quarta-feira, 10 de agosto de 2022

A propósito de um olhar enviesado sobre o racismo na atualidade

 

No dia 8 de agosto, o alinhamento do Jornal da Noite, da SIC contemplou uma investigação sob o título “Os bastidores sombrios do Mundial do Qatar”, em que Manuel Gomes Samuel, chefe da missão da embaixada portuguesa em Doha, personificando o estilo “cidadão do mundo”, declarou não ver que haja racismo no Qatar. Ao invés, no seu modo enviesado de olhar, a situação é inversa: um tratamento condigno dos trabalhadores estrangeiros.

Tal declaração vem, supostamente, acompanhada da defesa da teoria racista – que os estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostram ser infundada – de que trabalhadores com mais melanina na pele, provindos de países com climas em que o sol tem mais forte incidência, têm mais capacidade para trabalhar ao calor.

Em artigo de opinião, no Público, de 10 de agosto, a jornalista Carmo Gomes admite que, para Gomes Samuel não haja racismo ali, provavelmente pelo facto de pensar que “racismo deve meter chicotes e navios negreiros”. Por isso, comparativamente com a dúzia de países onde o diplomata diz já ter vivido, “o Qatar vai muito bem”. A exploração e a discriminação são inócuas!

Não obstante, a jornalista, sem papas na língua e sem pruridos de caneta, escreve textualmente que “as violações dos direitos mais básicos dos trabalhadores, enquanto trabalhadores e enquanto pessoas, são graves e são uma constante”. E especifica: salários muito baixos (o salário mínimo quase nunca chega a 250 euros), seis dias de trabalho semanais com sobrecarga horária e exposição a altas temperaturas e com o dia de descanso nem sempre concedido aos trabalhadores. Mais: trabalhadores estrangeiros têm direito a bilhete de regresso ao país de origem, mas só após dois anos de trabalho; partilham alojamento, em quarto que acolhe 12 trabalhadores e em condições degradantes; e o uso do telemóvel no período de trabalho pode dar como penalidade um ou dois meses de perda de retribuição.

Na última década, morreram a trabalhar milhares de migrantes, mas não há números oficiais. E, sem que tenha havido investigações, os relatórios dessas mortes apontam sempre causas naturais.

Por causa do Mundial de Futebol, o governo aprovou nova legislação laboral, mas que não regulamentou, pelo que não há sanções por incumprimento da parte das empresas. Assim, os trabalhadores estão sob um quadro normativo que já mereceu reparos e apelos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da OIT e que atenta contra os mais básicos princípios laborais. Por exemplo, como estão impedidos de mudar de empresa, ficam nas mãos dos empregadores.

A Amnistia Internacional (AI) denunciou a discriminação racial da parte dos empregadores, concretizada na diferenciação salarial e na do acesso a categorias profissionais, bem como nas condições de trabalho em função da nacionalidade e da cor da pele. Assim, o trabalhador tunisino recebe mais e é mais protegido dos trabalhos mais árduos relativamente ao trabalhador filipino. A este respeito, a ONU fala em sistema quase de castas e um estudo da OIT demonstra não haver diferenças no impacto do calor e na saúde, em razão da nacionalidade ou da cor da pele.

Indica a jornalista que, de um modo geral, ninguém fica bem a fotografia: Qatar, Federação Internacional de Futebol (FIFA), Federação Portuguesa de Futebol (FPF), Estado Português e, tem de ser dito, cada um de nós. Às organizações calha bem o dinheiro qatari, pelo que estão dispostas a meter um tapa-olhos e a ver só futebol. E os Estados – digo eu – veem as contrapartidas do turismo e do petróleo, pelo que funciona a hipocrisia diplomática.

Quanto ao futebol, Carmo Gomes tem razão. Efetivamente, “este Mundial assenta no princípio da nossa indiferença perante o atropelo dos direitos fundamentais de milhares de trabalhadores e das suas próprias vidas”. Todos estão convictos de que, no fim, conta mais o amor à bola. Com efeito, “tudo indica que nos entregaremos ao êxtase do futebol e que esqueceremos esta parte desagradável”, sendo como “comprar roupa manufaturada por crianças e tantos outros sapos que engolimos ou ignoramos, para podermos andar com as nossas vidinhas para a frente”.

Há quem que só há racismo, quando se disser ipsis verbis: “Eh, pá! Eu sou racista!”

