sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Henri Grégoire, abolicionista e sufragista nos alvores do século XIX

Sob o título “Raça dura em pele mole e escura”, Luísa Semedo, colunista do Público, publicou, a 11 de agosto, um texto que fustiga, no pelourinho, o diplomata português, Manuel Gomes Samuel, chefe da missão da embaixada portuguesa em Doha, no Qatar, que recorre à cor da pele, à biologia, para justificar formas de moderna escravatura naquele país. Assim, quanto menos clara for a pele, mais “eles” aguentam, pelo que trabalham mais horas e são menos bem pagos. São ideias esclavagisto-racistas, ciclicamente repescadas da fossa ideológica de que nunca deviam ter saído e que influenciam o tipo e as condições de trabalho, bem como o acesso a cuidados saúde.
Ironicamente, Semedo não espera do diplomata um livro, mas tempo para ler os comunicados e relatórios internacionais sobre direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Amnistia Internacional (AI) e das associações feministas, antirracistas, LGBT+ e ecologistas sobre a vergonha do Mundial de futebol no Qatar, pois, como dizia Hervé Bazin não se constrói felicidade por cima das ruínas de longa miséria.
Uma meta-análise de 2019 sobre “Disparidades raciais e étnicas na gestão da dor aguda em serviços de emergência nos EUA”, publicada no American Journal of Emergency Medecine, feita a partir de 14 estudos, mostra que os pacientes negros recebem menos 40% de medicação para a dor do que os pacientes E os estudos mostram a maior taxa de mortalidade pós-parto das mulheres negras e a menor prescrição de analgésicos, passados 150 anos sobre as experiências de James Marion Sims, o “pai da ginecologia americana”, com mulheres negras em situação de escravatura, sem consentimento, nem anestesia. A convicção de que estas são mais resistentes é acompanhada da ideia de que, ao queixarem-se, estão a “exagerar”. Em 2017, Naomi Musenga, jovem negra de 22 anos morreu, porque as operadoras do número de emergência em França não lhe levaram a sério as queixas. Naomi dizia que estava a morrer e respondiam-lhe que “um dia vamos todos morrer”. Houve, então, um debate público sobre a síndrome mediterrânica, estereótipo, que resulta na falha nos cuidados de saúde de pessoas negras ou árabes, porque o pessoal médico considerava que estas pessoas exageravam os seus sintomas e as suas dores.
O diplomata português no Qatar não se fica por considerações biológicas; partilha o conhecimento cultural que diz ter sobre pessoas que “possam ser homossexuais ou gostar muito de álcool”, apelando ao bom senso destas para não propagarem o seu modo de vida ou lifestyle pela rua. Não está nada entediado, antes se mostra entusiasmado, em declarações ao InsideQatar, com a qualidade das infraestruturas e os compromissos a diferentes níveis da sociedade, para fazer desta “uma grande festa, que prepara o palco de um torneio que pode ser uma referência para o futuro”.
A colunista do Público contrapõe a Gomes Samuel, do século XXI, o abolicionista e sufragista Henri Grégoire, antigo bispo de Blois, que publicou, em 1808, De la littérature des nègres ou Recherches sur leurs facultés intellectuelles leurs qualités morales et leur littérature suivies de Notices sur la vie et les ouvrages des Nègres qui se sont distingués dans les Sciences, les Lettres et les Arts” – com o objetivo de fazer a demonstração das faculdades intelectuais e das qualidades morais e literárias das pessoas negras.
Ao tempo, vivia-se do que escrevia o filósofo David Hume, em nota de rodapé da versão revista de Of National Caracthers (1753): “nunca tinha havido nação civilizada de uma outra cor de pele que não a branca”. Aliás, também Emmanuel Kant, em Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (1764), dizia que, apesar de as suas considerações sobre a questão racial se terem modificado com o tempo, o facto de alguém “ser negro da cabeça aos pés” era a prova manifesta de que “os seus dizeres eram estúpidos”. Assim, no tempo de Grégoire, muitos ainda defendiam a existência de uma raça negra genética e culturalmente inferior.
