob o corpo, com cotovelo direcionado para trás e joelho para frente, prenunciado e observado entre os mamíferos. Apareceram no Carbonífero Superior e os mais primitivos (os Pelicossauros, os antepassados ancestrais dos mamíferos – eram de tamanho médio, até 3 metros ou mais) foram abundantes sobretudo no Permiano Inferior. Compreendem duas ordens: Peltcosauria e Therapsida.
Os cordados (Chordata, do latim chorda, corda) constituem um filo dentro do reino Animalia que inclui os vertebrados, os anfioxos e os tunicados – animais caracterizados pela presença duma simetria bilateral, notocorda, sistema digestório completo, um tubo nervoso dorsal, fendas branquiais e uma cauda pós-anal, em pelo menos uma fase da sua vida. Os cordados compartilham caraterísticas com muitos animais invertebrados sem notocorda, quanto ao plano estrutural, tais como simetria bilateral, eixo anteroposterior, metamerismo e cefalização. O grupo abrange animais adaptados para a vida na água, na terra e no ar.

Dizem as duas cientistas que este seu trabalho foi árduo, já que “os fósseis são escassos e encontrar animais extintos com 25 vértebras no lugar é incrivelmente raro”. Mas quiseram fazer esta “viagem” evolutiva e vasculharam as gavetas dos museus de todo o mundo. E Katrina Jones considera:
Viajámos através do globo para reconstituir fósseis muito raros e bem preservados”.
Por isso, lograram analisar dezenas de colunas em fósseis com muitos milhões de anos que eram antepassados dos mamíferos. Assim, estudaram o Edaphosaurus (primo dos mamíferos) com cerca de 300 milhões de anos ou o Thrinaxodon (cinodonte que também era primo dos mamíferos) e que viveu durante o Triásico Inferior — entre 251 milhões e 245 milhões de anos. Analisaram ainda mais de mil vértebras de animais atuais, como ratinhos, jacarés, lagartos e anfíbios.
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O Edaphosaurus é um género de pelicossauro que viveu nos períodos Carbonífero e Permiano há cerca de 300 milhões de anos. Embora popularmente identificado como um dinossauro, esse animal era um pelicossauro herbívoro, sem parentesco direto com os dinossauros. Como o seu parente, o Dimetrodon, possuía uma “vela” nas costas provavelmente a servir de órgão termorregulador. O Thrinaxodon foi um cinodonte (com dentes parecidos com os do cão) terapsídeo (um réptil parecido com o mamífero), sendo que muitos cientistas sugerem que pequenos sulcos no osso do focinho indiquem que o Thrinaxodon teve vibrissas (órgãos sensoriais próprios) e talvez possa ter tido uma cobertura de pelos no restante do corpo. Há sugestões de que fosse de sangue quente. Mesmo assim, ainda tinha um esqueleto reptiliano e botava ovos.

Ao iniciarem o trabalho, as cientistas supunham que as regiões da coluna não tinham mudado durante a evolução dos mamíferos. Porém, comparando a posição e forma das vértebras dos vários animais, viram o contrário: a coluna foi ganhando novas regiões durante a evolução do grupo, porquanto os synapsidas mais antigos tinham menos regiões que os mamíferos atuais.
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No predito estudo, transposto para artigo científico publicado pela dita revista, as cientistas – bem como a restante equipa – descrevem três fases evolutivas das diferentes regiões da coluna. Nos primeiros amniotas (animais cujos embriões eram rodeados por uma membrana amniótica) a coluna vertebral tinha três regiões: “o pescoço ligava a cabeça ao tronco e o dorso dividia-se numa parte frontal e traseira”. Nesta fase viveu o Edaphosaurus. Há cerca de 250 milhões de anos, um grupo de animais – que inclui o Thrinaxodon – evoluiu com outra região que se encontrava mesmo atrás da omoplata, o que, segundo Katrina Jones, “deve estar relacionado com a mudança na forma como os membros eram usados na locomoção, o que aconteceu por volta deste período”. E, há cerca de 150 milhões de anos, desenvolveu-se uma quinta região perto da pélvis, “usada pelos mamíferos modernos durante a corrida”, como garante a equipa de cientistas. Segundo Stephanie Pierce, “parece que foi esta região que permitiu [aos mamíferos] adaptarem-se a diferentes ambientes”. As cientistas referem que esta fase pertence à dos mamíferos modernos, como o ratinho.
Nos termos dum comunicado sobre o referido trabalho, fica esclarecido que “a formação da coluna dos mamíferos também estará ligada a mudanças nos genes Hox”, importantes no desenvolvimento inicial das regiões da coluna. Refira-se que os genes Hox são essenciais para o desenvolvimento completo dos organismos, sobretudo na definição do eixo anteroposterior, mas, em alguns grupos de animais, também estimulam a formação de tipos celulares específicos e a formação de órgãos ou estruturas acessórias
Contudo, de acordo com aquilo que apontou Katrina Jones, o que mais surpreendeu a equipa de cientistas foi o facto de os resultados sugerirem que “uma nova região perto da omoplata se desenvolveu muito cedo na história evolutiva deste grupo”. De facto, a comparação da aparência desta região com as mudanças que se sucederam nos membros de alguns animais, leva a crer que “os ombros e a coluna foram coevoluindo nos precursores dos mamíferos”.
Ademais, as cientistas, quando recorreram a estudos já publicados, perceberam que houve, provavelmente, uma coordenação funcional e no desenvolvimento da coluna e da pata dianteira durante a evolução dos mamíferos.
Enfatizando moderadamente a importância do estudo, Katrina Jones vinca:
Agora, sabemos algo realmente novo sobre as nossas origens evolutivas. Nos humanos, a coluna tem sido extremadamente modificada para que consigamos ficar direitos e este estudo demonstra a responsabilidade evolutiva da regionalização da coluna nisso.”.
Para o futuro, as cientistas projetam a perceção de como as novas regiões, ao surgirem, influenciavam as funções da coluna, ficando a saber como, há milhões de anos, os animais se movimentavam. Além disso, Katrina Jones sustenta que a descoberta destes grandes pormenores evolutivos pode ajudar a esclarecer questões relevantes em áreas como a biologia do desenvolvimento ou a genética. Enfim, segundo a própria investigadora, “este trabalho ajuda-nos a compreender o que torna um mamífero num mamífero”.
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É de esperar que este estudo e os que se lhe seguirem, na linha do que vem sendo descoberto, contribuam para a justa apreciação do património terráqueo colocado à disposição do homem para seu conhecimento e benefício. Com efeito, pela perceção dos mistérios da genética e da biologia do desenvolvimento, conheceremos melhor a natureza e, em especial, a natureza animal e humana, podendo esse conhecimento ajudar a identificar doenças, preveni-las e cuidá-las cada vez com maior proficiência e proveito, bem como a respeitar o planeta e a cuidar dele. Há estudo e solidariedade!
2018.09.26 – Louro de Carvalho 

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