No passado
dia 26 de setembro, com início às 21,30 horas, decorreu, na “Comuna Teatro de
Pesquisa” (Café Teatro), na Praça de Espanha mais uma das SESSÕES CODEX em torno da figura de João XXI, Papa
português, sob a moderação de Mário Soares, com a participação de Armando Norte, José Eduardo
Franco e Padre Carlos Azevedo.
As SESSÕES
CODEX são tertúlias culturais e artísticas dedicadas à vida e ao legado de
figuras marcantes da História de Portugal. Em cada sessão, em ambiente
tertuliano, os convidados CODEX manifestam novos olhares em formato aberto
sobre a figura escolhida, permitindo a cada pessoa uma interpretação livre da
personagem.
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Pela resenha biográfica apresentada nas SESSÕES CODEX
João XXI, nascido Pedro Julião Rebolo (mais conhecido como Pedro Hispano), em 1215, em Lisboa, segundo a maior parte dos historiadores, ou em Coimbra, segundo alguns e falecido como João XXI em Viterbo, a 20 de maio de 1277, foi papa de 20 de setembro de 1276 até à data da sua morte. E ficou conhecido como um famoso médico, filósofo, professor e matemático português do século XIII.
Começou os seus estudos na escola episcopal da catedral de Lisboa, tendo mais tarde estudado na Universidade de Paris (alguns historiadores afirmam que terá sido na Universidade de Montpellier) com mestres notáveis, como Alberto Magno, e tendo por condiscípulos Boaventura e Tomás de Aquino, grandes nomes do cristianismo. Lá estudou medicina e teologia, dedicando especial atenção a palestras de dialética, lógica e sobretudo a física e metafísica de Aristóteles.
Entre 1246 e 1252 ensinou medicina na Universidade de Siena, onde escreveu algumas obras, com destaque para o tratado ‘Summulæ Logicales’, o manual de referência sobre lógica aristotélica durante mais de 300 anos, nas universidades europeias, com 260 edições em toda a Europa, traduzido para grego e hebraico.Prova da sua vasta cultura científica é o ‘De oculo’, tratado de oftalmologia, com ampla difusão nas universidades europeias. Miguel Ângelo, ao adoecer gravemente dos olhos, mercê do árduo labor investido na decoração da Capela Sistina, encontrou remédio numa receita de Pedro Hispano. É também o autor do ‘Thesaurus Pauperum’, que trata de várias doenças e suas curas, com cerca de uma centena de edições e traduzido para 12 línguas.No âmbito da Teologia, subscreve ‘Comentários ao pseudoDionísio’ e ‘Scientia libri de anima’. E encontra-se por publicar o ‘De tuenda valetudine’, manuscrito em Paris, dedicada a Branca de Castela, esposa do rei Luís VIII de França, filha de Afonso IX de Castela.Antes de 1261, ano da sua eleição para decano da Sé de Lisboa, ingressou no sacerdócio. O rei Afonso III de Portugal confiou-lhe o priorado da Igreja de Santo André (Mafra) em 1263, posto que o elevou a cónego e deão da Sé de Lisboa, Tesoureiro-mor na Sé do Porto e Dom Prior na Colegiada Real de Santa Maria de Guimarães.
Pontífice dotado de rara simplicidade, João XXI irá marcar o seu breve pontificado (de pouco mais de 8 meses) pela fidelidade ao XIV Concílio Ecuménico de Lião. Apressou-se a mandar castigar, em tribunal criado para o efeito, os que haviam molestado os cardeais presentes no conclave que o elegera. E, embora sem grande sucesso, prosseguiu a missão encetada por Gregório X de reunir a Igreja Grega à Igreja do Ocidente, além de se ter esforçado por libertar a Terra Santa do poder dos turcos. Tentou ainda reconciliar grandes nações europeias, como França, Germânia e Castela, no espírito da unidade cristã, enviando (sem sucesso) legados a Rodolfo de Habsburgo e a Carlos de Anjou. Recebeu em audiência tanto os ricos como os pobres.
O poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), na Divina Comédia, coloca a alma de João XXI no Paraíso, entre as almas que rodeiam a de São Boaventura, apelidando-o de “aquele que brilha em doze livros”, menção clara aos 12 tratados escritos pelo erudito pontífice. E o rei Afonso X de Leão e Castela, o Sábio, avô de Dom Dinis de Portugal, elogiou-o em forma de canção no canto XII de ‘Paraíso’. Mecenas de artistas e estudantes é tido na sua época por ‘egrégio varão de letras’, ‘grande filósofo’, ‘clérigo universal’ e ‘completo cientista físico e naturalista’.
Mais entregue ao
estudo que às tarefas pontifícias, delegou no Cardeal Orsini, o futuro Papa
Nicolau III, os assuntos correntes da Sé Apostólica. E, sentindo-se doente,
retirou-se para Viterbo, onde faleceu a 20 de maio de 1277, vitimado pelo
desmoronamento das paredes do seu aposento, estando o palácio apostólico em
obras. Foi sepultado junto do altar-mor da Catedral de São Lourenço, naquela
cidade. No século XVI, durante os trabalhos de reconstrução do templo, os seus
restos mortais são trasladados para modesto e ignorado túmulo. Porém, através
do contributo da Câmara Municipal de Lisboa e do presidente João Soares, o
mausoléu foi colocado em definitivo do lado do Evangelho na Catedral de
Viterbo, a 28 de março de 2000. (cf Codex Pedro Hispano, o papa Feiticeiro, https://www.viralagenda.com/pt/events/639490/codex-pedro-hispano-o-papa-feiticeiro).
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Aspetos significativos da biografia elaborada pelo
historiador Armando Norte
Em outubro
de 2016, o historiador Armando Norte publicou a biografia “João XXI – O Papa Português” (da Esfera dos Livros), onde conta a misteriosa história da vida e morte de Pedro Hispano:
padre, médico, filósofo, alquimista, com fama de mago, e Papa que, tendo
entrado em divergência com o rei português Dom Afonso III e lhe manteve a
excomunhão, se tornou o português
com mais poder no mundo antes de António Guterres chegar à ONU.
O conclave que elegeu Pedro Julião/Pedro Hispano
Segundo o predito
biógrafo, em 13 de setembro de 1276, o conclave, reunido em Viterbo (Itália), elegeu Papa o cardeal-bispo Pedro Julião, de Lisboa,
conhecido nos meios intelectuais e académicos como Pedro Hispano, que assumiu o nome de João XXI, tornando-se no “mais
importante indivíduo do seu tempo e num homem ungido para a eternidade”.
O número de conclavistas
era diminuto: dada a recente morte de dois cardeais-diáconos, o sacro colégio
era composto por 11 elementos. Entretanto, um dos cardeais morreu durante o
conclave e outro faltou por motivos desconhecidos. Portanto, só 9 ficaram com a decisão eleitoral. Dois desses
homens eram cardeais-bispos, um dos quais o próprio Pedro Julião; três eram
cardeais-presbíteros; e os outros quatro eram cardeais-diáconos. Todos eles eram
repetentes em eleições papais e alguns acabaram por ser eleitos papas em
conclaves posteriores.
Como Papa, Pedro Julião era a máxima autoridade política e religiosa do
mundo cristão, juiz de
última instância em todas as disputas, único legislador em matéria
eclesiástica, legitimador e
derrubador de reis, chefe da hierarquia católica e supremo representante
de Deus na Terra, com a possibilidade de excomungar e lançar interditos,
declarar guerras, fazer a paz. Era dono de um poder sem rival na Idade Média.