Henri Grégoire, sustentando que a poalha racista não era meramente descritiva, mas alimentava consciências vazias ou pesadas, escreveu: “Caluniámos os negros, primeiro, para termos o direito de os escravizar; depois, para justificar tê-los escravizado”. Por isso, dedica o livro a “todos os homens corajosos” que defenderam a causa dos negros e dos mestiços, citando uma extensa lista de franceses, ingleses, americanos, alemães, dinamarqueses, suecos, holandeses, italianos, bem como de negros e mestiços e ainda de um espanhol. E adverte que o leitor não ficará surpreendido com o facto de não haver nomes de portugueses, pois, na sua ótica, nenhum tentou provar que os negros fizessem parte da grande família do género humano.
De Portugal Grégoire não conhece o diploma governativo de 20 de março de 1570, condenando “terminantemente em nome do direito natural, e sob fortes penalidades, a escravidão e o tráfico dos indígenas do Brasil, proclamando-os livres e iguais aos outros homens”, bem como um alvará de 7 de setembro de 1761, que proibia a importação de escravos para o território metropolitano e um alvará de 1773, que extinguiu gradualmente o estado de escravidão em Portugal Continental, declarando livre o ventre da mãe, e acabando com a perpetuação do cativeiro”.
Grégoire demonstra que os “homens corajosos” também eram homens do seu tempo e que era já possível então ser abolicionista e pela igualdade. Oito anos após a publicação de De la littérature des nègres, nasce Arthur de Gobineau e, pouco antes dos 40 anos, escreve o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853-1855). Na altura, diplomata na Suíça e, depois, na Alemanha, andava entediado e deu à estampa um dos clássicos do racismo científico ou biológico que defende a supremacia branca e que serviu de inspiração ao nazismo. Infeliz recuo no tempo!
No tempo de Grégoire e de Gobineau, o racismo biológico não servia só para demonstrar que os negros eram menos inteligentes, servia também para demonstrar que eram mais resistentes, e que, por isso, suportavam melhor os trabalhos pesados e os castigos corporais. São ideias que persistem no subconsciente de muitos ou que dão jeito no consciente para legitimar atitudes desumanas.
Um estudo de 2016 “Viés racial na avaliação da dor e recomendações de tratamento e falsas crenças sobre diferenças biológicas entre negros e brancos”, publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, revela que cerca de metade dos estudantes no primeiro e segundo ano de medicina acredita que as pessoas negras têm uma pele mais grossa do que as pessoas brancas e que sentem menos dor.
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Henri Grégoire, conhecido como Abade Grégoire, nasceu em Vého, a 4 de dezembro de 1750 e faleceu a 20 de maio de 1831, em Paris. Foi um prelado católico francês e líder revolucionário. Abolicionista convicto e militante, bem como defensor do sufrágio universal (masculino), chegou a ser bispo de Blois e foi membro fundador do Bureau des longitudes, do Institut de France e do Conservatoire national des arts e métiers e da Societé royal des Sciences de Gottingue.
Foi excluído do Institut de France durante a Restauração Monárquica, devido às suas ideias.
Foi um dos primeiros a exigir à Assembleia Nacional (onde se aliou ao Terceiro Estado) a abolição da escravatura, no atinente aos direitos dos negros, bem como de judeus, de mulatos e dos habitantes das colónias. Nesse sentido, é importante o teor das suas obras, de que se destaca De la littérature des nègres, referida, em que sustenta que a propalada incapacidade dos negros se dá pelas condições que lhes são impostas, e não por “ativismo racial” – obra que, na maré alta da ebulição das revoluções iluministas, discute sobre condições externas que afetam o indivíduo.
Todavia, as atividades intelectuais de Grégoire não param aqui. Também participou no debate do projeto do plano nacional de educação de Le Peletier (presidente do Parlamento), em julho de 1794, tendo posição contrária ao projeto de educação, aduzindo que o sistema educacional não deve visar a reprodução do passado, sem considerar o presente e as suas diferenças particulares.
