sexta-feira, 6 de março de 2015

Não sabia dessa obrigação

O título é uma redução discursiva de um enunciado um pouco mais extenso inserido na revista Sábado, de 5 a 11 de março, que se transcreve: Disse que “não sabia que devia ter pago contribuições à Segurança Social porque não tinha consciência de que essa obrigação era devida”. O sujeito gramatical das formas verbais “disse”, “sabia” (na forma negativa), “devia ter pago” e “tinha” (na forma negativa), bem como de um suposto e subentendido complemento agente da passiva do verbo “dever” (na forma passiva, “era devida”) é o Primeiro-Ministro Passos Coelho. Ao segmento discursivo transcrito o colunista da Sábado, acrescenta: Mas Tinha votado como deputado a Lei de Bases [da Segurança Social].
Passos Coelho aos portugueses, no Parlamento, em televisão e no seu partido, tem uma postura, a um tempo parecida com a de Zeinal Bava à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o caso BES/GES, que não sabia, que não se lembrava, que não tinha memória… Porém, ao contrário do ajuramentado perante os deputados, confessa que não é um cidadão perfeito, que teve falhas de atraso no cumprimento das suas obrigações fiscais (por distração e falta de dinheiro), que se enganou, que pagou multas, mas que não deve nada à Administração Fiscal nem à Segurança Social. A distração mão desculpa e a falta de dinheiro não impede as declarações! Cada cavadela, mais minhocas…
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Sobre o Primeiro-Ministro e as suas declarações já muitos se pronunciaram, inclusive o seu antecessor imediato, que afirmou, em carta enviada ao Diário de Notícias (vd DN, de 5 de março), que “o primeiro-ministro está próximo da miséria moral”. Esta e outras afirmações de Sócrates constituem o seu remoque sentido ao teor das considerações de Passos Coelho: “Não enriqueci nem beneficiei ninguém enquanto exerci o cargo de primeiro-ministro”. A Passos fica mal o discurso com sabor retroativo, sobretudo em circunstância de prisão do antecessor, não?
Santa Lopes e António Vitorino, na sua semanal charla dialogal em TV falam de confusão legislativa ao tempo sobre o regime contributivo da Segurança Social, sobretudo ao nível dos trabalhadores independentes. Mais: Santana até quis insinuar que os deputados como ele próprio e Vitorino também seriam responsáveis por isso como deputados que eram ao tempo.
Na verdade, esta dupla de políticos tinha efetivamente cargo de deputado na Assembleia da República (Santana, do lado do PSD, e Vitorino do lado do PS) quando da discussão, aprovação e publicação da Lei de Bases da Segurança Social – Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, que revoga a Lei n.º 32/2002, de 20 de dezembro, que, por seu turno, revoga a Lei n.º 17/2000, de 8 de agosto, a qual também revoga a Lei n.º 28/84, de 14 de agosto.
E é à luz do estabelecido nas leis e regulamentos vigentes ao tempo que devem ser apreciados os atos e as omissões de Passos.
Porém, o cidadão e político Pedro Passos Coelho não foi deputado ao tempo da discussão, aprovação e publicação destas leis. Por isso, a Sábado não deveria ter ido por essa via até por que há outros argumentos mais pertinentes e a responsabilidade legislativa das quase duas centena e meia dos deputados fica diluída no considerável coletivo. Por outro lado, Pedro Santana Lopes e António Vitorino, falando em matéria de segurança social, eram deputados somente aquando da discussão, aprovação e publicação da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, mas não no tempo das outras leis referidas. Por isso, a insinuação de responsabilidade de Santa a si próprio e a Vitorino é excessivamente generosa e meio mentirosa. Bem sei que o conhecimento de causa da maior parte dos deputados na aprovação das leis é bastante periclitante, embora esteja assegurado constitucionalmente que “cada grupo parlamentar tem direito a dispor de locais de trabalho na sede da Assembleia, bem como de pessoal técnico e administrativo da sua confiança, nos termos que a lei determinar” (vd art.º 180.º/3.). Mas a prática é o que é.
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Entretanto, o Primeiro-Ministro não tem razão ao dizer que, ao tempo, não sabia da obrigação de contribuir para a segurança social, porquanto Lei n.º 17/2000, de 8 de agosto, no n.º 1 do seu art.º 48.º, retomando o conteúdo do art.º 18.º da Lei n.º 28/84, de 14 de agosto, estabelece que “são abrangidos obrigatoriamente no âmbito do subsistema previdencial, na qualidade de beneficiários, os trabalhadores por conta de outrem e os independentes (sublinhei). E o n.º 1 do seu art.º 60.º dispõe que “os beneficiários (sublinhei) e, no caso de exercício de atividade profissional subordinada, as respetivas entidades empregadoras são obrigados a contribuir para os regimes de segurança social”.
Por seu turno, o n.º 1 do art.º 45.º da Lei n.º 32/2002, de 20 de dezembro, e o n.º 1 do art.º 51.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, dispondo no âmbito pessoal, referem que “são abrangidos obrigatoriamente pelo sistema previdencial, na qualidade de beneficiários, os trabalhadores por conta de outrem ou legalmente equiparados e os trabalhadores independentes (sublinhei).
Quanto ao regime coercivo da restituição e cobrança das contribuições e prestações, bem como das prescrições os artigo 49.º e 50.º da primeira das leis mencionadas no parágrafo anterior e o artigo 60.º da segunda, que recupera os dois, estabelecem:
1 – As quotizações e as contribuições não pagas, bem como outros montantes devidos, são objeto de cobrança coerciva nos termos legais.
2 – As prestações pagas aos beneficiários que a elas não tinham direito devem ser restituídas nos termos previstos na lei.
3 – A obrigação do pagamento das quotizações e das contribuições prescreve no prazo de cinco anos a contar da data em que aquela obrigação deveria ter sido cumprida.
4 – A prescrição interrompe-se por qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou à cobrança da dívida.

