quarta-feira, 17 de agosto de 2022

O teletrabalho, incrementado na pandemia, persiste em Portugal

 

Trabalhar a partir de casa, com recurso aos meios informáticos e ligação à Internet, era excecional modalidade de prestação de serviço que, embora já com antecedentes, alguns agentes económicos começaram a implementar na década de 90 do século XX. Recordo-me de, sendo diretor pedagógico da Escola Profissional de Sernancelhe, participei num colóquio organizado pela Associação das Mulheres Empresárias em Portugal (AMEP), no Hotel Lamego (na cidade de Lamego) em que os peritos convidados enfatizavam as vantagens do teletrabalho, não só em termos apriorísticos, mas também com exemplos práticos.

Com o advento da pandemia de covid-19, por causa do SARS CoV-2, o teletrabalho foi amplamente incrementado, tornando-se obrigatório, sempre que possível, durante alguns períodos de tempo e em alguns setores, os que ofereciam alguma compatibilidade com este enquadramento do trabalho. É verdade que, em muitos setores da atividade, incluindo alguns departamentos da administração pública, o teletrabalho, mormente na forma de teleatendimento, constituiu uma vergonhosa subtileza para afastar os cidadãos do acesso aos serviços que a lei e o bem-estar os obrigavam a frequentar. Por outro lado, a implementação do regime de teletrabalho levantou problemas que o tempo e a determinação política, nem sempre clara e pronta, ajudaram a resolver. Tais problemas eram, por exemplo, sobre quem era o responsável logístico e monetário pela aquisição, instalação e usos dos equipamentos, sobre as formas normais e abusivas de controlo do serviço, sobre a comparência ou não nas instalações da empresa-serviço, sobre horário de trabalho, respeito pelos tempos de descanso, folga e refeições, sobre a manutenção do direito ao subsídio de refeição e à proteção contra acidentes em serviço, sobre a obrigatoriedade ou não deste regime e sobre a vinculação ou não à empresa-serviço, entre outros.           

Parece que esta pandemia terá os dias contados, mas o teletrabalho persiste, não como obrigatório, mas por acordo entre empregador e trabalhador, obedecendo aos normativos que regulam as relações laborais e, em especial, o regime de trabalho à distância. Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), recém-publicados, mostram que, no segundo trimestre deste ano, 958,6 mil trabalhadores, 19,6% do total da população empregada – repartidos quase meio por meio entre homens e mulheres (respetivamente, 49,4% e 50,6%) – exerciam funções a partir de casa, com recurso a tecnologias de informação e comunicação (TIC), ou seja, em teletrabalho.

Várias empresas apostaram num regime híbrido, isto é, combinaram o trabalho presencial e o remoto, mas um terço (33%) destes profissionais trabalhou 100%, ou seja, sempre a partir de casa. Trata-se sobretudo de profissionais com ensino superior, perto de metade com 45 ou mais anos, concentrados, principalmente na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e na região Norte.

Na verdade, A AML lidera no teletrabalho, pois lá residiam 41,8% dos profissionais que entre abril e junho se encontravam neste regime, uma liderança que não surpreende mercê do peso da região no emprego total (é a segunda com maior número de pessoas empregadas) e mercê da concentração do teletrabalho nos setores dos serviços. E a região Norte, que lidera em termos de emprego total, fica na segunda posição no universo de profissionais em teletrabalho, com 30%.

