terça-feira, 30 de agosto de 2022

Ao invés do que alguns esperavam, o Papa não anunciou a renúncia

 

Concluíram-se, na tarde de 30 de agosto, os trabalhos da Reunião dos Cardeais com o Papa, iniciada no dia 29, sobre a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, que pretende a reforma de toda a administração da Cúria Romana. O encontro ocorreu em clima fraterno e contou com a presença de quase 200 cardeais, patriarcas orientais e superiores da Secretaria de Estado.

Os trabalhos em grupos linguísticos e os debates na Sala Nova do Sínodo deram lugar à discussão livre de muitos aspetos relacionados com o documento e com a vida da Igreja, enquanto a última sessão do dia 30 foi dedicada ao Ano Santo de 2025, dedicado ao tema da Esperança. E, com a celebração da Santa Missa, presidida pelo Papa Francisco, na Basílica Vaticana, concluiu-se o encontro e cada participante retornará à sua diocese ou ao seu posto na Cúria Romana.

Os cardeais presentes na reunião convocada e desejada por Francisco para refletir sobre a reforma da Cúria Romana falaram de “confronto fraterno” e “clima dialogante”. É uma Cúria que, “não pertence apenas ao Papa, mas a toda a Igreja”.

Na última tarde, Dom Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, apresentou o Jubileu de 2025. Os dois dias de encontro viram, pela primeira vez nos quase dez anos de pontificado, quase todo o Sacro Colégio reunir-se em torno do Papa.

Como no dia 29, a sessão do último dia, contou com os cardeais, os patriarcas e os superiores da Secretaria de Estado divididos em grupos linguísticos para refletirem, seguindo a diretriz fornecida nas últimas semanas, sobre os elementos de novidade e sobre os desafios que a Praedicate Evangelium traz à Cúria Romana e à Igreja universal. Entre esses, conta-se o papel dos leigos, a transparência financeira, a sinodalidade, a estrutura de organogramas curiais, a missionariedade e o anúncio do Evangelho numa era como a atual.

O cardeal Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, comentou que é difícil apontar só um tema, porque a Praedicate Evangelium toca todas as dimensões da Igreja, do ponto de vista da estrutura e da organização da Cúria. Assim, com o diálogo entre os que vêm das Igrejas particulares e os que trabalham em Roma toca-se um pouco de tudo, o que reflete bem “a amplitude e profundidade do documento”.

O confronto entre cardeais ‘da Cúria’ e os pastores provenientes de áreas distantes do mundo, que se conheceram, alguns pela primeira vez, e compartilharam os resultados dos grupos de trabalho da tarde do dia anterior foi a fonte de maior “enriquecimento”. “O tom e a experiência são os de um encontro fraterno”. Reconhecem que trabalham juntos, mesmo que separados por quilómetros. A novidade é, segundo Czerny, colocar na mesa coisas que não são novas, mas que representam desafios e dificuldades, como a transparência financeira. Trata-se de desafios para todos, mesmo com ritmos e experiências diferentes.

O cardeal-arcebispo de Viena, Cristoph Schönborn, falou de “grandes passos em frente”. Boné branco na cabeça, sorriso conciliador, no intervalo dos trabalhos para o almoço, o eminente purpurado compartilhou com os media internacionais a sua satisfação pelo andamento desses dias, em que todos os purpurados se ouviram mutuamente, com muita comunhão e disponibilidade para ouvir e os recém-criados cardeais relataram as situações dos seus países. E, acima de tudo, o Santo Padre, que, apesar das dificuldades físicas de saúde, tem o coração e a alma em funcionamento pleno, encorajou os membros do Sacro Colégio a seguirem em frente.

Segundo o cardeal Fernando Filoni, Grão-Mestre da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, impõe-se uma reforma para toda a Igreja. Disse Filoni que a última coisa que Francisco disse aos cardeais é que se abriu um processo, se começou a partir de uma base, mas não se terminou ali. O Papa sentiu-se confortado com o que ouviu e feliz porque é um processo feito em conjunto, ou seja, a Cúria não pertence ao Papa, mas a toda a Igreja, a cuja comunhão o Papa preside. Toda a Cúria, todas as dioceses concorrendo e, ao mesmo tempo, dando a sua preciosa contribuição, com sacerdotes, leigos, ideias, etc., fazem com que a Praedicate Evangelium, que é uma base, não seja expressão apenas de uma pessoa, mas pertença de toda a Igreja. 

O cardeal Timothy Dolan, arcebispo de Nova Iorque, fala de uma “bela experiência” e de uma reunião “extraordinariamente edificante”. Segundo o purpurado nova-iorquino, feliz por este encontro aguardado com ansiedade, falaram “como amigos, como irmãos, com imensa caridade e profundo amor pela Igreja, sobre questões muito práticas”.

Certamente, entre cardeais de diferentes latitudes e longitudes, não faltaram as diferenças de pontos de vista, mas as discussões foram realizadas de forma serena e “pacífica”. O cardeal alemão Walter Kasper, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, usou estes termos, assegurando: “Há uma vontade de trabalhar juntos. Realmente tocou-me pelo clima que se respira. Todos agradecemos ao Papa pelas suas palavras proféticas.”

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A formação, a espiritualidade da Cúria e, sobretudo, a questão dos leigos e o seu possível papel na direção de Dicastérios foram os temas sobre os quais as reflexões e discussões dos cardeais se concentraram durante a reunião a portas fechadas com o Papa sobre a Praedicate Evangelium.

