terça-feira, 2 de agosto de 2022

Nova doutrina naval russa marca linhas vermelhas ao Ocidente

 

O diferendo que opõe a Rússia e a Ucrânia está longe de se circunscrever àquela região da Europa. Isto é sabido e tem sido reiterado em diversas ocasiões, quer pelas autoridades russas, quer pelos países ditos do Ocidente, designadamente os que integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e a União Europeia (UE). A Rússia tem prometido responder adequadamente se a NATO intervier no conflito bélico, dando a entender que não terá qualquer pejo em recorrer a armas químicas e mesmo a armas nucleares. E os países do Ocidente, que não têm sido parcos em impor sanções económicas e políticas à Rússia, que lhes responde à medida das necessidades e desejos, como vêm cooperando com a Ucrânia, fornecendo-lhe armas e militares e doutrinando a opinião pública no apoio incondicional ao país invadido.      

A Rússia lançou, a 24 de fevereiro, uma ofensiva militar na Ucrânia que já matou mais de 5.100 civis, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), que alerta para a probabilidade de o número real ser muito maior. Esta ofensiva foi condenada pela generalidade da comunidade internacional, que respondeu com o envio de armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e políticas a Moscovo.

Entretanto, a 31 de julho, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, estabeleceu novas linhas vermelhas ao Ocidente nos mares Negro, Báltico e Ártico, ao aprovar uma nova doutrina naval influenciada pelas mudanças geopolíticas originadas pela guerra na Ucrânia. Tais linhas definem as fronteiras e as zonas que representam os interesses “vitais” da Rússia.

Assim, numa intervenção do Dia da Marinha, em São Petersburgo, o líder russo, citado pela agência espanhola Efe, afirmou o claro estabelecimento das fronteiras e das zonas que representam os interesses nacionais da Rússia – económicos e estratégicos, os que são vitais, explicitando que se trata da zona ártica, das águas do mar Negro (entre Europa, Anatólia e Cáucaso), de Ojotsk (Pacífico) e de Bering (Pacífico) e nos estreitos do Báltico (Atlântico) e das Ilhas Curilas (Pacífico). Disse: “Iremos garantir a nossa defesa, de forma firme e recorrendo a todos os meios”. E anunciou que a Marinha russa irá receber, nos próximos meses, novos mísseis de cruzeiro hipersónicos “Tsirkon”, que irão equipar a fragata “Almirante Gorshkov”, o que não constitui novidade, visto que, em 2018, Putin tinha anunciado um novo programa de rearmamento com armamento hipersónico, tendo na altura destacado que o “Tsirkon” não tem “comparação no mundo com outros” e que o alcance destes mísseis era “praticamente ilimitado”.

Desta vez, assinalou que a frota cumpre, com sucesso e com honra, as missões estratégicas nas fronteiras do país e em qualquer lugar do oceano, o que está em constante aperfeiçoamento.

A cerimónia de assinatura da nova doutrina naval ocorreu na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, em São Peterburgo, depois de o Presidente russo ter dado início à parada naval na antiga capital czarista e na ilha de Krostadt, parada e desfile subsequente em que participaram mais de 40 navios, submarinos e lanchas, 42 aviões e mais de 3.500 soldados, embora ações similares se estivessem a celebrar noutros portos, como foi o caso do enclave báltico de Kaliningrado – em representação da frota que tem desempenhado um papel ativo desde o início da invasão da Ucrânia, apesar de, em abril, a Rússia ter sofrido o seu maior revés, com o naufrágio do navio “Moskva”, provocado pelas tropas ucranianas, na sequência do qual terão morrido cerca de 30 marinheiros.

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Era de prever, para breve, a definição da nova doutrina naval Na verdade, a 28 de julho, o vice-presidente do Conselho de Segurança russo, reiterando que a entrada dos dois países em causa na NATO pode conter armas ofensivas e, com isso, representar uma ameaça para a Rússia, declarou que a Rússia dará uma resposta “simétrica” ao aumento da presença militar da NATO na Finlândia e na Suécia, na sequência da adesão daqueles dois países nórdicos à Aliança Atlântica.