Porém, a
escolha surpreendeu pelo facto de o eleito não pertencer as famílias da nobreza romana, itálica, ou gaulesa,
cujos membros eram tradicionalmente eleitos para ocupar a mais alta posição da
Igreja Católica Romana. Mas, na aparente fragilidade de apoios, residirá uma
das razões para a decisão, emergindo o português como via capaz de assegurar a
manutenção dos equilíbrios existentes no interior do cardinalato. E importa
sublinhar que a escolha não era inócua, “antes plena de efeitos, significados e
consequências”. Naquele século, o
Papa era a principal personalidade política no concerto internacional de
poderes, fruto da preponderância duma Igreja pujante e de forte programa
centralizador incrementado pelo papado durante a alta Idade Média, cujo apogeu
coincidiu com o pontificado de Inocêncio III (1198-1216). Na verdade, com o crescimento da Igreja em
complexidade e dimensão, complexificou-se e alargou-se a estrutura hierárquica
e a máquina burocrático-administrativa, bem como se logrou a melhoria substancial
do aparelho fiscal. A essa política de sedimentação do poder da Igreja, liderada
pelo papado, dá-se comummente o nome de teocracia papal.
Desperta
curiosidade na designação de João XXI o facto de não haver João XX na lista dos
papas. A razão do lapso é a errada
contabilização de Martinho Polónio (de origem eslava), dominicano contemporâneo de Pedro Hispano e muito
apreciado como pregador e canonista.
A morte de
Pedro Hispano por derrocada do seu apartamento foi tida como prova do seu
caráter malévolo por magia (e alegados desregramentos de conduta, passando pelo
laxismo no governo eclesiástico), ou
castigo divino por suposto pretensiosismo, incluindo o de achar que viveria
muitos anos.
A vida do professor e médico em Paris e Siena
Sabe-se muito pouco do percurso de Pedro Julião: sobram rastos difusos,
abundam becos sem saída,
acumulam-se, tantas vezes prodigiosamente, as brumas, sobretudo no atinente à
infância e primeira juventude. Do reconstituível, infere-se que o futuro Papa
terá nascido no início do século XIII, em data que a tradição situa no
intervalo entre os anos 10 e 20, mas que a crítica histórica aproxima do início
da primeira década. Provavelmente
terá nascido em Lisboa, embora haja hipóteses alternativas (pouco
fundamentadas) de ter
nascido em Coimbra. Quanto às origens familiares, tudo se resume a algumas
especulações sobre o nome e
profissão do pai, talvez um médico, de nome próprio Julião, atendendo às
regras da onomástica medieval e ao uso generalizado do sistema de patronímico
em Portugal, ignorando-se em absoluto o estatuto social da sua família e o seu
nível de riqueza e património.
Terá sido na Sé de Lisboa e na escola capitular anexa
que Pedro Julião passou os seus primeiros anos. É de supor que o
seu trajeto escolar tenha sido semelhante ao de muitos outros oblatos, jovens
entregues à Igreja pelos pais para se dedicarem ao serviço de Deus, a entrada
no sacerdócio, passando pelo cumprimento dos primeiros estudos com base nos
salmos, introdução à liturgia e ao ritual e iniciação aos Evangelhos e à
doutrina católica. Nestas primeiras etapas, Pedro Julião terá alcançado grande
sucesso, já que, pouco tempo depois, foi enviado para a Universidade de Paris para estudos mais avançados,
lá continuando a dar aulas após a conclusão dos estudos. E deu aulas de medicina em Siena, no final da
década de 1240, não estando esclarecido onde terá contactado com as
ciências médicas: Em Salerno, Montpellier, em Paris? Anos mais tarde, foi
nomeado mestre-escola na catedral de Lisboa, mas o regime de absentismo afasta
a hipótese de aí ter ensinado, a não ser durante estâncias muito breves.
