segunda-feira, 8 de agosto de 2022

É caprichosa a regulação feita pelas leis do mercado

 

Era expectável que Estados soberanos funcionassem como reguladores das relações económicas e arbitrassem o cumprimento das leis emanadas pelo poder soberano, que reside no povo, o qual entrega o seu exercício a representantes livremente escolhidos, sem abdicar de ter a palavra em matérias particularmente relevantes e em períodos de crise grave. Porém, não é assim na maior parte dos casos, já que o poder económico, dos grandes grupos empresariais, o poder financeiro, especulativo e sem rosto, e o poder político autocrático, a falar em nome do povo e pelo bem da nação, deixam que seja a cegueira do mercado a impor as regras sob o signo da inevitabilidade.

Muitos exemplos poderiam aduzir-se, mas basta-nos atender ao que se passa atualmente.

Quando os preços dos combustíveis sobem, o facto repercute-se, de imediato, na carteira dos consumidores, mas, quando baixam, a repercussão ou é tardia ou não é significativa.

Mal foram decretadas sanções económicas à Rússia por causa da guerra na Ucrânia, começou nova subida de preços, como se de nova e sucessiva pandemia se tratasse, e a insuficiência de produtos petrolíferos e de estruturas de produção e distribuição de energia elétrica fez soar os alarmes da poupança energética (voluntária e/ou forçada) e da escalada da subida de preços, com a concorrência a contradizer-se, o governo a disparar cautelas e os reguladores a falar chinês.       

Quando a crise atingiu a banca, os Estados mobilizaram-se e endividaram-se para a salvar. Os supervisores e reguladores decretaram juros diretores em taxas negativas, o que não se repercutiu nas taxas dos créditos pessoais e quase não se repercutiria nas dos créditos à habitação, se não houvesse uma diretiva dos bancos centrais nesse sentido.  Entretanto, os dinheiros depositados a prazo quase ficaram à taxa zero, criaram-se as taxas de manutenção das contas à ordem e as comissões bancárias por serviços prestados cresceram.

Agora que o Banco Central Europeu (BCE) e a Reserva Federal Americana (FED) aumentaram as taxas diretoras dos juros, a decisão repercute-se nos créditos pessoais e nos créditos à habitação, mas não nos juros dos depósitos. E crescem acima de 10% as comissões bancárias face a 2021, quando houve confinamento e menor atividade económica, mas também em relação a 2019, antes da pandemia. Isto, apesar do travão que o Parlamento colocou a alguns desses encargos.

A Caixa Geral de Depósitos (CGD), o Banco Comercial Português (BCP), o Santander Portugal (SP) e o Banco BPI encaixaram 1 078 milhões de euros nos primeiros seis meses de 2022, quando, em igual período de 2021, estava em 953,7 milhões, uma subida de 13%. O valor no primeiro semestre de 2019 estava em 905 milhões de euros, um ganho de 19%.

Os banqueiros, em conferência de imprensa, no início de agosto, avançaram várias justificações para tais subidas, estribando-se a grande maioria na recuperação económica, que levou a mais transações e operações bancárias sujeitas a tal custo. E não julgam que haja propriamente uma subida. Com efeito, comparando com o primeiro trimestre de 2021, em que “tudo o que estava associado a transações de cartões era praticamente inexistente, e havia o efeito das moratórias, em que não se podia cobrar créditos a empresas”, diz Pedro Castro e Almeida, líder do Santander, “voltamos ao padrão normal, o padrão de 2019”. Porém, a explicação é insuficiente, pois, mesmo face ao primeiro semestre de 2019, há subida de dois dígitos. Os bancos subiram as comissões, apontando-as como a alternativa para a obtenção de proveitos fixos, enquanto os juros estavam em mínimos históricos e não havia vendas de dívida pública para encaixar ganhos.