Segundo Dmitri Medvedev, também ex-presidente e ex-primeiro-ministro russo, que falava à imprensa, após uma reunião dedicada à segurança da fronteira noroeste e no contexto da possível entrada de Estocolmo e de Helsínquia na NATO, a Finlândia e a Suécia podem optar “diferentes formas” de instalação da NATO, podendo aceitar a criação de bases nos respetivos territórios, contendo armas ofensivas. E a resposta da Rússia “será simétrica a estes passos”.

Na reunião, que decorreu na região russa da Carélia, no noroeste da Rússia junto à fronteira com a Finlândia, estiveram presentes o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Valery Gerasimov, o chefe dos serviços de segurança russos (FSB), Alexander Bortnikov, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Grushko, e o chefe do Serviço de Espionagem Estrangeira (SVR), Sergey Naryshkin. Aí, Medvedev sustentou que “a decisão sobre a entrada da Finlândia e da Suécia na NATO não reforça a segurança da região, pelo contrário, torna a situação mais difícil, uma vez que se trata de garantir a segurança de todos”. E acrescentou:

“Em geral, isso deteriora inquestionavelmente a segurança na região do Báltico, que se torna essencialmente um mar dominado pela NATO. A reação da Rússia a esses eventos será a que for necessária e suficiente. Tenho a certeza de que seremos capazes de proteger os interesses do nosso país e garantir a segurança dos nossos cidadãos com os meios necessários.”.

Medvedev frisou que Moscovo iria rever a “Doutrina Paasikivi-Kekkonen”, de 1948, do antigo Presidente finlandês, Juho Kusti Paasikivi e continuada pelo sucessor, Urho Kekkonen, que visa a sobrevivência da Finlândia como país capitalista independente, soberano, democrático e próximo da antiga União Soviética, e que as relações com a Suécia neutra também serão revistas.

É de recordar que a Finlândia e a Suécia solicitaram a adesão à NATO, em fevereiro, após o início da ofensiva militar russa na Ucrânia, apesar de tradicionalmente se oporem a essa adesão. Porém, estes países, que garantem provisoriamente o estatuto de países convidados, só serão membros de pleno direito da NATO após a ratificação dos protocolos de acesso pelos parlamentos dos 30 países que atualmente integram a Aliança Atlântica.

Também a 28 de julho, Medvedev visitou o posto fronteiriço de Vyartsilya, junto à fronteira com a Finlândia, onde inquiriu sobre o fluxo de transporte de carga entre os dois países, reduzido a um oitavo, devido às sanções contra a Rússia. E, exprimindo a convicção de que a quebra no comércio é um fenómeno temporário, afirmou que “mais tarde ou mais cedo, o fornecimento de mercadorias será retomado”, pois “ninguém cancelou o dinheiro”.

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O investigador Pierre Binette, especialista em política externa russa, em outubro de 2017, considerava que uma Rússia poderosa, respeitada e imune às decisões dos Estados estrangeiros constitui o fundamento da “doutrina Putin”, que cruza as heranças czarista e da ex-superpotência União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Segundo o investigador, professor no departamento de Escola de Política Aplicada na Universidade de Sherbrooke (Canadá) e membro do Observatório da Eurásia, o pragmatismo na política externa e o corte com a política ocidentalista de Boris Ieltsin, da sua submissão aos interesses ocidentais e do menosprezo pelos interesses da Rússia no seu espaço tradicional de influência, bem como a aplicação da doutrina da “democracia soberana” são os conceitos que predominam nos corredores do Kremlin.

Em artigo da revista “Diplomatie”, intitulado “La ‘doctrine Poutine’, rempart contre l’hégémonisme occidental?” (“A ‘Doutrina Putin’, baluarte contra o hegemonismo ocidental?”), o académico aborda os interesses e objetivos russos, não as decisões que impõem os Estados estrangeiros, e Putin a referir que “a Rússia apenas é tratada com respeito quando é poderosa”.

