domingo, 7 de agosto de 2022

Hierarquia católica devia saber que a cultura de delação não é ética

 

Evitei pronunciar-me sobre o fenómeno de abuso sexual de menores e de crimes congéneres por parte de sacerdotes e de outros assíduos cooperadores em atividades eclesiais ou em outras ações em que a Igreja está especialmente envolvida. Só quando vi comentadores de bancada insurgirem-se contra a hipótese de um sacerdote interpor recurso sobre decisão condenatória que o tribunal comarcão lhe aplicou é que reagi pelo direito de qualquer arguido ao acesso a todos os meios de defesa que a lei possibilita aos cidadãos a contas com a justiça. Com efeito, a lei não exceciona este ou aquele crime, este ou aquele arguido.

Passaram-se anos e a procissão das denúncias de crimes e de encobrimentos passa sem olhar a limites éticos, confundindo responsabilidades, crimes, penas, vítimas e supostos agentes de crime.

Ora, tal como a boa lei, também a boa prática se escuda na ética. E a ética implica distinção de agentes, de objetos, de circunstâncias, de penas; postula a justa medida e a proporcionalidade; abomina os chavões; e leva a julgar os prevaricadores segundo as normas vigentes ao tempo da prática dos crimes, não segundo normas posteriores. 

A hierarquia católica, atónita com a abundância de casos de abuso sexual de crianças e de jovens por parte do clero, no que terão incorrido entidades, até há pouco, acima de qualquer suspeita, perdeu o norte. Por conseguinte, disparou contra delinquentes e contra encobridores metendo-os no mesmo saco de responsabilidades, sem ter em conta que, na sociedade civil, pululam os abutres que se alimentam do escândalo e não têm pejo em apontar os erros dos outros e esconder os seus e os dos seus parentes e amigos. Acredita-se em mentiras de crianças que atestem crimes.  

Ao impor que o bispo denuncie, sem mais, às autoridades civis o clérigo abusador, desvaloriza a relação de saudável confiança que deve existir entre o bispo e o clérigo. É verdade que muito do conhecimento é obtido fora de confissão, caso contrário a denúncia esbarraria contra o sigilo sacramental inatacável. Porém, os hierarcas sabem que, além do foro interno sacramental sigiloso, há o foro interno sacramental igualmente sigiloso, cujos casos são tratados pela Penitenciaria Apostólica. Por isso, se uma denúncia foi apresentada ao bispo pela suposta vítima ou por seu familiar ou conhecido, a atitude prudente teria sido recomendar que o denunciante a fizesse às autoridades civis. Ao bispo incumbiria o acompanhamento vigilante do sacerdote e uma ação investigatória interna com eventual suspensão preventiva. Só em último caso, quer houvesse condenação judicial, quer não a houvesse, verificada a gravidade dos atos praticados e a atitude contumaz do sacerdote é que deveria ser organizado processo com vista à expulsão da clerezia.

Dizer que o abusador sexual não é recuperável não assenta em ciência consistente, tal como dizer que todo o delinquente é facilmente recuperável. Cada pessoa deve ser avaliada segundo as suas circunstâncias, disposições e esforços. Aliás, a hierarquia sabe, mas os detratores não o sabem, que é preciso castigar os erros, mas recuperar os que erram; e que, por vezes, é preciso deixar crescer o trigo e o joio em simultâneo, para que, ao arrancar joio, não se arraste parte do trigo.

Todos sabemos – os detratores da Igreja e da sua hierarquia fingem não o saber – os códigos modernos não contemplam pena de morte, prisão perpétua, prisão por tempo indeterminado ou por tempo excessivamente longo, como não admitem medidas de irreversíveis consequências, como a castração ou a esterilização. Não obstante, para clérigos abusadores, vulgo pedófilos (independentemente da idade das vítimas e da classificação dos atos em causa), a pena apontada comummente é deixarem de ser padres, porque não o merecem. Toda a gente devia saber que não se merece ser padre: é-se padre por dom.    

Outra confusão que se faz é em torno do conceito de clérigo. Freiras e frades (sem ordenação diaconal) não integram o clero. A distinção entre clero regular e clero secular é medieval. Integram o clero os bispos (o papa é bispo, bispo de Roma), os padres (presbíteros) e os diáconos. É certo que freiras e irmãos leigos trabalham de perto com sacerdotes e a Cúria Romana tem um dicastério que os junta aos religiosos que têm a ordenação sacerdotal. No entanto, não podem confundir-se alhos e bugalhos. Os bispos sobre essas pessoas não têm jurisdição funcional.

Passando aos pecados e crimes dos clérigos na matéria em apreço, importa fazer distinções. Fica, no entanto, expressamente dito e redito que a hediondez destes pecados é mais que suficiente para os repudiarmos e condenarmos em qualquer pessoa, maxime em clérigos e em outras pessoas especialmente consagradas a Cristo e à Igreja.

Porém, o Código Penal dá uma ajuda na tipificação dos crimes e na graduação das penas.

Assim, nos termos do art.º 171.º, “quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”; se esse ato “consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a 10 anos”; quem importunar menor de 14 anos, praticando perante ele atos de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual ou atuar sobre ele, por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto pornográficos ou o aliciar a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais, é punido com pena de prisão até três anos. E quem praticar os atos puníveis com esta moldura penal com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. Só estes crimes é que configuram a pedofilia, termo que o código não usa. Por seu turno, o art.º 173.º tipifica os crimes sexuais com adolescentes nos seguintes termos: “Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja praticado por este com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até dois anos. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos.”

