sábado, 20 de agosto de 2022

Prevenir práticas nefastas como a do casamento precoce e forçado

  

Em fevereiro de 2021, Rosa Monteiro, Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, criou um Grupo de Trabalho, que integra especialistas e serviços relevantes nesta matéria – de que são exemplo a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), a Polícia Judiciária (PJ), o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância  (UNICEF) Portugal, bem como organizações da sociedade civil com serviços na área da violência e do tráfico de seres humanos – para se debruçar sobre o fenómeno dos casamentos infantis, precoces e forçados, fenómeno de particular complexidade e invisibilidade que encontra agora “um espaço de discussão e que deverá culminar num Livro Branco sobre práticas tradicionais nefastas, com contributos e recomendações em matéria de prevenção e combate às mesmas”. O Livro Branco deveria ser apresentado até dezembro do mesmo ano.

A governante sustentava que “as políticas públicas são sempre melhores quando assentes em conhecimento e em abordagens intersectoriais” e que, para compreender esta realidade, importava auscultar quem trabalha no terreno, bem como analisar e compreender de que forma a criminalidade conexa se interseciona com os casamentos infantis, precoces e forçados e molda a forma como os/as profissionais a interpretam e intervêm. Com efeito, é uma prática muitas vezes imiscuída em contextos criminais que envolvem tráfico de seres humanos, rapto, abusos sexuais, violência doméstica e até homicídio. 

A 11 de outubro do mesmo ano, Dia Internacional das Raparigas, a mesma governante reforçava o compromisso e empenho do Governo na prevenção e no combate às práticas tradicionais nefastas como os casamentos infantis, precoces e forçados, que constituem uma violação dos direitos humanos das mulheres e das raparigas e são obstáculo à plena realização da igualdade entre mulheres e homens. Na verdade, as raparigas são mais afetadas pelo fenómeno do que os rapazes por estarem particularmente vulneráveis e expostas à violência na intimidade, ao tráfico para exploração sexual, à gravidez indesejada, com riscos de morte materna e infantil e com maior probabilidade de abandono escolar. E a efeméride foi assinalada com uma campanha informativa produzida pelo predito Grupo de Trabalho que estudava as formas de prevenção e de combate dos casamentos infantis, sensibilizando profissionais dos serviços públicos e técnicos/as, com intervenção no terreno com vista à desconstrução de mitos associados a estas práticas, bem como alguns dos principais sinais de alerta a ter em conta.

É de referir que, em Portugal, o casamento forçado é crime público nos termos da Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, que altera o Código Penal, estabelecendo, por exemplo, a pena de prisão até 5 anos para “quem constranger outra pessoa a contrair casamento ou união equiparável à do casamento” (artigo 154.º-B) e a “pena de prisão até 1 ano” ou a “pena de multa até 120 dias” para os atos preparatórios do predito crime, “incluindo o de atrair a vítima para território diferente do da sua residência com o intuito de a constranger a contrair casamento ou união equiparável à do casamento”. No entanto, a lei não é suficiente, pelo que se exige uma política de tolerância zero e a adoção de medidas capazes de desafiar e desconstruir as assimetrias de poder que estão na base da perpetuação destes fenómenos, munindo os/as profissionais das ferramentas necessárias para identificar, sinalizar e denunciar, intervindo para capacitar as populações nos seus territórios e apoiar as vítimas. Trata-se de concretizar o desígnio coletivo pelos direitos das raparigas e das mulheres pela escolha livre e esclarecida. 

***

Entretanto, o referido Grupo de Trabalho ainda não apresentou o Livro Branco previsto para dezembro de 2021. E, face à ausência das suas reuniões, a secretaria de Estado da Igualdade e Migrações fixou um novo prazo para a conclusão do trabalho: agosto de 2023. O documento deveria ter apresentado recomendações ao nível da prevenção e combate ao flagelo.

Porém, como escreve o Público de 20 de agosto, os casos continuam a acontecer, não só na comunidade cigana, pois acontece também entre cidadãos oriundos do Bangladesh (e outros imigrantes residentes em Portugal), apesar de ter dimensões desconhecidas. Segundo as normas, só pode apresentar-se no Registo Civil para contrair matrimónio quem tiver pelo menos 16 anos, mas com a autorização dos pais ou de que os substitua legalmente. Esta possibilidade contraria as recomendações da Organização da Nações Unidas (ONU), a qual defende que a idade mínima para o casamento deve ser os 18 anos. Ora, este ponto não foi inscrito na lei, apesar de constar no leque de propostas apesentadas até agora pelo Grupo de Trabalho.

Já no respeitante ao Livro Branco, o Governo atribui a inação à pandemia. Segundo o Público, que cita esclarecimentos da secretaria de Estado, a crise sanitária impediu o lançamento dos inquéritos necessários. Todavia, o jornal contraria esta perspetiva, lembrando que, aquando da constituição do Grupo de Trabalho (fevereiro de 2021), a pandemia da covid-19 já existia, com o Governo a estabelecer o final do mesmo ano como prazo para a conclusão dos trabalhos – apesar de já então se admitir um prolongamento do prazo.