O conselheiro e arcebispo que manteve a excomunhão de Dom Afonso III
No âmbito
eclesiástico, Pedro Julião recebeu vários benefícios, apesar das disposições
que então procuravam limitar os fenómenos da acumulação para evitar a
apropriação abusiva de cargos e de rendimentos. Percorreu quase todo o cursus honorum da Igreja do seu tempo: cónego, mestre-escola, arcediago e deão. Também
foi conselheiro régio e, já em contexto apostólico, terá ficado a seu cuidado a saúde de Gregório IX. Ademais,
desempenhou legações a mando de Inocêncio V na condição de comissário papal até
alcançar a posição de cardeal-bispo de Túsculo (Itália). Foi um trajeto variado e com marcos importantes, incluindo passagens por
duas das mais importantes dioceses portuguesas, a arquidiocese de Braga e a sé de Lisboa, e a nomeação para o
governo da igreja de Guimarães, posição sempre muito disputada ao nível do
reino português e reservada a figuras de grande projeção da cena política e
eclesiástica.
Decisiva
para essa caminhada foi a desenvoltura com que sempre se moveu nos círculos de
poder, designadamente junto da corte régia e da Santa Sé, conseguindo insinuar a sua presença, com sucesso,
junto do rei Afonso III (de quem divergiria mais tarde) e de mais do que um pontífice. No geral, foi um
percurso diferenciado e sólido que o capacitou para a carreira bem-sucedida que
desenvolveu junto da Cúria romana, primeiro como cardeal, depois como Sumo Pontífice.
A relação
entre Pedro Julião e Afonso III parece ter sido marcada, na sua origem e durante
um período de tempo considerável, por grande proximidade e sentimentos mútuos
de afeto e respeito. O futuro João XXI
serviu o rei como procurador em várias ocasiões, integrou o conselho régio e,
provavelmente, foi enviado a desempenhar missões diplomáticas junto da Cúria
apostólica em defesa dos interesses portugueses. A contrario, as razões da
rutura posterior entre os dois homens parecem prender-se, em grande medida, com
o processo de escolha para bispo da Sé de Lisboa, vago pela morte do
bispo Aires Vasques (1258-1282). Por
conveniência dos interesses políticos, o monarca patrocinou a eleição de mestre
Mateus para bispo de Lisboa. Em discordância aberta com o rei, Pedro Julião
encabeçou um movimento alargado de protesto no interior do cabido, numa altura
em que era o deão em funções e em que terá aspirado a ser ele próprio nomeado
para prelado da diocese lisboeta. O desenlace acabaria em desfavor de Pedro
Julião e do cabido que o secundava, pois foi eleito mestre Mateus para a
posição em causa. Anos mais tarde, ao ser eleito Papa, João XXI não esqueceria
o episódio e, como os seus
antecessores, acusou o rei de prática sistemática de abusos e desmandos contra
a Igreja em Portugal e de ser “um crónico afrontador das liberdades
eclesiásticas”. Manteve os interditos sobre o reino e renovou as excomunhões feitas ao
rei.
Um filósofo, médico e alquimista com reputação de mago
A
popularidade de que gozou durante a medievalidade, prolongada no Renascimento e
persistindo até hoje, tem uma origem bastante diferente: remete para a
sua dimensão de intelectual e para
os contributos que lhe são atribuídos no âmbito da história da ciência e
história das ideias, em concreto os estudos que dedicou aos ramos da filosofia
e da medicina.
Porém a vasta produção bibliográfica, a
diferente natureza dos assuntos e a coerência interna dos textos de Pedro
Hispano ou que lhe foram creditados, desde o século XIV, tendo como premissa a
sua vasta ciência, assumida pelo próprio e asseverada em crónicas (contemporâneas
e posteriores), suscitam reservas no atinente à atribuição
a uma única personalidade.