Os números ora referidos de trabalhadores identificados pelo INE como estando em teletrabalho no segundo trimestre de 2022 não são comparáveis com o dos contabilizados em trimestres anteriores, porque foi alargado o conceito usado para calcular a população em teletrabalho. Deixam de ser consideradas apenas as pessoas que trabalharam maioritariamente em casa, passando a ser contabilizadas todas as que referiram ter trabalhado a partir de casa, qualquer que seja a frequência com que o tenham feito. Seja como for, os valores numéricos e percentuais falam por si: 75% dos profissionais em teletrabalho neste segundo trimestre tinham formação a nível do ensino superior. Este é, pois, um dos fatores mais importantes na caraterização do universo das pessoas que se mantêm em trabalho remoto, depois deste regime laboral ter entrado nas empresas com a pandemia. Os dados mostram que, tendo em conta o universo total da população empregada no país com formação superior, 40,8% estiveram em teletrabalho entre abril e junho. E seguem-se os trabalhadores com qualificações a nível do ensino secundário e do pós-secundário que representam 19,6% dos teletrabalhadores. Apenas 5,2% das pessoas em teletrabalho tinham escolaridade abaixo deste nível de qualificação, ou seja, o 9.º ano de escolaridade.

Assim, os dados indiciam que baixas qualificações não se coadunam com o teletrabalho, o que é de admirar, pois é comum dizer-se que os adolescentes têm muito jeito, uma competência quase inquestionável para liderar com as novas TIC, a menos que tal competência se direcione só para jogos, música e conversação de lana caprina. Porém, do total da população empregada no segundo trimestre, com escolaridade até ao 9.º ano, só 3,1% estiveram em trabalho remoto.

Em linha com o nível de qualificações, ressalta que os “especialistas das atividades intelectuais e científicas” representam a maior fatia dos trabalhadores remotos (59,9% do total). No ranking de profissões com maior peso no teletrabalho, destacam-se também os “técnicos e profissionais de nível intermédio” (15,5%), a que se seguem os “representantes do poder legislativo e de órgãos executivos, dirigentes, diretores e gestores executivos” (10,8%). E ainda se diz que os nossos políticos são incompetentes!

A desagregação por setores de atividade dos profissionais em teletrabalho mostra o claro domínio dos serviços: 86,7% dos profissionais trabalhavam no setor terciário, cabendo a maior fatia à “educação” (incluindo as instituições do ensino superior), com 22% do total de teletrabalhadores. Pudera! Tiveram, entre outras ações, de fazer reuniões não presenciais, apoiar remotamente alunos que tinham de faltar à escola, apresentar relatórios às direções escolares e aos diversos serviços ministeriais, muitas das provas de aferição foram realizadas por via eletrónica.  

Logo a seguir vêm as “atividades de informação e comunicação”, com 14,6% do total, e as “atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares”, com 13%.

A maioria que está em teletrabalho (79,3%) é de trabalhadores por conta de outrem (TCO), mas o peso destes no teletrabalho é inferior ao que atingem na população empregada no país (84,5%). Já os trabalhadores por conta própria valem 20,2% do universo de teletrabalhadores – um peso superior aos 14,7% que têm no total do emprego no país. Os profissionais seniores (com 45 e mais anos) representam quase metade (49,1%) dos trabalhadores em regime remoto. Contudo esta também é a faixa etária dominante no mercado de trabalho, representando 51,3% do total da população empregada no segundo trimestre deste ano. A segunda faixa etária mais representativa no teletrabalho é a dos 35 aos 44 anos, que representa 27,1%. O peso desta faixa etária no trabalho remoto é até superior ao peso que tem no total do emprego no país, onde fica pelos 24,6%.

Com a pandemia a perder força, muitas empresas encetaram um regresso ao trabalho presencial adotando modelos híbridos, combinando trabalho presencial e remoto. Os dados indicam que dos cerca de um milhão de pessoas que trabalharam em casa no segundo trimestre do ano, 27,6% o fizeram regularmente, mediante um sistema que concilia trabalho presencial e em casa. Porém, uma parcela ainda maior (33%) trabalhou sempre em casa, ou seja, em regime não presencial. É de relevar o facto de um em cada quatro trabalhadores (25,2%) que trabalharam em casa, indicarem que desempenham funções fora do horário de trabalho. E o INE revela que, tendo em conta o total da população empregada que indicou ter trabalhado em casa no período analisado, o número médio de dias por semana trabalhados em casa, foi de quatro.