Com efeito, a expansão da zona de influência da NATO e da UE até às fronteiras russas e a formação de um cordão sanitário político, económico e militar entre a Europa e a Rússia são encaradas com apreensão por Moscovo. A intervenção dos aliados na Bósnia-Herzegovina, a partir de 1995, e no Kosovo, desde 1999, reforçaram a urgência em aplicar a nova doutrina, na qual a reforma das Forças Armadas constituiu um dos vetores decisivos. E, três décadas após a dissolução da URSS, a Federação da Rússia (nome oficial), liderada por Putin desde 2000, tem-se esforçado por desenvolver novas parcerias e apresentar-se como uma potência euroasiática, para contrabalançar o poder ocidental, sublinhando a necessidade de “respeito dos fundamentos do direito internacional público”, em particular a soberania do Estado e a não-ingerência nos assuntos internos. Nesta lógica, como recordava Binette, operou-se a grande “viragem a leste”, concretizada pela aproximação à China e, a seguir, à Índia e ao Irão.

Em termos de diplomacia multilateral, sobressai a participação da Rússia na Organização de Cooperação de Shangai (OCS) e na União Económica Euroasiática (UEE). Porém, em diversas organizações (ONU, Conselho da Europa [CE], Conselho dos Direitos Humanos [CDH]), a utilização da força pelas potências ocidentais para o derrube ou tentativa de derrube de “governos legítimos” (Iraque em 2003, Líbia e Síria em 2011) são apontadas pelos dirigentes russos como flagrantes violações da soberania destes Estados.

Foram, entretanto, as “revoluções coloridas” junto às suas fronteiras – Geórgia (2003), Ucrânia (2004) e Quirguízia (2005) – e, sobretudo, as manifestações na praça Maïdan que levaram ao derrube do presidente pró-russo Viktor Ianukovitch (fevereiro de 2014), que, para o Kremlin, comprovaram a lógica de ingerência ocidental e implicaram medidas de contenção internas.

No entanto, como sublinhava Binette, a credibilidade do discurso russo como defensor do direito internacional foi posta à prova na sequência da crise ucraniana, em particular com a anexação da Crimeia em 2014. Moscovo acusou o derrube de Ianukovitch de ilegal e resultante da ingerência dos Estados ocidentais na política ucraniana e, na sua diplomacia, passou a priorizar o direito dos povos à autodeterminação em detrimento dos princípios da integridade territorial e da intangibilidade das fronteiras.

Esta nova abordagem foi explicitada por Putin no discurso que proferiu na Assembleia-Geral da ONU, a 28 de setembro de 2015, no qual se socorreu do precedente do Kosovo, acentuando que, para si, “o território e as fronteiras não são mais importantes do que o destino das populações”, pelo que se interrogava sobre se os kosovares no Kosovo dispõem do direito à autodeterminação, por que motivo não disporão do mesmo direito os habitantes da Ucrânia.

O reconhecimento internacional da independência do Kosovo, em 2008, constituiu o fator decisivo para a Rússia alterar as suas políticas nesta área. De imediato, à custa da Geórgia, Moscovo reconheceu as independências da Abecásia e da Ossétia do Sul, “zonas de influência” junto das suas fronteiras. E, apesar de permanecer com sérios problemas internos, incluindo o demográfico, o restabelecimento do seu poderio militar e a aproximação à China permitiu à Rússia reposicionar-se como potência internacional e como ator incontornável na resolução de conflitos, mesmo permanecendo problemático o seu isolamento em relação à Europa.

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Tudo leva a crer, pelas afirmações reiteradas ao longo deste ano, que Putin e quem lhe suceder tudo farão para levar por diante a doutrina do carismático Putin de expansão e de consolidação da Rússia como a maior potência mundial. Conseguirão tal objetivo? Depende também dos outros…

2022.08.02 – Louro de Carvalho

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