domingo, 21 de agosto de 2022

Abuso sexual de menores e alguns acordos da Santa Sé com Estados

 

A jornalista Fernanda Câncio vincou, a 20 de agosto, no Diário de Notícias, a alegada divergência entre o discurso papal sobre o imperativo de expor a verdade e compensar as vítimas e algumas concordatas assinadas sob a égide de Francisco, que impõem que a justiça avise a hierarquia de investigações contra clérigos, barricam arquivos e (caso de Angola) restringem a responsabilidade civil e criminal à pessoa física dos eclesiásticos condenados, para evitar pagar indemnizações.

De toda a denúncia, informação ou inquérito relativo a membro do clero ou a religioso, por motivo de comportamento incompatível com as leis civis ou penais do país, as autoridades judiciárias darão conhecimento ao respetivo bispo, antecipadamente e de maneira confidencial. Se esses procedimentos respeitarem a bispo ou a alguém com estatuto similar no Direito Canónico, a Santa Sé será também informada, através da Nunciatura Apostólica. Este é o teor do artigo 9.º do acordo-quadro assinado entre o Benim, pequeno país de 12,5 milhões de habitantes da África ocidental, e a Igreja Católica (IC), através da Santa Sé (distinta do Estado do Vaticano), a 21 de outubro de 2016, três anos após a eleição de Francisco e quando por todo o mundo se sucediam processos criminais e inquéritos sobre abusos sexuais por membros da IC.

Esta intromissão no processo judicial, que não se vê, por exemplo, nem na celebrada com Portugal em 2004 (segundo alguns penalistas, seria inconstitucional), nem em outras assinadas por países europeus, está, em diferentes graduações, presente em recentes acordos da Santa Sé com vários países africanos – República Centro-Africana (2016), República do Congo (2017), Angola e Burquina Faso (2019) – e com Timor-Leste (2015), países pobres e sem poder reivindicativo.

Só três dos acordos – Timor-Leste, Angola e Burquina Faso – ressalvam que o aviso à hierarquia só pode dar-se se não implicar prejuízos para as finalidades do procedimento, isto é, se não prejudicar a investigação (o de Angola refere também a necessidade de não haver prejuízo para o segredo de justiça). E só o do Burquina Faso e o da República Centro-Africana excetuam os casos de flagrante delito. É no acordo com este último país que se vai mais longe nas garantias em caso de investigações com clérigos católicos como objeto, estabelecendo o “foro privilegiado”, que se aplica, na generalidade dos países, às mais altas figuras do Estado: no caso de bispo ou de padre a exercer jurisdição equivalente, é necessária a autorização prévia do Procurador-Geral e a Santa Sé será logo informada via Nunciatura Apostólica.

O desígnio de limitar a independência do poder judicial e o escopo da sua ação no atinente à Igreja não se atém ao aviso: inclui a exclusão de acesso às instalações, arquivos e registos da entidade, como se fosse em território estrangeiro, com o estatuto de embaixada, a que as autoridades não acedem sem convite ou autorização; o direito de recusa de testemunho para os seus membros, alegando sigilo profissional; e a isenção indemnizatória para a instituição, que recusa, em dois dos países em causa, assumir qualquer responsabilidade face às vítimas. Entretanto, é de recordar que o acordo com o Benim foi assinalado pelo papa, em janeiro de 2019, na alocução ao corpo diplomático, aludindo ao abuso de menores, que denominou de “uma das pragas do nosso tempo, que tristemente envolve também alguns membros do clero”, “um dos mais vis e hediondos crimes concebíveis”, que gera “danos irreparáveis para a vida”. Por isso, assegurou que a Santa Sé e a Igreja trabalham para combater e prevenir esses crimes e o seu encobrimento, visando chegar à verdade dos factos e assegurar justiça aos menores que sofreram a violência sexual agravada pelo abuso de poder. Porém, segundo a jornalista, não ressalta o trabalho para combater e prevenir o crime de abuso sexual e o do seu encobrimento e assegurar justiça às vítimas. Ao invés, quanto mais recente é o instrumento legal, mais as disposições neles constantes avançam no sentido de dificultar o trabalho das autoridades judiciárias ou de outras instâncias de investigação (em países, como a Irlanda e a Austrália, o governo nomeou comissões para investigar os abusos cometidos no seio da IC) e de impossibilitar a assunção de responsabilidade pelas dioceses.