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O racismo não está em denominar grupos étnicos de negros, vermelhos ou amarelos, mas envolve o preconceito e a discriminação baseados em perceções sociais assentes em diferenças biológicas entre povos. Não raro toma o modo de ação social, prática, crença ou sistema político que julgam diferentes raças inerentemente superiores ou inferiores com base em caraterísticas, habilidades ou qualidades comuns herdadas. Também pode afirmar que os membros de diferentes raças devem ser tratados de forma distinta. Alguns sustentam que qualquer suposição de que o comportamento da pessoa está ligado à sua categorização racial é inerentemente racista, não importando se a ação tem intuito prejudicial ou pejorativo, porque os estereótipos subordinam necessariamente a identidade do indivíduo à identidade de grupo. Em Sociologia e em Psicologia, algumas aceções contemplam só os modos conscientemente malignos de discriminação.

Entre as formas de definir o racismo está a inclusão (ou não) de formas de discriminação não intencionais, como as que fazem suposições sobre preferências ou habilidades dos outros com base em estereótipos raciais ou formas simbólicas e/ou institucionalizadas de discriminação, como a circulação de estereótipos étnicos na comunicação social e nas redes sociais. Também pode haver a inclusão de dinâmicas sociopolíticas de estratificação social que têm componente racial. Algumas definições de racismo incluem comportamentos e crenças discriminatórias baseadas em estereótipos culturais, nacionais, étnicos ou religiosos. 

Alguns defendem que o racismo é um preconceito aliado ao poder, visto que sem o apoio de poderes políticos ou económicos, o preconceito não seria capaz de se manifestar como fenómeno cultural, institucional ou social generalizado. Alguns críticos do termo dizem que ele é aplicado diferencialmente, com foco em preconceitos que partem de brancos e de formas que definem como racismo meras observações de eventuais diferenças entre as raças.

Enquanto raça e etnia são já considerados fenómenos distintos nas ciências sociais, os dois termos têm longa história de equivalência no uso popular e na literatura mais antiga das ciências sociais.

O racismo e a discriminação racial são, muitas vezes, usados para descrever a discriminação com base étnica ou cultural, independentemente de tais diferenças serem descritas ou não como raciais. À luz da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU, não há distinção entre “discriminação racial” e “discriminação étnica”, sendo a superioridade estribada em diferenças raciais “cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa”, como não há qualquer justificação para a discriminação racial, teórica ou prática, em qualquer lugar do mundo.

Historicamente, o racismo teve o papel de força motriz do tráfico transatlântico de escravos (África-África e África-Brasil) e dos Estados que se basearam na segregação racial, como os Estados Unidos no século XIX e início do XX e a África do Sul sob o regime do apartheid

São universalmente condenadas, na Declaração dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 1948), da ONU, as ideologias e práticas racistas, as quais constituíram uma parte importante da base política e ideológica de genocídios no planeta, em que sobressai o Holocausto, mas também em contextos coloniais, como os ciclos da borracha na América do Sul e no Congo, e na conquista europeia das Américas e no processo de colonização da África, da Ásia e da Austrália.

Em Portugal, embora haja linguagens e atitudes racistas, o racismo configura crime no código penal (art.º 240.º), e é circunstância de agravo importante como móbil de um crime. No entanto, o discurso é puro e poucos são os relatórios e as estatísticas da situação em Portugal no atinente à discriminação racial, apesar de haver registo de casos de violência na história recente do país.

Um relatório da União Europeia (UE), de 2018, entre 12 países europeus analisados, coloca Portugal como o país com as menores taxas de violência e de vitimização motivadas por racismo.

A nossa população, embora bastante homogénea, integra algumas minorias, tais como as minorias africana, cigana e brasileira. Devido ao passado expansionista de Portugal, há muito que o país lida com diferenças culturais, étnicas, nacionais e religiosas, entre outras. Nas colónias não vigoravam políticas oficiais de segregação ou de não miscigenação, o que indica tolerância a diferentes realidades, a par de maus-tratos a negros, formas de servidão, de subalternização e de dificuldade de acesso a determinadas profissões e à ocupação de certos cargos.

Desde a década de 1980 Portugal assiste a uma vaga migratória para o território, principalmente de África, da América do Sul e da Europa de Leste. Devido a mão-de-obra barata e/ou ilegal, há tendência para generalizar e associar à criminalidade as populações de imigrantes. Estudos revelam que negros, brasileiros e ciganos são as maiores vítimas do racismo em Portugal.

Portugal teve colónias e tem fraquíssima apresentação de negros nos centros de decisão. Contudo, não pode ser agora especialmente acusado de racismo estrutural e histórico deixando outros países (Inglaterra, França, Alemanha, Holanda…) no limbo da isenção de culpas. Todos devem assumir a sua História de sombras e de luzes e evitar atuais formas de colonialismo ou de neocolonialismo.

E quem está sem culpa atire a primeira pedra!

2022.08.10 – Louro de Carvalho

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