Rosa Monteiro, referida, lembra que o grupo solicitou permissão para a entrega no primeiro semestre deste ano, embora exista “já bastante trabalho feito, conceitos, inquéritos a serviços públicos sobre o tema, campanha”, tendo ficado “na pasta de transição”. E Alexandra Alves Luís, presidente da Associação Mulheres Sem Fronteiras e membro do Grupo de Trabalho, sugeriu que o facto de Ana Catarina Mendes e a secretária de Estado, Isabel Almeida Rodrigues, não terem conhecimentos especializados na área, ao invés do que sucedia com a anterior ocupante do cargo, explicará o atraso: terem de reunir conhecimentos antes de avançar. Tal explicação não colhe. Os governantes não são obrigados a conhecimento técnico. Mantêm-se os funcionários nos departamentos governamentais. E o grupo manteve-se em missão. Só a ineficácia administrativa!  

***

A UNICEF trabalha em 64 países pela erradicação do casamento infantil. Com efeito, quando uma menina é obrigada a casar, enfrenta consequências imediatas e de longo prazo; diminui a probabilidade de terminar a educação escolar, enquanto aumenta a probabilidade de sofrer violência doméstica; é mais propensa a engravidar na adolescência; e as jovens adolescentes têm maior propensão a morrer devido a complicações na gravidez e no parto do que as mulheres na faixa dos 20 anos. Por exemplo, na Etiópia, a maioria das jovens que se casaram na infância foram mães antes de completarem 20 anos e as noivas infantis foram menos propensas a receber cuidados especializados na última gravidez e parto. Além disso, as adolescentes casadas ali têm três vezes maior probabilidade de não frequentar a escola, do que os seus pares solteiros. Há também enormes consequências sociais e maior risco de perpetuar os ciclos intergeracionais da pobreza.

Enquanto a prevalência do casamento infantil está a diminuir em muitos locais, o progresso no sentido de exterminar esta prática continua muito lento. Para cumprir a meta estabelecida nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e erradicar esta prática até 2030, o processo tem de ser muito acelerado. Se tal não se verificar até 2030, teremos adicionalmente mais de 150 milhões de meninas que se casarão antes do 18.º aniversário.

“Para muitos, o Dia dos Namorados é associado a romance, flores e propostas de casamento”, afirmou Henrietta Fore, Directora Executiva da UNICEF. Contudo, para milhões de meninas, o casamento não é escolha, mas um final indesejado para a sua infância e futuro. A solução é simples: proibir o casamento infantil, investir na educação e capacitar jovens, famílias e comunidades para a promoção de mudanças positivas. Só então poderemos acabar com esta prática devastadora até 2030 e proteger os 150 milhões de meninas em risco.

Estima-se que, em todo o mundo, atualmente 650 milhões de meninas e mulheres vivas se casaram antes de completarem 18 anos. E estima-se em 12 milhões por ano o número total de meninas casadas na infância.

É no sul da Ásia que há o maior registo de noivas infantis com um peso de mais de 40% (285 milhões ou 44% do global), seguida pela África Subsariana (115 milhões ou 18% do global).

Ali, o risco de uma menina casar durante a infância diminuiu em mais de um terçode quase 50% há uma década para 30% hoje, em grande parte impulsionado por grandes avanços na redução da prevalência do casamento infantil na Índia. Assim, a incidência do casamento infantil muda cada vez mais do sul da Ásia para a África Subsariana, devido ao progresso mais lento e a uma população crescente. Das mais recentes noivas infantis, cerca de uma em cada 3 estão agora na África Subsariana, em comparação com uma em cada 7, há 25 anos.

Na América Latina e no Caribe, não há evidências de progressos, com níveis de casamento infantil tão altos como há 25 anos.

O casamento infantil (incluindo casamento formal e união informal em que a menina começou a viver com um parceiro como se fossem casados) ocorre também nos países ditos desenvolvidos. Nos Estados Unidos, a maioria dos 50 Estados tem exceção na lei a permitir o casamento às crianças antes dos 18 anos. Na União Europeia, desde 2017, só quatro países não toleram exceções à idade mínima de 18 anos para casar. Em Portugal, a idade mínima para contrair casamento é 16 anos, mas com autorização dos progenitores ou tutores, nos termos do n.º 1 do artigo 1612.º do Código Civil (o tribunal suprirá a falta de autorização, “se razões ponderosas justificarem a celebração do casamento e o menor tiver suficiente maturidade física e psíquica”, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo).

A prática do casamento infantil diminui em todo o mundo. Na última década, a proporção de mulheres que se casaram enquanto crianças baixou em 15%, de uma em 4 (25%) para uma em 5 (21%), aproximadamente, ou seja, evitaram-se cerca de 25 milhões de casamentos infantis. Entre as razões da mudança, contam-se: o aumento das taxas de educação das meninas, os investimentos pró-ativos dos governos com as meninas adolescentes, as fortes mensagens públicas sobre a ilegalidade do casamento infantil e os danos que originam.

Para eliminar o casamento infantil até 2030, como inscrito na Agenda para o Desenvolvimento Sustentável, o progresso global teria de ser 12 vezes mais rápido do que a taxa da última década. No entanto, há muito caminho por fazer: a maior parte desses atos (antes da idade legal para contrair casamento) não tem registo; é muito difícil mudar mentalidades; e é complicado travar negócios tradicionais entre famílias ou grupos estabelecidos, tal como é difícil travar o tráfico de crianças e a prostituição infantil. Mas o caminho faz-se caminhando, embora se topem, por vezes, mais pedras do que caminho.  

2022.08.20 – Louro de Carvalho


Sem comentários:

Enviar um comentário