Ainda há meses, a associação de defesa do consumidor (DECO) apontava o aumento de 47% das comissões na última década. Sem conseguirem juros nos créditos concedidos e apesar de quase não remunerarem os depósitos, os bancos elevaram as comissões pelos serviços que prestam, o que levou o Parlamento a travar algumas comissões, designadamente no processamento de crédito e nas transferências MB Way, que entrou em vigor no início de 2021. Não obstante, nos dois últimos anos, continuou a haver crescimento de resultados nesta rubrica das instituições bancárias.

Sobre a decisão do BCE de subir os juros, tendo já decretado a passagem de zero para 0,5%, e as comissões não virem a descer, Miguel Maya, do BCP, disse tratar-se de um “processo de normalização”, não de “subida de juros para patamares que são fora da normalidade”, ou seja, para a taxa zero, que é “uma anormalidade” em relação ao que é “política monetária normal”.

João Pedro Oliveira e Costa, do BPI, frisou que os encargos sobre os serviços são “um tema ditado pela concorrência”, anotando a entrada de novos operadores, o que tem contribuído para a pressão em algumas comissões. Assim, contas e serviços associados, fundos e seguros de capitalização, créditos, seguros – todos estes campos têm vindo a render aos bancos. E Paulo Macedo, presidente do banco público, disse que as comissões “subirão sobretudo pelo crescimento da atividade”, um “crescimento por via do consumo”, em que “há unanimidade nacional que se quer estimular”.

Além da margem financeira, é sobre as comissões que o Governo espanhol quer aplicar o novo imposto sobre os lucros extraordinários, os “lucros caídos do céu”. Os banqueiros têm mostrado oposição (um gosto para Pedro Sanchez), mas, em Portugal, os líderes dos principais bancos têm dito que já sofrem impostos extraordinários, um deles implementado na pandemia (o adicional de solidariedade) e que não faz sentido sofrer novo embate, antes deveriam começar a reduzir.

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Entretanto, em 2022, os bancos portugueses orgulham-se dum semestre de lucros. 

A CGD obteve um lucro de €486 milhões no primeiro semestre, mais 65% do que no período homólogo de 2021. A grande causa é a inversão de imparidades e provisões antes constituídas, refletindo risco menor do que o esperado na covid-19. Também o câmbio do kwanza e do metical face ao euro ajudou a mais rendimento nas operações em Angola e Moçambique. A venda da sede da sucursal francesa deu €23 milhões. E a alienação da Esegur, parceria com o Novo Banco (NB), foi concretizada, mas o encaixe é registado no terceiro trimestre. E, como o Estado receberá no máximo 50% dos resultados, os dividendos chegarão quase aos €200 milhões, cabendo ao Ministério das Finanças decidir o que fazer aos bancos no Brasil e em Cabo Verde.

A Polónia continua a marcar, pela negativa, os resultados do BCP e os maus números vindos do Bank Millennium impediram um maior aumento de lucros do banco. O resultado líquido cresceu seis vezes, para os €74,5 milhões, mas está entre os mais magros na banca privada. O banco polaco acionará o plano de recuperação, mercê das decisões judiciais sobre os créditos indexados ao franco suíço, concedidos até 2008, mas o líder do BCP exclui a necessidade de aumento de capital por parte da casa-mãe, bem como a uma operação do género em Portugal.

No SP, não há novo plano de rescisões, como o do 2021 com o despedimento coletivo. Foi o que assegurou Castro e Almeida. Em junho, havia 4696 funcionários, menos mil que há um ano, mas não há intenção de baixar esse número. Graças a isso, os custos operacionais do banco deslizaram, mas o produto bancário cedeu, pelo que foi a rubrica de imparidades e provisões a dar contributo favorável na comparação homóloga. O lucro quase triplicou, situando-se em €241,3 milhões. Os rácios de capital continuam perto de 20%, mesmo com os mais de €1,5 mil milhões de resultados distribuídos aos acionistas em três meses.

