segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Consultor ganha mais do que o ministro, quiçá por trabalhar mais…

 

O novo consultor do Ministério das Finanças terá um salário de 5832 euros brutos por mês, superior ao vencimento base do próprio ministro (ainda que Medina tenha o salário anual distribuído por 14 parcelas mensais – de 4767 euros – e o consultor apenas por 12), acima do valor inicialmente revelado, e não fica obrigado ao regime de exclusividade.

Sérgio Figueiredo já assumiu funções no final de julho e o contrato terá a duração de dois anos.

Segundo as primeiras notícias desta contratação, o Ministério das Finanças garantia que o consultor receberia uma “remuneração equiparada e limitada ao vencimento base do ministro”. Contudo, Figueiredo receberá acima de mil euros a mais do que o ministro das Finanças.

De acordo com as explicações do Ministério das Finanças, a diferença entre o valor inicialmente avançado e o constante do contrato prende-se com o facto de Figueiredo, enquanto prestador de serviços, só auferir 12 meses por ano e não os 14 a que os ministros têm direito, além de que o salário terá em conta o valor equivalente da remuneração de representação que recebem os subsecretários de Estado (25% do vencimento).

Aos 139 990 euros repartidos por 24 meses que o antigo director de informação da TVI e ex-administrador da Fundação EDP receberá como consultor acresce o “IVA à taxa legal em vigor”, que é, no caso, de 23% (o que representa 32.798 euros, segundo as contas de alguém).

A minuta do contrato contém uma cláusula que estipula o “dever de sigilo” por parte de Sérgio Paulo Jacob Figueiredo durante a vigência do mesmo, mas, porque o contrato não obriga à exclusividade no exercício de funções, o consultor poderá acumular este cargo com outras funções desde que não “configurem uma situação de conflito de interesses”.

O objetivo da contratação é “ajudar a conceber e desenhar as políticas públicas do ministério de Fernando Medina, bem como monitorizar a sua execução e a perceção, em tempo real, que têm delas as partes interessadas”. Assim, o ministério das Finanças confirmou a contratação de Sérgio Figueiredo, afirmando que o antigo jornalista irá “prestar serviços de consultoria no desenho, implementação e acompanhamento de políticas públicas, incluindo a auscultação de partes interessadas na economia portuguesa e a avaliação e monitorização dessas mesmas políticas”.

É de recordar que Medina já tinha contratado Figueiredo para um trabalho de teor similar, embora de menor duração, na Câmara Municipal de Lisboa (CML) e que Medina foi contratado pela TVI no tempo em que Figueiredo era diretor da estação, mantendo um espaço de comentário semanal no canal até sair da CML para o governo.

No final do Conselho de Ministros do dia 11 de agosto, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, foi questionado se era necessário o Ministério das Finanças contratar o ex-administrador da Fundação EDP como consultor estratégico, tendo em conta que o Centro de Competências de Planeamento, Políticas e Prospetiva da Administração Pública (PlanAPP), criado em 2021, desempenha as mesmas funções. Na resposta, André Moz Caldas sublinhou que o PlanAPP “foi implementado, está a funcionar, ocupa-se das matérias de planeamento estratégico, prospetiva e avaliação de políticas públicas em geral, no contexto da administração, muito particularmente no que diz respeito à elaboração de grandes documentos de estratégia, como são as grandes opções ou como é o programa nacional de reformas no âmbito do Semestre Europeu”. Porém, sustentou que não há necessariamente sobreposição” entre as funções de Figueiredo no Ministério das Finanças e outros serviços do Estado, acrescentando que as competências do Tribunal de Contas (TdC) estão “inteiramente preservadas” para fiscalizar o contrato. Com efeito, o TdC, no domínio da fiscalização concomitante e sucessiva, que podem ser em permanência exercida sobre este e sobre qualquer contrato que seja celebrado por gabinetes ministeriais, ou gabinetes da administração pública, pode vir a tomar posição sobre este contrato.

O secretário de Estado esclareceu que o PlanAPP “coordena uma rede de planeamento, a chamada REPLAN, que reúne o conjunto das entidades, organismos ou representantes setoriais em matéria de planeamento, prospetiva e avaliação de políticas públicas que existam nas demais áreas governativas”. Todavia, segundo o governante, a criação do PlanAPP não esgota a possibilidade de haver atividade nestes domínios, a nível setorial, em cada uma das áreas governativas, pelo que não há necessariamente “sobreposição nas atividades desse serviço e de quaisquer representantes setoriais nesta matéria, ou colaboradores das diversas áreas governativas nas mesmas áreas”.

Interrogado se o Governo tomará a iniciativa para pedir a dita fiscalização, Moz Caldas respondeu:

“É uma questão que não está suficientemente ponderada ainda e que não cabe à dimensão colegial da ação colegial do Governo e, portanto, não me compete a mim responder-lhe”.

Questionado se, visto que essa fiscalização não depende da ação colegial do Governo, deveria ser o Ministério das Finanças a pedi-la, Moz Caldas respondeu que “a ação do Tribunal de Contas não é feita a pedido” e que o Tribunal “terá a ação que entender e deve fazê-lo livre de quaisquer interferências de quem quer que seja”.