Entre tantas
dúvidas, a crítica textual mais recente parece pouco inclinada a atribuir ao
pontífice todos os tratados que compõem o habitual cânone de manuscritos que
lhe são consagrados. E há especialistas que sustentam que poucos desses trabalhos, ou (exageradamente) nenhuns, devem ser atribuídos a João XXI, propondo-os como a produção de um ou vários Pedros Hispanos seus
contemporâneos. Esta polémica, não estéril, é inconclusiva, mas obriga a
distinguir, no conjunto das obras imputadas a Pedro Hispano, entre a produção
cuja autoria se encontra suficientemente estabilizada e os escritos cuja
catalogação e atribuição suscitam maior discussão.
As dificuldades
em estabelecer com rigor a autoria das obras de João XXI são inúmeras e estão longe
de ser um exclusivo do Papa português. São muito numerosos os autores e escritos
da medievalidade que subsistem enredados em polémicas, enfrentando problemas
insolúveis, eivados de propostas contraditórias, baseadas em variado tipo de
argumentos: filológicos, caligráficos, cronológicos, ontológicos, etc.
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Seja como
for, considerando apenas o corpo de obras de Pedro Hispano fixado com maior
rigor e descontando os muitos textos em relação aos quais existem reservas,
verifica-se que a sua quantidade, qualidade e impacto foram muito desiguais. Neste
aspeto, as obras sobreviventes de
medicina e de lógica sobrepõem-se às restantes em número, importância e
repercussão. Olhando às quantidades produzidas, fica-se com a
perceção de que o Hispano se ocupou em especial de tratados médicos. Contam-se
neste capítulo cerca de três dezenas de escritos, a que se seguem, a larga
distância, as obras de filosofia e de alquimia. Só depois vêm as peças de
teologia. Quanto aos escritos sobre zoologia, afiguram-se residuais no conjunto
da sua produção intelectual. Mas há ainda a assinalar uma obra, em tudo
excêntrica ao resto da sua produção, um tratado em verso sobre os elementos atmosféricos.
No campo dos
saberes médicos, o Hispano comentou praticamente todas as principais
autoridades em que assentava a aprendizagem nas escolas medievais na área de
medicina, em conformidade com o elenco da escola médica de Salerno, fundada no
século X e que teve um enorme impacto na evolução da história da
medicina. Quanto à adesão à
alquimia, o interesse pela química medieval era, ao tempo, inseparável do mundo
do ocultismo e das ciências ocultas, o que lhe valeu, em alguns
círculos, a pejorativa e controversa reputação de mago.
E foi num
contexto de grande efervescência intelectual, marcado pela recuperação no
Ocidente de obras de Aristóteles, que o Hispano redigiu os manuscritos filosóficos responsáveis por lhe assegurar um
lugar na História da Filosofia. Entre os trabalhos que lhe são imputados
com mais insistência e segurança, são indiscutivelmente os mais famosos e
celebrados: o ‘Thesaurus pauperum’, no domínio das ciências médicas, e
as ‘Summulae logicales’, no ramo da lógica.
O ‘Thesaurus
pauperum’ é um rol de conselhos e preceitos médicos, com um copioso número
de receitas – algumas das quais elaboradas pelo próprio Pedro Hispano –
atinentes à quase totalidade do
conjunto conhecido das doenças humanas na medievalidade. Os males e
as receitas são apresentados segundo um critério anatómico num texto que se
inicia com um rol de prescrições para as maleitas que atingem a cabeça e
culmina com o catálogo das doenças e receitas relacionadas com os pés.
No
respeitante às ‘Summulae Logicales’, referidas também por ‘Tractatus’ e outras designações, alcançaram
fama em função da doutrina lógica exposta, que apresentava e compatibilizava tendências filosóficas opostas, nomeadamente
entre os nominalistas (que aprofundaram as questões semânticas e os significados
dos nomes em filosofia) e os
realistas (que entendiam os conceitos universais como sendo reais). Embora reconhecida unanimemente, a importância
das Sumulae como texto didático, tem variado largamente conforme
as interpretações sobre o seu valor intelectual e científico. Vêm, porém,
espelhados nos compêndios de Filosofia Escolástica (na dialética) do século XX.
