O título é uma redução discursiva
de um enunciado um pouco mais extenso inserido na revista Sábado, de 5 a 11 de março, que se transcreve: Disse que “não sabia que devia ter pago contribuições à Segurança
Social porque não tinha consciência de que essa obrigação era devida”. O
sujeito gramatical das formas verbais “disse”, “sabia” (na
forma negativa),
“devia ter pago” e “tinha” (na forma negativa), bem como de um suposto e
subentendido complemento agente da passiva do verbo “dever” (na
forma passiva, “era devida”)
é o Primeiro-Ministro Passos Coelho. Ao segmento discursivo transcrito o
colunista da Sábado, acrescenta: Mas Tinha votado como deputado a Lei de
Bases [da Segurança Social].
Passos Coelho aos portugueses, no
Parlamento, em televisão e no seu partido, tem uma postura, a um tempo parecida
com a de Zeinal Bava à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o caso BES/GES,
que não sabia, que não se lembrava, que não tinha memória… Porém, ao contrário
do ajuramentado perante os deputados, confessa que não é um cidadão perfeito,
que teve falhas de atraso no cumprimento das suas obrigações fiscais (por
distração e falta de dinheiro),
que se enganou, que pagou multas, mas que não deve nada à Administração Fiscal
nem à Segurança Social. A distração mão desculpa e a falta de dinheiro não impede
as declarações! Cada cavadela, mais minhocas…
***
Sobre o Primeiro-Ministro e as
suas declarações já muitos se pronunciaram, inclusive o seu antecessor
imediato, que afirmou, em carta enviada ao Diário
de Notícias (vd DN, de 5 de
março), que “o primeiro-ministro está próximo da miséria moral”. Esta e outras
afirmações de Sócrates constituem o seu remoque sentido ao teor das
considerações de Passos Coelho: “Não enriqueci nem beneficiei ninguém enquanto
exerci o cargo de primeiro-ministro”. A Passos fica mal o discurso com sabor
retroativo, sobretudo em circunstância de prisão do antecessor, não?
Santa Lopes e António Vitorino,
na sua semanal charla dialogal em TV falam de confusão legislativa ao tempo
sobre o regime contributivo da Segurança Social, sobretudo ao nível dos
trabalhadores independentes. Mais: Santana até quis insinuar que os deputados
como ele próprio e Vitorino também seriam responsáveis por isso como deputados
que eram ao tempo.
Na verdade, esta dupla de
políticos tinha efetivamente cargo de deputado na Assembleia da República (Santana,
do lado do PSD, e Vitorino do lado do PS)
quando da discussão, aprovação e publicação da Lei de Bases da Segurança Social
– Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, que revoga a Lei n.º 32/2002, de 20 de
dezembro, que, por seu turno, revoga a Lei n.º 17/2000, de 8 de agosto, a qual
também revoga a Lei n.º 28/84, de 14 de agosto.
E é à luz do estabelecido nas leis
e regulamentos vigentes ao tempo que devem ser apreciados os atos e as omissões
de Passos.
Porém, o cidadão e político Pedro
Passos Coelho não foi deputado ao tempo da discussão, aprovação e publicação
destas leis. Por isso, a Sábado não
deveria ter ido por essa via até por que há outros argumentos mais pertinentes
e a responsabilidade legislativa das quase duas centena e meia dos deputados fica
diluída no considerável coletivo. Por outro lado, Pedro Santana Lopes e António
Vitorino, falando em matéria de segurança social, eram deputados somente
aquando da discussão, aprovação e publicação da Lei n.º 4/2007, de 16 de
janeiro, mas não no tempo das outras leis referidas. Por isso, a insinuação de
responsabilidade de Santa a si próprio e a Vitorino é excessivamente generosa e
meio mentirosa. Bem sei que o conhecimento de causa da maior parte dos
deputados na aprovação das leis é bastante periclitante, embora esteja
assegurado constitucionalmente que “cada grupo parlamentar tem direito a dispor
de locais de trabalho na sede da Assembleia, bem como de pessoal técnico e
administrativo da sua confiança, nos termos que a lei determinar” (vd
art.º 180.º/3.). Mas
a prática é o que é.
***
Entretanto, o Primeiro-Ministro
não tem razão ao dizer que, ao tempo, não sabia da obrigação de contribuir para
a segurança social, porquanto Lei n.º 17/2000, de 8 de agosto, no n.º 1 do seu
art.º 48.º, retomando o conteúdo do art.º 18.º da Lei n.º 28/84, de 14 de
agosto, estabelece que “são abrangidos obrigatoriamente no âmbito do subsistema
previdencial, na qualidade de beneficiários, os trabalhadores por conta de
outrem e os independentes” (sublinhei). E o n.º 1 do seu art.º
60.º dispõe que “os beneficiários
(sublinhei) e, no caso de exercício de atividade profissional subordinada, as
respetivas entidades empregadoras são obrigados a contribuir para os regimes de
segurança social”.
Por seu turno, o n.º 1 do art.º
45.º da Lei n.º 32/2002, de 20 de dezembro, e o n.º 1 do art.º 51.º da Lei n.º
4/2007, de 16 de janeiro, dispondo no âmbito pessoal, referem que “são abrangidos
obrigatoriamente pelo sistema previdencial, na qualidade de beneficiários, os
trabalhadores por conta de outrem ou legalmente equiparados e os trabalhadores independentes (sublinhei).