E o art.º 172.º, no âmbito do abuso de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, estabelece a moldura penal de um a oito anos para quem praticar os atos referidos nos números 1 e 2 do art.º 171.º relativamente a menor entre 14 e 18 anos em relação ao qual exerça responsabilidades parentais ou que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, ou abusando de uma posição de manifesta confiança, de autoridade ou de influência sobre o menor, ou abusando de situação de particular vulnerabilidade do menor, como saúde ou deficiência. Para esses, a moldura penal “até três anos estabelecida no art.º 171.º para “pena de prisão até um ano”, mas quem os praticar intenção lucrativa é punido com pena de prisão até 5 anos.

 

Em qualquer caso, é também punível a simples tentativa.

São, pois, muitas cambiantes que não cabem num veredicto-chapa, pelo que se deve ter, em cada caso, a paciência de esperar pela justiça e não produzir dogmas sobre a matéria..

Também devemos considerar a tipificação das vítimas, pois nem todos os que se dizem vítimas de abusos são os coitadinhos que a opinião pública adora. Há os traumatizados, os débeis, os assustadiços, os colaborantes, os oportunistas e os candidatos à indemnização, como há os tímidos e inibidos que, subitamente, ganham coragem. Talvez haja também que reorientar as pessoas.

Posto isto, lamento que tantas comunidades tenham sido palco de tantos crimes sexuais com crianças (como prostituição, lenocínio e pornografia infantis) e que, tarde e a más horas, a justiça formal se tenha abeirado destes casos. Repudio que se faça dos lamentáveis casos ocorridos nas comunidades eclesiais hipócrita bode expiatório das insuficiências da justiça humana. Considero abstruso que se penalizem com perda de cargos e até do caráter clerical ditos encobridores (que a crítica preferia que fossem bufos), os quais terão sido confidentes de vítimas ou de afins que só pediam que outros não viessem a sofrer dos mesmos males ou que que foram destinatários de denúncias que visavam o castigo do delinquente e o anonimato da vítima – o que é injusto.

Condeno que se queiram julgar os delinquentes por normas estranhas ao tempo em que praticaram os crimes, como condeno que todos sejam julgados por crimes sexuais da mesma relevância quando alguns se terão limitado a piropos excessivos, beijos, toques demasiado ousados ou convites dúbios. E julgo que é ilegal a determinação de pena igual para atos diferentes.

A hierarquia, ao arredar, pura e simplesmente, os padres acusados de crimes sexuais com crianças e adolescentes, nega a fé na recuperabilidade das pessoas e quer pôr limites à misericórdia divina.

É pertinente o apoio às verdadeiras vítimas, a oração por elas, a sua proteção e a indemnização a que eventualmente tenham direito, mas desconfiar se esta for o único fim em vista. Contudo, é dever da Igreja garantir aos seus colaboradores a contas com a justiça os meios legais de defesa e de recurso. Depois, não se pode fazer participação às autoridades de um facto que não resulte de flagrante delito ou de denúncia com o mínimo de consistência e de transparência.

É de anotar que os bispos não integram nenhuma das situações de funcionário (com especial dever de participação de crimes às autoridades judiciais) constantes do art.º 386.º do Código Penal.

Por fim, sem me pronunciar sobre o que se passou na Alemanha, no Chile ou na Irlanda, apesar de achar bem que as dioceses tenham as suas comissões de proteção de menores, para contactos, investigação e julgamento, se necessário e ainda oportuno, não percebo a existência da comissão independente, criada pela Conferência Episcopal para investigar os casos ocorridos a partir de 1950. Se é para um inquérito de vita et moribus, o quadro temporal deveria ser mais alargado; se é para se fazer justiça, o horizonte temporal é muito longo, pois os crimes prescrevem se não forem julgados em determinado tempo, tal como as penas se não forem aplicadas em tempo útil e as dívidas se não forem cobradas a tempo. Ademais, comissão independente não reuniria com magistrados do Ministério Público (MP), nem com os bispos, nem com o Presidente da República, como só havia de pronunciar-se no termo do cumprimento da sua missão. É independente, mas tem magistrados do MP em ligação com ela, quando tem na sua composição, médicos, advogados, psicólogos, procuradores e juízes e assistentes sociais. Quer enganar quem?

Fala-se do Papa Francisco? Entrou no jogo sem que o tivessem alertado para as consequências. E chegaram a apontá-lo como encobridor. Foi altamente criticado por ter questionado, no Chile, as provas das denúncias, pois elas têm de assentar em provas. Produziu legislação adequada para o tratamento dos crimes perpetrados na Estado Cidade do Vaticano, mas o Motu Proprio “Vos estis luz mundi”, para toda a Igreja, recolhe sugestões das Conferências Episcopais ou organizações equivalentes. Não se justifiquem com o Papa, pois a hierarquia (gente nova e gente idosa) está lá metida! Bebem do veneno que ajudaram a produzir para se defenderem!

Todavia, tais crimes merecem total repúdio. Quanto ao mais, tenho direito à opinião informada.

2022.08.07 – Louro de Carvalho

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