O novo consultor estratégico, não sendo formalmente membro do gabinete de Medina nem titular de alto cargo público (nem equiparado), não fica abrangido por qualquer obrigação declarativa (de registo de interesses ou declarações patrimoniais), invia­bilizando o escrutínio público, ficando sujeito à obrigação contratual de não incorrer em conflitos de interesses.

Por isso, Susana Coroado, presidente da ONG anticorrupção Transparência Internacional e autora do livro “O Grande Lóbi: Como se Influenciam as Decisões em Portugal”, diz que é impossível escrutinar o desempenho de Figueiredo, porque, apesar de ter contrato de dois anos para trabalhar junto do gabinete de Fernando Medina na “auscultação dos stakeholders relevantes na economia portuguesa” (que inclui empresas dos vários setores, parceiros so­ciais, sindicatos e Administração Pública), não está sujeito a nenhuma obrigação declarativa.

Na última alteração ao Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, feita em 2019, foi adicionado ao leque de titulares de cargos políticos, sujeitos a obrigação declarativa, os que assumem funções de “consultores mandatados pelos Governos da República e Regionais em processos de concessão ou alienação de ativos públicos” (casos de Diogo Lacerda Machado ou de António Borges). Porém, Figueiredo não se encaixa em nada disto.

As únicas obrigações do consultor cingem-se ao dever de sigilo e ao respeito pelo regime de incompatibilidades, previstos contratualmente. De facto, o contrato prevê que o ex-jornalista se “abstém de exercer outras atividades ou funções de natureza profissional, públicas ou privadas, com caráter regular ou esporádico, independentemente de serem ou não remuneradas, que configurem uma situação de conflito de interesses”. Além disso, obriga-o ao “dever de notificar” o Estado “de qualquer conflito emergente” durante os dois anos em que desempenhar funções.

Alguns apoiantes do Governo defendem que parte da dúvida sobre os eventuais conflitos de interesses poderia ser dissipada se o contrato impusesse um regime de exclusividade, mas Figueiredo defendeu a não-existência de exclusividade, pelo facto de ser prestador de serviços.

Apesar de a situação de contratação de um consultor político de forma externa não ser habitual e gerar polémica, a prática de contratação de consultoras para esporadicamente a avaliação de políticas públicas sem ser em regime de exclusividade não o é.

O problema do contrato é a vastidão do objeto: desde a preparação de estudos e de propostas, com auscultação dos stakeholders relevantes na nossa economia, a “definição, implementação e acompanhamento de políticas públicas e medidas a executar” até à “monitorização” dessa implementação. Além disso, os serviços do consultor externo passam pelo “aconselhamento nos processos internos de tomada de decisão”. Tudo isto levanta a questão sobre quem fiscaliza o cumprimento de objeto tão vasto. No próprio PS, a contratação foi comentada como sendo mais uma contratação política, para fazer “gestão política e comunicacional”, do que uma contratação técnica. Ora, sendo uma contratação política, devia ter sido para um cargo interno, sujeita às regras (e ao salário) dos nomeados para cargos públicos.

Se o ministério das Finanças tentou conter os danos da polémica, o Governo garan­tiu que não há problemas com o escrutínio ao caso, como se viu nas declarações do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, que, apesar de o assunto não ter sido abordado no órgão colegial, afastou a ideia da duplicação de tarefas e admitiu que o TdC, caso entenda, pode fiscalizar esta prestação de serviços.

As oposições não perderam a oportunidade de denunciar as ambiguidades do contrato e de lhe apor o ónus da amizade Medina-Figueiredo e verberar o despautério das contratações políticas. Por isso, querem explicações. Ora, do meu ponto de vista, as explicações estão dadas, mas as irregularidades na gestão da coisa pública raramente se resolvem com explicações. E a subtileza da argumentação de alguns socialistas a querer que o contrato implicasse um lugar interno num gabinete ministerial com sujeição às regras dos nomeados para cargos públicos só lança mais confusão ou pretende justificar o que se passa – e comummente aceite – nos gabinetes ministeriais e nos das autarquias, onde pululam chefes de gabinete, adjuntos, secretários e assessores, nomeados e exonerados conforme a confiança do respetivo titular, que ultrapassam as competências funcionais dos trabalhadores da administração pública e que, por vezes, tentam condicionar o trabalho desses trabalhadores. Aliás, foi notícia que o gabinete duma novel vereadora da CML contratou um assessor em condições similares às de Figueiredo. E quem se lembra da contração de António Borges para monitorizar as privatizações o governo de Passos?               

As oposições dizem que a administração pública tem trabalhadores competentes e mal pagos; e, agora, abjuram das contratações para sugestão e avaliação externas. Porém, mal chegam ao poder (central ou local), fazem na mesma: contratações de prestação de serviços a peso de ouro; empreitadas quase combinadas; concursos de admissão de funcionários à medida; nomeação, por confiança política ou de negócios, de membros de gabinetes com vencimento superior ao dos funcionários; e utilização de bens públicos para propaganda e para serviço particular.

Corte-se o mal pela raiz: acabem-se com as mordomias que ultrapassam o quadro e os supranumerários dos trabalhadores na administração pública; e confiem-se tarefas relevantes aos funcionários e pague-se-lhes melhor. Deixemo-nos de críticas de ocasião.

Figueiredo, se ganha mais do que Medina, provavelmente trabalhará mais e melhor…

2022.08.14 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário