Quando andava a estudar, fui
aluno dum eclesiástico professor que era contestatário figadal da teoria da
evolução das espécies, o transformismo, em nome do chamado criacionismo de raiz
bíblica. E, entre os argumentos que utilizava, sobressaía o de que, em nome do
princípio de que “natura non facit saltus”
(a
natureza não faz saltos)
e o de que “natura horret vacuum” (a
natureza não consente o vazio),
entre o primata considerado a espécie imediatamente inferior ao homem e próprio
homem, teria que haver uma espécie intermédia, porque, segundo aduzia, havia
consideráveis diferenças entre os símios e os homens. E, contra aqueles que
diziam que o cóccix humano era o resto da cauda, ele ironizava com a hipótese
de ser antes o início da cauda. Quanto à espécie intermédia dita inexistente,
nós dizíamos que ela efetivamente existia e víamo-la na pessoa de um outro
eclesiástico também nosso professor, ainda vivo (apusemos-lhe o
alcunha de “Queixadas”),
que até veio a exercer altos cargos na hierarquia eclesiástica.
Porém, o professor
antievolucionista, que até apreciava o trabalho do padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo francês Teilhar
de Chardin, referindo que já Santo Agostinho sustentava que Deus não criara
diretamente todas as espécies, mas as suas sementes, chegou a pôr a hipótese da
verdade científica da transformação das espécies, mas com a aceitação duma
intervenção especial de Deus no aparecimento de cada uma.
Como é óbvio, estávamos perante a
pretensa ideia de que a Bíblia era o livro total da norma religiosa e do ditame
científico-histórico, o que hoje o mundo eclesiástico não sustenta, remetendo as
Sagradas Escrituras para o conteúdo exclusivamente religioso, embora dito nas
categorias mentais vigentes ao tempo da escrita de cada um dos livros santos.
***
Entretanto, através da pena de Teresa Sofia Serafim, o Público de 25 de setembro exibe um texto, na secção “Ciência”, sob o título “Antigos fósseis ajudam-nos a perceber a
evolução da coluna nos mamíferos”. Segundo a articulista, embora a
descrição dos mamíferos se baseie no sangue quente, cabelo e demais tipos de
pelo como caraterísticas distintivas deste grupo animal, as análises de fósseis
de antepassados dos mamíferos em confronto com as análises a animais da
atualidade levam a inferir que a coluna dos mamíferos não teve sempre a
estrutura e a tessitura atuais e que é uma das caraterísticas que mais
contribui para a distinção deste grupo. Mais “é ela que tem um forte contributo
na forma como corremos ou nadamos”.
O texto veicula as conclusões do recente estudo duma equipa internacional de
cientistas – com destaque para as suas autoras, Stephanie Pierce e Katrina
Jones, ambas da Universidade de Harvard (Cambridge,
Estado de Massachusetts, nos Estados Unidos) – publicado na revista Science e que dá conta da análise a fósseis, com cerca de 300 milhões de anos, a
partir da qual se fica a saber que a coluna vertebral, ao longo da evolução dos
mamíferos, foi ganhando regiões, como a cervical, a torácica, a lombar e a sagrada,
nos seres humanos.
Para Katrina Jones, “este estudo
é muito importante porque os fósseis de colunas são muito raros e difíceis de
estudar”, pelo que “a evolução da coluna nos mamíferos não tem sido documentada
em detalhe”. Porém, enfatizando a relevância do trabalho realizado e as com
conclusões a que chegaram as cientistas, considera:
“Agora,
sabemos algo realmente novo sobre as nossas origens evolutivas. Nos humanos, a
coluna tem sido extremadamente modificada para que consigamos ficar direitos e
este estudo demonstra a responsabilidade evolutiva da regionalização da coluna
nisso.”.
Por sua vez, Stephanie Pierce
sustenta que, “basicamente, a coluna é como uma série de missangas num colar e
cada uma representa uma única vértebra”, sendo que tais missangas (com
a espinal medula como fio longitudinal – a
continuação do bulbo, que se aloja no interior da coluna em seu canal
vertebral, ao longo do seu eixo crânio-caudal) são “especiais” nos mamíferos.
Com efeito, segundo a investigadora, “em animais como os lagartos, as vértebras
parecem ter a mesma função”, mas “nos mamíferos é diferente”, porquanto “as
regiões da coluna – como o pescoço, o tórax e a região lombar – têm formas diferentes
e funcionam separadamente”.
E Katrina Jones, por seu turno, adianta
que “os mamíferos vivos têm colunas muito distintas e com regiões claramente
definidas, o que os ajudou a adaptarem-se a diferentes ambientes” [e a correr
ou a escalar].
***
Para entenderem o facto
misterioso de os mamíferos terem ficado com a coluna assim, as cientistas
viajaram até aos tempos dos primeiros animais terrestres. E, querendo perceber “o
que diferencia a coluna dos lagartos da dos mamíferos”, verificaram que “não há
nenhum animal vivo que tenha registado no seu corpo a forma como terá
acontecido essa transição”.
A este propósito, Katrina Jones
refere:
“Para o
fazer, tínhamos de mergulhar até aos registos fósseis e observar os precursores
extintos dos mamíferos, os synapsidas [classe que também inclui os mamíferos
vivos e os seus precursores] que não eram mamíferos”.
***
É de esclarecer que os synapsidas constituem uma classe de cordados,
a primeira linha dos répteis a diferenciar-se
dos anapsídeos primitivos, caraterizados por possuírem uma
só fenestra temporal pós-orbital em posição inferior, localizada
entre os ossos escamosal, pós-orbital, jugal e quadrado-jugal. Os euriápsidos
também possuem apenas uma fenestra temporal, mas esta possui posição superior.
Os sinapsídeos são considerados como o grupo ancestral dos mamíferos. Os
ossos apendiculares dos synapsidas, durante a evolução do grupo, experimentaram
rotação para a posição vertical, sob o corpo, com cotovelo direcionado para
trás e joelho para frente, prenunciado e observado entre os mamíferos. Apareceram
no Carbonífero Superior e os mais primitivos (os Pelicossauros, os antepassados
ancestrais dos mamíferos – eram de tamanho médio, até 3 metros ou mais) foram abundantes sobretudo
no Permiano Inferior. Compreendem duas ordens: Peltcosauria e Therapsida.
Os cordados (Chordata, do latim chorda, corda) constituem
um filo dentro do reino Animalia que
inclui os vertebrados, os anfioxos e
os tunicados – animais caracterizados pela presença duma simetria
bilateral, notocorda, sistema
digestório completo, um tubo nervoso dorsal, fendas branquiais e uma cauda pós-anal,
em pelo menos uma fase da sua vida. Os cordados compartilham caraterísticas
com muitos animais invertebrados sem notocorda, quanto ao plano estrutural, tais como simetria
bilateral, eixo anteroposterior, metamerismo e cefalização. O grupo abrange
animais adaptados para a vida na água, na terra e no ar.
Dizem as duas cientistas que este
seu trabalho foi árduo, já que “os fósseis são escassos e encontrar animais
extintos com 25 vértebras no lugar é incrivelmente raro”. Mas quiseram fazer
esta “viagem” evolutiva e vasculharam as gavetas dos museus de todo o mundo. E Katrina
Jones considera:
“Viajámos
através do globo para reconstituir fósseis muito raros e bem preservados”.
Por isso, lograram analisar
dezenas de colunas em fósseis com muitos milhões de anos que eram antepassados
dos mamíferos. Assim, estudaram o Edaphosaurus (primo
dos mamíferos) com
cerca de 300 milhões de anos ou o Thrinaxodon (cinodonte
que também era primo dos mamíferos)
e que viveu durante o Triásico Inferior — entre 251 milhões e 245 milhões de
anos. Analisaram ainda mais de mil vértebras de animais atuais, como ratinhos,
jacarés, lagartos e anfíbios.
***
O Edaphosaurus é um género
de pelicossauro que viveu nos períodos Carbonífero e Permiano há
cerca de 300 milhões de anos. Embora popularmente identificado como
um dinossauro, esse animal era um pelicossauro herbívoro, sem parentesco
direto com os dinossauros. Como o seu parente, o Dimetrodon, possuía uma “vela” nas costas provavelmente a servir de
órgão termorregulador. O Thrinaxodon foi um cinodonte (com dentes parecidos
com os do cão) terapsídeo (um réptil parecido com o mamífero), sendo que muitos
cientistas sugerem que pequenos sulcos no osso do focinho indiquem que o Thrinaxodon teve vibrissas (órgãos sensoriais
próprios)
e talvez possa ter tido uma cobertura de pelos no restante do corpo. Há
sugestões de que fosse de sangue quente. Mesmo assim, ainda tinha um esqueleto
reptiliano e botava ovos.