Em face destas disposições, é de perguntar como é que Marcelo Rebelo de Sousa não vê como é que a dívida prescrita não pode ser paga. Ora, se a prescrição se interrompe “por qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou à cobrança da dívida”, também o pode ser por iniciativa do devedor.
Mas, em meu entender, tem razão quando refere que a falta de notificação não justifica o não pagamento da contribuição.
Estes aspetos procedimentais não figuram nas leis de bases, que estabelecem os princípios, a administração do sistema, as disposições relativas aos subsistemas, os direitos, deveres e garantias dos intervenientes, seja o Estado sem os privados (singulares ou coletivos) e os mecanismos de controlo do sistema.
Ao tempo da obrigação de Passos Coelho, basicamente os procedimentos eram pautados pelo regime do DL n.º 328/93, de 25 de setembro, que, depois de definir quem são os trabalhadores abrangidos pelo regime e os que o não são, bem como a noção de trabalhador independente, apresenta no artigo 17.º a obrigação de participar à instituição de segurança social que os abranja “o início do exercício da atividade por conta própria”, mesmo que no início desse exercício se encontrem em condições de beneficiarem do regime de isenção. E o art.º 18.º determina que “a participação do início da atividade deve ter lugar até final do prazo legal para pagamento da primeira contribuição referente ao beneficiário, mesmo nos casos em que haja lugar à isenção da obrigação contributiva”.
Estes dois artigos vêm na consonância com o estabelecido no art.º 20.º da Lei n.º 28/84,de 14 de agosto, quanto à obrigação de inscrição.
Por seu turno, o artigo 19.º do mencionado decreto-lei dispõe que a prova do início de atividade cabe aos trabalhadores independentes, devendo os mesmos instruir a participação à segurança social com os documentos comprovativos da sua situação profissional, incluindo os de natureza fiscal. Quando isso não for possível, a Segurança Social deve aceitar as declarações dos interessados, “sem prejuízo de verificação a efetuar pelos serviços competentes”.
Mais tarde, houve evolução nos procedimentos. Os trabalhadores puderam solicitar aos Serviços de Finanças a comunicação do início de atividade à Segurança Social. Depois, os Serviços de Finanças passaram a fazer oficiosamente a comunicação.
Quanto à não notificação de uns e à avalanche de notificações a outros, é oportuno explicitar que os Serviços só notificam os inscritos, os que deixaram de pagar. Para tanto, basta que tenham pago uma vez. Ora, se nunca se inscreveram e se nunca pagaram, como podem esperar notificação?
Aqui, o Primeiro-Ministro não tem razão quanto à sua não ciência sobre a matéria, nem o desconhecimento da lei dispensa o cidadão do seu cumprimento, podendo constituir atenuante, mas em sede própria. Depois, o detentor de notório cargo público, antes de vir dizer ao povo que não sabia ou que não tinha consciência da importância da omissão, deveria mandar estudar cabalmente a sua situação e preparar cuidadosamente o seu discurso de modo a não deixar margem de dúvida sobre a excelência da obrigação do cumprimento dos deveres para com o Estado e sobretudo a não insultar a inteligência e o penoso e desmedido sacrifício a que vem obrigando os seus concidadãos. Dispense-se de se vitimizar desnecessariamente, armar-se à complacência ou a disparar contra os seus antecessores no cargo.
Já sabemos que Passos Coelho não tem de ser um cidadão perfeito, mas tem de ser exemplar no cumprimento dos deveres no horizonte das suas funções e explicar com humildade e verdade as suas eventuais falhas anteriores, pedir desculpa proporcionada, se for ocaso, mas nunca protelar o cumprimento de obrigações passadas para depois de sair do cargo que ora ocupa. Essa é pior que a emenda do soneto. E escusa de vir desafiar-nos com a preparação da família para os embates eleitorais, pois, essa é matéria que pouco preocupa os portugueses.
Finalmente, não sei se é legítimo apontarem-se os dedos carecas às atitudes pessoais do Primeiro-Ministro. Com efeito há mais gente com falhas de cabelo cívico! Caso contrário, por que razão as oposições se inibem de exigir a demissão do Primeiro-Ministro?

É certo que, segundo a lei em vigor, a situação do contribuinte da segurança social é marcada pela confidencialidade, exceto no atinente à estrita publicação da lista de devedores e do respetivo montante (facto que não explica pormenores e razão e gravidade das falhas). Pública é só a declaração apresentada ao Parlamento e ao Tribunal Constitucional. Os Serviços falharam em expor a terceiros a situação de Passos – Que respondam por isso! – mas Passos que responda por si perante os Serviços e perante o povo! Unicuique suum.

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