Mas é devido
à sua produção científica e, especialmente, a estas duas obras – o Thesaurum
pauperum e as Summulae logicales – que Pedro Hispano, o
Papa João XXI, deve muito da sua celebridade, sem o que, não obstante o seu
notável percurso eclesiástico, não passaria de uma pequena nota de rodapé na
História. Em especial, foram as Summulae Logicales, que cercaram de
larga fama o seu nome. A esse
livro, aludiu Dante na Divina Comédia (1321). E foi por causa desse livro que o autor florentino
reservou a João XXI um lugar no Paraíso. Era essa a ambição dum cristão na
Idade Média; teria de ser essa a máxima aspiração de um homem da Igreja como
fora o português toda a vida; e, acima de tudo, seria essa a aspiração de um
pontífice, o representante de Deus na Terra: entrar no Paraíso, alcançar o lugar
final da Bem-Aventurança.
Os caminhos da justiça e o espírito de Cruzada
Tomado o
nome apostólico, Pedro Julião
procedeu à escolha da divisa e insígnias que daí em diante o
identificariam. A divisa que escolheu foi “Dirige, domine Deus meus, in conspectu tuo viam meam” (Guia-me, Senhor meu Deus, pelos caminhos da tua justiça – Sl 5,9-10) – um lema que talvez remeta para a personalidade controversa que
muitas crónicas apontam. Quanto às insígnias, o recém-eleito optou por
apresentar no brasão de armas, como ornamentos exteriores, os símbolos típicos
da heráldica dos romanos pontífices, de acordo com o ritual latino: no topo, a
tríplice tiara, correspondente às três funções apostólicas de ensinar,
santificar e governar; ao centro,
as duas chaves cruzadas, uma de cor dourada e a outra prateada, simbolizando as
chaves do Reino dos Céus, atributo iconográfico associado a Pedro, o
príncipe dos Apóstolos, que segundo o Evangelho de Mateus as recebera do
próprio Cristo (Mt 16,18-19); na base
do brasão, duas borlas pendentes da extremidade duma corda que entrelaçava as
chaves (a corda é de
cor púrpura, associada aos pontífices de Roma, entendidos como herdeiros da
púrpura imperial romana); e, no
interior do brasão, o escudo de João XXI, reconhecível pela forma esquartelada
ou quadripartida que apresentava.
Resolvidas
as questões formais, simbólicas e protocolares, João XXI envolveu-se numa
intensa atividade executiva e legislativa, como se pode conferir pela leitura
do registo oficial dos seus diplomas, as ‘Regesta’.
As ‘Regesta’, cópias de cartas papais
e de outros documentos oficiais, com valor notarial, eram preservadas nos
arquivos da chancelaria apostólica, arquivadas em volumes próprios para o
efeito e destinadas à manutenção de um registo interno para conservar e validar
os atos dos vários papas. Mais modernamente acabaram por tomar o idêntico nome
de ‘Regesta’ as publicações com a
lista de documentos promulgados por cada pontífice, dispostos por ordem
cronológica e com sumários cuidadosos dos conteúdos desses atos.
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Nos breves
oito meses em que foi incontestavelmente a figura mais importante da
Cristandade, João XXI elaborou uma significativa produção diplomática, materializada
naqueles registos, que ultrapassou
a centena de bulas e cartas apostólicas. E esse corpo documental permite
perceber as principais orientações políticas a desenvolver, que se podem
resumir na defesa da supremacia religiosa e política do Papa na Cristandade, no
desejo de unidade entre as igrejas de Roma e de Constantinopla, na luta contra
o inimigo de Fé, o Islão (materializada num fervoroso espírito de Cruzada), e no combate às heterodoxias doutrinais e aos
desvios de fé, como sucedeu na famosa disputa entre averroístas e agostinianos,
que dividiu a Universidade de Paris.