Ao iniciarem o trabalho, as cientistas
supunham que as regiões da coluna não tinham mudado durante a evolução dos
mamíferos. Porém, comparando a posição e forma das vértebras dos vários
animais, viram o contrário: a coluna foi ganhando novas regiões durante a evolução
do grupo, porquanto os synapsidas mais antigos tinham menos regiões que os
mamíferos atuais.
***
No predito estudo, transposto
para artigo científico publicado pela dita revista, as cientistas – bem como a
restante equipa – descrevem três fases evolutivas das diferentes regiões da coluna.
Nos primeiros amniotas (animais cujos embriões eram rodeados por
uma membrana amniótica)
a coluna vertebral tinha três regiões: “o
pescoço ligava a cabeça ao tronco e o dorso dividia-se numa parte frontal e traseira”.
Nesta fase viveu o Edaphosaurus. Há cerca de 250 milhões de anos, um
grupo de animais – que inclui o Thrinaxodon – evoluiu com outra região
que se encontrava mesmo atrás da omoplata, o que, segundo Katrina Jones, “deve estar relacionado com a mudança na
forma como os membros eram usados na locomoção, o que aconteceu por volta deste
período”. E, há cerca de 150 milhões de anos, desenvolveu-se uma quinta região
perto da pélvis, “usada pelos mamíferos
modernos durante a corrida”, como garante a equipa de cientistas. Segundo
Stephanie Pierce, “parece que foi esta
região que permitiu [aos
mamíferos] adaptarem-se a diferentes
ambientes”. As
cientistas referem que esta fase pertence à dos mamíferos modernos, como o
ratinho.
Nos termos dum comunicado sobre o
referido trabalho, fica esclarecido que “a
formação da coluna dos mamíferos também estará ligada a mudanças nos genes Hox”,
importantes no desenvolvimento inicial das regiões da coluna. Refira-se que os
genes Hox são essenciais para o desenvolvimento completo dos
organismos, sobretudo na definição do eixo anteroposterior, mas, em alguns
grupos de animais, também estimulam a formação de tipos
celulares específicos e a formação de órgãos ou estruturas acessórias.
Contudo, de acordo com aquilo que
apontou Katrina Jones, o que mais surpreendeu a equipa de cientistas foi o
facto de os resultados sugerirem que “uma
nova região perto da omoplata se desenvolveu muito cedo na história evolutiva
deste grupo”. De facto, a comparação da aparência desta região com as
mudanças que se sucederam nos membros de alguns animais, leva a crer que “os ombros e a coluna foram coevoluindo nos
precursores dos mamíferos”.
Ademais, as cientistas, quando
recorreram a estudos já publicados, perceberam que houve, provavelmente, uma
coordenação funcional e no desenvolvimento da coluna e da pata dianteira
durante a evolução dos mamíferos.
Enfatizando moderadamente a
importância do estudo, Katrina Jones vinca:
“Agora,
sabemos algo realmente novo sobre as nossas origens evolutivas. Nos humanos, a
coluna tem sido extremadamente modificada para que consigamos ficar direitos e
este estudo demonstra a responsabilidade evolutiva da regionalização da coluna
nisso.”.
Para o futuro, as cientistas
projetam a perceção de como as novas regiões, ao surgirem, influenciavam as funções
da coluna, ficando a saber como, há milhões de anos, os animais se movimentavam.
Além disso, Katrina Jones sustenta que a descoberta destes grandes pormenores evolutivos
pode ajudar a esclarecer questões relevantes em áreas como a biologia do desenvolvimento
ou a genética. Enfim, segundo a própria investigadora, “este trabalho ajuda-nos a compreender o que torna um mamífero num
mamífero”.
***
É de
esperar que este estudo e os que se lhe seguirem, na linha do que vem sendo
descoberto, contribuam para a justa apreciação do património terráqueo colocado
à disposição do homem para seu conhecimento e benefício. Com efeito, pela
perceção dos mistérios da genética e da biologia do desenvolvimento,
conheceremos melhor a natureza e, em especial, a natureza animal e humana,
podendo esse conhecimento ajudar a identificar doenças, preveni-las e cuidá-las
cada vez com maior proficiência e proveito, bem como a respeitar o planeta e a
cuidar dele. Há estudo e solidariedade!
2018.09.26 –
Louro de Carvalho
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