Na obra De la littérature des nègres, referida, o prelado divisa o modelo haitiano – a partir da Revolução – como exemplo para a libertação de escravos no resto das Américas, nomeadamente o Brasil. E a libertação dos escravos, tanto haitianos como os que estavam em solos americanos, na perspetiva do pensador, abria espaço para o fator que parecia irreversível para o caminho do progresso da humanidade em geral e do continente americano em particular, apontando o fim da dominação colonial e da escravidão. À vista disso, quando Toussaint Louverture (o maior líder da Revolução Haitiana) chefiava São Domingos, o prelado manteve contacto com ele, a colaborar com algumas demandas da ilha caribenha, desde a ajuda à reorganização da Igreja – dizimada no processo de insurreição escrava – até ao envio de livros e de escritos de Grégoire aos ex-escravizados. Assim, o prelado não se mostrava só com intelectual apoio da Revolução Haitiana, como participou no início da República de negros. E essa atuação apoiante não era uma via de mão única: além da relação com Toussaint Louverture, outros dirigentes haitianos reconheceram a atuação de Grégoire, como Henri Cristophe, que distribuiu pelo país mais de 200 exemplares do De Littérature Des Nègres e divulgou trechos impressos dessa obra pelos quatro cantos da Ilha, e Jean-Pierre Boyer, que o convidou para ser bispo e veio a ter um quadro do mesmo na sua sala, comparando-o a Frei Bartolomeu de Las Casas.
No sermão de Frei Francisco do Monte Alverne à irmandade de Santo Elesbão e Santa Ifigénia vislumbram-se ideias próximas das de Grégoire. O franciscano estimula os cativos a quebrar as algemas e defender a sua causa, embora no campo da justiça divina. Alinhando o discurso com o Iluminismo, valoriza o progresso e a civilização, contrapondo-os à barbárie e à escravidão (alusão a uma corrente inovadora da Igreja, especialmente do ponto de vista social e político). Por causa do enraizamento cultural da escravidão e do ambiente político do Rio de Janeiro, eram suprimidas as referências diretas a autores e a posições republicanas ou abolicionistas. Não obstante, tal relação foi estabelecida por meio de críticas. Na obra Analyse sur la justice du commerce du rachat des esclave de la côte d’Afrique, publicada em Londres em 1798, o bispo José Joaquim da Cunha Azevedo Coutinho é objeto de críticas pela defesa do tráfico e da escravidão. 
Grégoire também estabeleceu amizade, em especial com Pedro Machado Miranda, do clero luso-brasileiro. Trocaram cartas durante duas décadas. E, embora com diferenças políticas, deixavam-nas de lado por conta da defesa do progresso e da civilização cristã, associada à fé cristã.
Por fim, é de enfatizar a proteção dos bens culturais pelo Estado, que surgiu graças às convicções de Grégoire, que se posicionou contra o Decreto de 12 de maio de 1792, exarado durante o “Período do Terror”, que impunha a eliminação de todas as marcas do feudalismo e do despotismo. Posteriormente, a 14 de agosto, foi promulgada uma lei segundo a qual os princípios da liberdade e da igualdade não toleravam a existência de monumentos erguidos para a ostentação e tirania, pois isso ofendia os olhos do povo. Ao invés, o prelado, na Assembleia Nacional francesa, proferiu inúmeros discursos contra a destruição do passado, utilizando os ideais de liberdade da Revolução Francesa. Além disso, foi o primeiro a usar o termo “vandalismo” para denominar o ato de destruição dos bens culturais. Além disso, em 1794, para reforçar a sua preocupação com o património histórico, fez uma declaração que nos permite observar a sua intenção quanto a quem serve a preservação das lembranças: “Inscrevamos – diz ele – em todos os monumentos e gravemos nos corações esta sentença: os bárbaros e os escravos detestam as ciências e destroem os monumentos de artes; os homens livres amam-nos e conservam-nos”.
Enfim, livres, iguais e irmãos!

2022.08.12 – Louro de Carvalho


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