É nos acordos do Burquina Faso e de Angola, ambos de 2019, que surge a deliberação de furtar a IC a responsabilidades civis (indemnizações) e criminais (por encobrimento, por exemplo) nos casos em que os seus membros sejam condenados.

Essa responsabilidade relativa aos delitos civis e aos crimes cometidos por eclesiásticos é meramente pessoal. As sanções resultantes dos mesmos só podem ser impostas às pessoas físicas que os cometeram, pelo que só essas responderão com os seus bens pessoais aos danos materiais, imateriais ou morais ligados ao delito ou ao crime. É o que impõe o acordo com Angola.

O acordo do Burquina Faso ressalva desta desresponsabilização geral os casos de cumplicidade comprovada: “Em todos os casos, a responsabilidade penal e os efeitos civis que decorrem dos processos são sempre pessoais e, salvo cumplicidade comprovada, não implicam nem a instituição a que pertence o faltoso nem os seus responsáveis hierárquicos”. Assim, apenas as pessoas físicas que cometeram a infração penal “respondem, com os bens pessoais, pelos correspondentes danos materiais, imateriais ou morais".

Na verdade, a IC tem sido obrigada a pagar avultadas indemnizações às vítimas dos crimes dos seus membros, tendo várias dioceses entrado em falência devido a tais reparações, em que o direito se tem fundado sobretudo na prova, obtida nos arquivos, de que a hierarquia, tendo conhecimento de denúncias, não as valorizava ou tentava calar e descredibilizar as vítimas ou, ciente de que o clérigo ou religioso em causa era problemático, se limitava a mudá-lo de paróquia ou de país “muitas vezes para países do terceiro mundo, onde a capacidade de denúncia e reação de eventuais novas vítimas seria menor. Já em 2003, um relatório do Procurador-Geral de Boston, em resultado da investigação inspirada pelas reportagens do jornal The Boston Globe sobre abuso sexual por membros daquela diocese, concluía que a vitimização sexual de crianças por membros da IC era generalizada e conhecida pela hierarquia. Seguiram-se escândalos em catadupa. Em 2018, o Relatório da Pensilvânia (de 14 de agosto desse ano), analisando sete décadas de abuso sexual por sacerdotes católicos daquele Estado americano descrevia o modus operandi da hierarquia face às denúncias de abuso: nunca falava, nos registos escritos, de violação nem de abuso, usando expressões mais suaves, como “contacto inapropriado”; para inquirir de denúncia, escolhia padres sem experiência na condução destes inquéritos; se um padre acusado era retirado, nunca se informava das razões a comunidade; e nunca se informavam as autoridades policiais ou judiciais, mandando-se, quando muito, para centros da Igreja para serem avaliados.

O atinente à alegada inviolabilidade dos arquivos, que a Santa Sé garante nos acordos, vê-se no acordo com a República Centro-Africana: “Assegura a inviolabilidade dos locais de culto: igrejas, capelas, oratórios, cemitérios e suas dependências, em particular os presbitérios, os conventos e os arquivos eclesiásticos. A força pública pode aceder a estes lugares por convite da Autoridade eclesiástica competente ou, ainda, depois de notificação da mesma Autoridade, para executar um mandado judiciário contra pessoas acusadas de delitos cometidos no território do Estado.”

Restringir a execução de mandados nesses locais aos que se refiram a “pessoas acusadas de delitos cometidos no território do Estado” pode ser interpretado como querendo dizer que eventuais crimes cometidos nesses lugares não estão abrangidos pela autoridade do dito Estado, mas pela IC – reivindicação que esta tem apresentado, sob outras vestes, noutras paragens. No acordo do Burquina Faso, “pertence exclusivamente à Autoridade eclesiástica a fixação livre das leis e regulamentos e todos os atos jurídicos nos domínios da sua competência”, deixando dúvidas sobre quais serão esses domínios. Há situações, como na Argentina, em que a IC afirma não ter de se submeter ao Estado constitucional de Direito, recusando cumprir ordens de tribunal.