Quanto ao regime coercivo da
restituição e cobrança das contribuições e prestações, bem como das prescrições
os artigo 49.º e 50.º da primeira das leis mencionadas no parágrafo anterior e
o artigo 60.º da segunda, que recupera os dois, estabelecem:
1 – As
quotizações e as contribuições não pagas, bem como outros montantes devidos,
são objeto de cobrança coerciva nos termos legais.
2 – As prestações
pagas aos beneficiários que a elas não tinham direito devem ser restituídas nos
termos previstos na lei.
3 – A obrigação
do pagamento das quotizações e das contribuições prescreve no prazo de cinco
anos a contar da data em que aquela obrigação deveria ter sido cumprida.
4 – A prescrição
interrompe-se por qualquer diligência administrativa, realizada com
conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou à
cobrança da dívida.
Em face destas disposições, é de
perguntar como é que Marcelo Rebelo de Sousa não vê como é que a dívida
prescrita não pode ser paga. Ora, se a prescrição se interrompe “por qualquer
diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo
pagamento, conducente à liquidação ou à cobrança da dívida”, também o pode ser
por iniciativa do devedor.
Mas, em meu entender, tem razão
quando refere que a falta de notificação não justifica o não pagamento da
contribuição.
Estes aspetos procedimentais não
figuram nas leis de bases, que estabelecem os princípios, a administração do
sistema, as disposições relativas aos subsistemas, os direitos, deveres e
garantias dos intervenientes, seja o Estado sem os privados (singulares ou
coletivos) e os mecanismos de controlo do sistema.
Ao tempo da obrigação de Passos
Coelho, basicamente os procedimentos eram pautados pelo regime do DL n.º
328/93, de 25 de setembro, que, depois de definir quem são os trabalhadores abrangidos
pelo regime e os que o não são, bem como a noção de trabalhador independente,
apresenta no artigo 17.º a obrigação de participar à instituição de segurança
social que os abranja “o início do exercício da atividade por conta própria”,
mesmo que no início desse exercício se encontrem em condições de beneficiarem
do regime de isenção. E o art.º 18.º determina que “a participação do início da atividade deve
ter lugar até final do prazo legal para pagamento da primeira contribuição
referente ao beneficiário, mesmo nos casos em que haja lugar à isenção da
obrigação contributiva”.
Estes dois artigos vêm na consonância com
o estabelecido no art.º 20.º da Lei n.º 28/84,de 14 de agosto, quanto à
obrigação de inscrição.
Por seu turno, o artigo 19.º do mencionado
decreto-lei dispõe que a prova do início de atividade cabe aos trabalhadores
independentes, devendo os mesmos instruir a participação à segurança social com
os documentos comprovativos da sua situação profissional, incluindo os de
natureza fiscal. Quando isso não for possível, a Segurança Social deve aceitar
as declarações dos interessados, “sem prejuízo de
verificação a efetuar pelos serviços competentes”.
Mais tarde, houve evolução nos
procedimentos. Os trabalhadores puderam solicitar aos Serviços de Finanças a
comunicação do início de atividade à Segurança Social. Depois, os Serviços de
Finanças passaram a fazer oficiosamente a comunicação.
Quanto à não notificação de uns e à
avalanche de notificações a outros, é oportuno explicitar que os Serviços só
notificam os inscritos, os que deixaram de pagar. Para tanto, basta que tenham
pago uma vez. Ora, se nunca se inscreveram e se nunca pagaram, como podem
esperar notificação?
Aqui, o Primeiro-Ministro não tem razão
quanto à sua não ciência sobre a matéria, nem o desconhecimento da lei dispensa
o cidadão do seu cumprimento, podendo constituir atenuante, mas em sede
própria. Depois, o detentor de notório cargo público, antes de vir dizer ao
povo que não sabia ou que não tinha consciência da importância da omissão,
deveria mandar estudar cabalmente a sua situação e preparar cuidadosamente o
seu discurso de modo a não deixar margem de dúvida sobre a excelência da
obrigação do cumprimento dos deveres para com o Estado e sobretudo a não
insultar a inteligência e o penoso e desmedido sacrifício a que vem obrigando
os seus concidadãos. Dispense-se de se vitimizar desnecessariamente, armar-se à
complacência ou a disparar contra os seus antecessores no cargo.
Já sabemos que Passos Coelho não tem de
ser um cidadão perfeito, mas tem de ser exemplar no cumprimento dos deveres no
horizonte das suas funções e explicar com humildade e verdade as suas eventuais
falhas anteriores, pedir desculpa proporcionada, se for ocaso, mas nunca
protelar o cumprimento de obrigações passadas para depois de sair do cargo que
ora ocupa. Essa é pior que a emenda do soneto. E escusa de vir desafiar-nos com
a preparação da família para os embates eleitorais, pois, essa é matéria que
pouco preocupa os portugueses.
Finalmente, não sei se é legítimo
apontarem-se os dedos carecas às atitudes pessoais do Primeiro-Ministro. Com
efeito há mais gente com falhas de cabelo cívico! Caso contrário, por que razão
as oposições se inibem de exigir a demissão do Primeiro-Ministro?
É certo que, segundo a lei em vigor, a
situação do contribuinte da segurança social é marcada pela confidencialidade,
exceto no atinente à estrita publicação da lista de devedores e do respetivo
montante (facto que não explica pormenores e razão e gravidade das
falhas). Pública é só a declaração
apresentada ao Parlamento e ao Tribunal Constitucional. Os Serviços falharam em
expor a terceiros a situação de Passos – Que respondam por isso! – mas Passos
que responda por si perante os Serviços e perante o povo! Unicuique suum.
Sem comentários:
Enviar um comentário