No plano
político, João XXI, ao chegar ao pontificado, teve de atuar em várias frentes
pôr fim a vários dos problemas que herdara: conciliar os reis de França e de Castela-Leão, respetivamente Filipe III
e Afonso X, em luta pelo controlo da área de Navarra; sanar a questão do
título de imperador dos romanos, reivindicado por Carlos de Anjou, rei da
Sicília, e por Rodolfo de Habsburgo, imperador do Sacro Império Germânico;
sufocar a turbulência que pairava na área itálica e que agitava comunas rivais,
como Perúgia e Assis, mas que também afetava as relações das comunas com o
papado; e repor a autoridade da Igreja face à desobediência de reis em conflito
aberto com alguns setores da Igreja, como sucedia no caso português, com Afonso
III.
Porém,
apesar do seu fulgurante trajeto eclesiástico e dos ambiciosos projetos
políticos que protagonizou, amplamente testemunhados pelos registos da
chancelaria papal, a sua morte de,
oito meses depois de eleito, não lhe permitiu deixar uma marca
impressiva na história da Igreja.
(cf Armando Norte, João XXI – O Papa Português, referido e Armando Norte, Papa
João XXI. O português mais poderoso de sempre antes de Guterres in Observador jornal on line, 16 de outubro de 2016: https://observador.pt/especiais/papa-joao-xxi-o-portugues-mais-poderoso-de-sempre-antes-de-guterres/; Francesco X. Calcagno, Philosophia Scolastica, Vol. Primum,
ed. 4.ª, M. D’Auria Pontificius Editor, Neapoli, Italia: 1963, pgs 90-94).
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Em Janeiro de 1277, João XXI interveio numa disputa entre
teólogos na Universidade de Paris que marcou o seu pontificado. Alguns
professores foram acusados pelo bispo de Paris, Étienne Tempier, de defender
teses contra a fé cristã. Antes de tomar posição, o Papa pediu ao bispo que
averiguasse o que se passava. Mas o prelado antecipou-se e condenou mais de cem
teses, entre elas, algumas defendidas pelo dominicano Tomás de Aquino. Os
dominicanos culparam João XXI e não lhe perdoaram.
Quando morreu, João XXI foi enterrado na Catedral de São
Lorenzo, em Viterbo, junto ao altar-mor. Mas, ao longo dos séculos a sua
sepultura mudou várias vezes de lugar. Em 1560, o cardeal Gambara levantou a
campa para fazer obras. As ossadas foram colocadas num sarcófago atrás da porta
da nave central da igreja. Em 1726, o túmulo voltou a ser removido e, desta
vez, depositado junto à entrada. No século XIX, o embaixador de Portugal junto
à Santa Sé, o duque de Saldanha, mandou construir um monumento digno para
acolher as ossadas do Papa. Mas este diplomata morreu e a obra não foi
concluída. Então, em 1886, por iniciativa do bispo de Viterbo, o túmulo foi
trasladado para uma das capelas da catedral, a de São Filipe. Durante a II
Guerra Mundial, a catedral foi bombardeada e a capela de São Filipe ficou em
ruínas. O representante da Santa Sé em Portugal, Monsenhor Fernando Cento,
solicitou uma nova localização. Mas esta só foi concretizada no ano 2000,
quando João XXI regressou à sepultura inicial, num túmulo onde estão inscritas
as palavras de Dante: “Pedro Hispano,
aquele que brilha nos seus 12 livros”. (cf revista
Sábado, de 6 de maio de 2010)
***
Um
português notável, certamente. Pena é que muitos não teimem em lutar por uma
produção pessoal e/ou coletiva que, sem o desejarem, os catapulte por si mesma
à fama e ao contributo para o progresso da ciência, arte e técnica e prol do
homem e da comunidade humana, assim como é de lamentar a falta de apoio
político e económico aos investigadores que vão surgindo ou a obnubilação dos
talentos existentes, que não são tão poucos como às vezes se crê.
2018.09.28 –
Louro de Carvalho
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