Os ganhos de produtividade são uma das principais vantagens apontadas ao trabalho remoto. Contudo, o estudo “Personality traits, remote work and productivity” (Traços de personalidade, trabalho remoto e produtividade), dos economistas Nicolas Gavoille e Mihails Hazans, realça que não há relação linear. Os ganhos dependem dos perfis pessoais e dos traços de personalidade dos trabalhadores envolvidos. Com efeito, analisada a produtividade de 1700 teletrabalhadores, com base em cinco perfis distintos – os extrovertidos, os conscientes, os amáveis, os emocionalmente estáveis e os disponíveis para novas experiências –, os dados documentam a existência de relação direta entre as caraterísticas pessoais dos profissionais, a sua produtividade e a sua predisposição para continuar a trabalhar remotamente. Perfis conscientes e disponíveis estão positivamente associados a maior produtividade quando em trabalho remoto, sobretudo no caso das mulheres. Já nos perfis extrovertidos, a preferência pelo teletrabalho é negativa e tem impacto negativo na produtividade. Assim, a investigação conclui que uma política transversal pré-formatada de trabalho (com regras iguais para todos os profissionais), impondo o modelo remoto ou presencial, “não maximiza nem a produtividade da empresa, nem a satisfação dos trabalhadores”.

E este ponto não é irrelevante. Nos últimos meses, ancorados nas dificuldades de contratação em vários setores, os trabalhadores ganharam poder negocial e ditam as regras de contratação, exigindo maior flexibilidade na gestão do trabalho e a possibilidade de o desempenhar em sistema remoto. Muitos despediram-se face à recusa do empregador ou à imposição do regresso ao escritório. Mas já se questiona, com a conjuntura económica a degradar-se, nomeadamente na Europa e nos Estados Unidos, e com a possibilidade da recessão no horizonte, se esse poder negocial dos trabalhadores se manterá e se a possibilidade de teletrabalho continuará a ser fator-chave na decisão de mudança de emprego. Alguns observadores admitem o risco, mas sustentam que dependerá da evolução do cenário económico. Para já, não há sinais da perda do poder negocial dos candidatos e, a acontecer, “não será uma tendência generalizada no mercado”. Dependerá do perfil dos candidatos, da escassez (ou não) de profissionais e de dificuldades de contratação, devendo os candidatos continuar a ditar as regras em muitos casos.

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O Código do Trabalho, na redação que lhe deu a Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro, em vigor a partir a 1 de janeiro de 2022, estabelece, particularmente nos artigos 165.º a 171.º, o novo regime jurídico do teletrabalho. Um dos principais objetivos é garantir a igualdade de tratamento dos trabalhadores desse regime com o dos outros. Assim, como quem está a trabalhar em regime presencial, quem trabalha remotamente deve ter contrato, horário de trabalho, formação, salário e oportunidades de progressão na carreira. Qualquer trabalhador tem direito ao teletrabalho, desde que tal venha a ser acordado entre empregador e trabalhador. Adicionalmente, fica estipulado que não pode ser negada a realização de teletrabalho às vítimas de violência doméstica, a pais com filhos de idade até três ou oito anos e a cuidadores informais.

O teletrabalho é extensível a pais com filhos até aos 8 anos de idade quando ambos os progenitores reúnem condições para a atividade em regime de teletrabalho, desde que exercido por ambos em períodos sucessivos de igual duração num prazo máximo de 12 meses, e no caso de famílias monoparentais ou de situações em que só um dos progenitores reúne condições para o exercício da atividade em regime de teletrabalho.

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Em suma, respeitando os contextos, observando as normas legais e não deixando de zelar pelos superiores interesses da empresa-serviço, o teletrabalho pode ser um fator de humanização, da articulação família-trabalho e da relação trabalho-valorização pessoal, social e profissional.

2022.08.17 – Louro de Carvalho

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