No primeiro dia, após a saudação do Papa no início dos trabalhos, seguida de breve discurso do decano do Colégio Cardinalício, o cardeal Giovanni Battista Re, os cerca de 200 cardeais, patriarcas e superiores da Secretaria de Estado, reunidos na Nova Sala do Sínodo, distribuíram-se por grupos linguísticos, durante os quais foram feitas propostas, apresentadas ideias e pedidos esclarecimentos. Em seguida, foi realizada uma sessão plenária.

O tema principal foi o dos leigos em funções de liderança. Com efeito, o ponto 10 da Praedicate Evangelium – publicada a 19 de março e em vigor desde 5 de junho – afirma que “todo o cristão, em virtude do Batismo, é um discípulo-missionário, na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus”, o que não se pode deixar de ter em conta na atualização da Cúria, pelo que “a sua reforma deve prever o envolvimento de leigas e leigos, mesmo em funções de governo e de responsabilidade”. 

Sobre o tema, foram solicitados estudos aprofundados em clima de confronto sereno.

O cardeal Paolo Lojudice, arcebispo de Siena, explicou ao Vatican News:

“Quando se trabalha em pequenos grupos, é mais fácil confrontarem-se uns com os outros e dialogarem. O tema que conhecemos é o confronto aberto e sereno sobre a nova Constituição e, em particular, sobre a sua aplicação, sobre como colocá-la em prática. Nos grupos, mais do que novos elementos, tivemos a contribuição de algumas ideias... É possível que haja passagens que ajudem a compreender alguns elementos menos claros, menos evidentes, em particular o que diz respeito à presença de leigos nas funções de governo nos Dicastérios. Esta é uma porta aberta que esperamos que possa percorrer da melhor maneira possível.”

O mesmo purpurado falou de um “excelente clima” na Sala Sinodal e descreveu a reunião como um ponto de partida: “Os tempos são necessariamente longos para fazer uma reforma. O Papa preocupa-se e tem-se preocupado com isso desde o início, pois é um dos pontos centrais do pontificado... Creio que mais cedo ou mais tarde chegaremos a uma consciência diferente, onde tudo é missão e missionariedade e poderá parecer paradoxal.”

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A encerrar o encontro dos cardeais com o Papa, a Capela Papal da Basílica de São Pedro recebeu os novos cardeais e o Colégio Cardinalício para uma celebração eucarística presidida pelo próprio Pontífice, concluindo um encontro de dois dias a portas fechadas entre Francisco e os pouco menos de 200 cardeais, que aprofundou a Praedicate Evangelium

A homilia proferida pelo Santo Padre refletiu sobre uma dupla admiração: a de Paulo ante o desígnio de salvação de Deus (cf Ef 1,3-14) e a dos discípulos, incluindo o próprio Mateus, no encontro o Ressuscitado, que os enviou em missão (cf Mt 28,16-20). Dois territórios de estar em Cristo e com Cristo, onde, segundo o Bispo de Roma, “sopra forte o vento do Espírito Santo” e de onde brota o encorajamento para os cardeais saberem “maravilhar-se com o desígnio de Deus”, amando “apaixonadamente a Igreja”, prontos para servir em missão a todos os povos, missão sempre acompanhada da grata admiração pela história da salvação, através do “louvor, bênção, adoração e gratidão que reconhece a obra de Deus”. Mas, como recordou o Papa, esta admiração também pode ser experimentada de outra forma: “Desta vez, não é o próprio plano de salvação que nos encanta, mas o facto – ainda mais surpreendente – de que Deus nos envolve no seu plano: é a realidade da missão dos apóstolos com Cristo ressuscitado”.

Os onze discípulos ouviram as palavras do Ressuscitado para evangelizarem o mundo com a promessa final de “esperança e consolação: Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim dos tempos”, palavras quem dois mil anos depois, “ainda têm força para fazer vibrar os nossos corações”. É uma admiração não diferente da vivida pelos cardeais reunidos agora com o Papa:

“Irmãos, esta admiração é um caminho de salvação! Que Deus a mantenha sempre viva em nós, porque nos liberta da tentação de nos sentirmos ‘à altura’, de nutrir a falsa segurança de que hoje é diferente, não como era no início, hoje a Igreja é grande, é sólida, e nos situamos nos graus eminentes da sua hierarquia. (…) Há verdade nisso, mas também tanto engano, com que o Mentiroso tenta mundanizar os seguidores de Cristo e torná-los inofensivos.”

O Papa, dirigindo-se especialmente aos 20 novos cardeais criados no recente Consistório, disse:

A Palavra de Deus hoje desperta em nós admiração de estar na Igreja, de ser Igreja! E é isso que torna atraente a comunidade dos crentes, primeiro para si e depois para todos: o duplo mistério de ser abençoado em Cristo e ir com Cristo ao mundo. Essa admiração não diminui em nós com o passar dos anos, nem diminui com o crescimento das nossas responsabilidades na Igreja. (…) Fortalece-se, torna-se mais profunda.”

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Deus queira que o processo reformista da Cúria Romana vá por diante e se replique nas Cúrias Diocesanas, de modo que a Igreja, onde quer que viva, sirva cabalmente o Reino de Deus!

2022.08.30 – Louro de Carvalho

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