No NB, os últimos resultados de António Ramalho, de saída, chegaram aos €267 milhões, quase o dobro do período homólogo. A evolução é explicada, em boa parte, pela venda da carteira de imobiliário de logística. O rácio de capital mais exigente, o CET 1, que subiu um ponto percentual, ficou em 11,8%, sendo que, por estar abaixo de 12%, pode ser acionado o mecanismo que permite pedir mais capital ao Fundo de Resolução. Porém, a venda da sede em Lisboa e dos hotéis e ativos geridos pela sociedade de capital de risco ECS permitirão compor a solidez sem tal necessidade. Em todo o caso, há litígios no tribunal arbitral por decidir, sendo que o novo presidente executivo, Mark Bourke, à espera do Ok do supervisor para o cargo, disse que as respostas só virão em 2023. O que deverá vir também é a entrega a novo tribunal arbitral do tema da injeção de €209 milhões, pedida pelas contas de 2021, que não foi feita.

O BPI quer vender a operação em Angola, por pressão do BCE e por vontade do acionista CaixaBank. Porém, esta foi a que mais contribuiu para os lucros de €201 milhões no primeiro semestre. Foram €100 milhões, mais 9% que no semestre homólogo, com o moçambicano BCI a dar mais 87% do que há um ano. A atividade nacional rendeu um resultado estagnado de €85 milhões. Excluindo os fatores extraordinários registados no primeiro semestre de 2021, o lucro em Portugal teria um aumento de 23%.

Quanto ao Banco Montepio, do grupo mutualista (ora de boa saúde, com lucros), é preciso recuar a 2010 para encontrar um tão bom primeiro semestre. Após os prejuízos de €33 milhões entre janeiro e junho de 2021, o banco obteve um lucro de €23,3 milhões, valor justificado com mais proveitos, menos custos e recuo nas imparidades. O conjunto de exposições não produtivas (NPE), em que se insere o crédito malparado, baixou, mas ainda representa 7,7% da carteira. Os rácios de capital do Montepio, que tem sido um dos problemas, melhoraram, em parte graças ao Finibanco Angola. Um banco que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa queria salvar (ou dominar) e que integra a entidade proprietária, mas em fraca minoria, está a reerguer-se!

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A desenfreada subida de preços é atribuída à inflação e esta à guerra na Ucrânia, que gera tão grande mal-estar como anteriormente a epidemia, cujo ambiente ainda persiste.

Como adverte Maria José Bijóias Mendonça, a culpa, se não morre solteira, casa com tudo e com todos, incluindo o povo, que falha na escolha dos seus representantes. E tal promiscuidade é ocasião para a engorda das fortunas dos líderes de megaempresas nos setores agrário, petrolífero, farmacêutico, tecnológico, de armamento, sendo os ilegítimos lucros destes grupos os verdadeiros culpados pelo disparo dos preços dos alimentos, dos combustíveis, da energia, das comunicações.

Foi obscenamente mutilado o poder de compra da população mundial e mais de 240 milhões de pessoas correm o risco de pobreza extrema e enfrentarão o flagelo da fome. Contudo, a riqueza dos poucos, os mais abastados, subiu mais nos últimos dois anos do que nos 23 anteriores. E os 10 homens mais ricos do mundo possuem mais de 40% do que o resto da Humanidade. Assim, o homem mais rico à face da Terra, que engrossou a sua fortuna sete vezes desde 2019, pode desbaratar 99% e continuará no top dos mais ricos. 

Mais do que à escassez da oferta, a abstrusa subida da inflação deve-se ao desmedido lucro das grandes empresas e à especulação financeira. E permanece atual a máxima de que “o Povo paga a crise”, pois, não obstante esses milhares de milhões de lucros, em muitas empresas, suprimem-se salários e os pagamentos a fornecedores, dobram-se os trabalhos e espezinham-se os direitos dos trabalhadores; os contribuintes veem aumentados os impostos e as contribuições; e os consumidores pagam mais pelos produtos que adquirem. Ademais, as margens de lucro são combinadas entre os “monstros” das diversas áreas de negócio.  

E o poder regulador do Estado? O Estado limita-se a tirar de um lado para colocar noutro: aumenta a carga fiscal, distribui subsídios e simula regulação. Nos grandes não se mexe: podem morder…

2022.08.09 – Louro de Carvalho

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