Nenhum dos textos analisados tem disposições tão extremas como o da República Centro-Africana, mas a inviolabilidade dos arquivos está em todos, exceto no de Timor-Leste.

Refira-se que, no âmbito do segredo profissional eclesiástico, a Concordata de 2004 com Portugal vai mais longe, assumindo a disposição da de 1940, proibindo até a pergunta: “Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério.” (artigo 5.º).

É curioso, segundo Câncio, verificar que acordos tão recentes recuperam disposições que se encontram num acordo com 68 anos – o celebrado em 1954 com a República Dominicana, país com religião oficial católica –, tornando-as ainda mais favoráveis à Igreja Católica.

No acordo com a República Dominicana, assinado durante a ditadura de Trujillo Molina e cuja constitucionalidade tem sido posta em causa, encontra-se a imposição de tratamento especial para religiosos católicos em caso de detenção ou prisão: “O eclesiástico ou religioso será tratado com o respeito devido ao seu estado e grau. Em caso de condenação de um eclesiástico ou religioso, a pena cumprir-se-á, quando seja possível, num local separado do destinado aos leigos, a menos que o Ordinário do sítio tenha reduzido o condenado ao estado de leigo.”

Foi em 2019, ano no qual a Santa Sé assinou os acordos com o Burquina Faso e Angola, que teve lugar no Vaticano, em fevereiro, a reunião “histórica” dedicada à questão do abuso sexual de menores, que juntou 114 presidentes de conferências episcopais. Aí, o cardeal Reinhard Marx, da Alemanha, admitiu que os arquivos da Igreja no país sobre abusos sexuais foram destruídos ou nem foram criados. E, em dezembro, o papa, que afiançou, no final da dita reunião, que “a Igreja não procurará jamais dissimular ou subestimar qualquer um desses casos”, anunciava, num conjunto de medidas que alteravam a lei canónica, o fim do segredo pontifício nos casos de violência sexual e de abuso de menores e de adultos vulneráveis cometidos por membros do clero.

À primeira vista, a orientação contradiz as disposições sobre inviolabilidade dos arquivos que se encontram nas concordatas recentes. E Fernanda Câncio aproveita para fazer um levantamento dos casos denunciados na Argentina e criticar a forma com a hierarquia naquele país tem utilizado a concordata, eximindo-se às decisões dos tribunais.  

Depois, a jornalista menciona a carta que um grupo de relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) dirigiu, em abril de 2021, ao cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, alegando que a IC está vinculada aos tratados internacionais que assina. A carta verbera a IC, em cujas complexas definições jurídicas as autoridades católicas costumam acobertar-se, à imagem do que sucede no mundo da finança com a criação de empresas fantasma para evadir responsabilidades e identidades, por dizer uma coisa e fazer outra.

***

A jornalista fez bom trabalho de análise. Porém, não pode insinuar que a territorialidade (em que a justiça não tem acesso a arquivos) seja privilégio da Igreja, pois é prerrogativa dos Estados com quem outro Estado tem relações. Não é o facto de os países do Terceiro Mundo serem pobres que leva a mais cautelas, mas talvez a insegurança. Ademais, os acordos são firmados por Estados em pé de igualdade, sendo todas as cláusulas devidamente discutidas.

Embora os crimes em causa sejam hediondos e a IC deva pedir desculpas, devem ser tratados nos termos saudáveis do direito penal, como: garantias de defesa; proteção das vítimas; consulta entre Estados; observância da prescrição; medidas adequadas e proporcionadas. Sei que o objetivo de muitos não é a reparação, mas a indemnização. Ora, não há culpa coletiva e a IC vive dos contributos dos fiéis. Por isso, não é justo que a comunidade pague por erros das pessoas físicas. Só deve recair a indemnização sobre quem comete o crime e os seus cúmplices, por exemplo o encobridor deliberado. O resto é abusivo e pode ser demagógico.

2022.08.20 – Louro de Carvalho

 

Sem comentários:

Enviar um comentário