quarta-feira, 18 de março de 2015

O decoro público

O decoro pode, em termos genéricos, definir-se como o respeito pelas normas de convivência, pelas boas maneiras, a decência e a compostura. Ao nível ético-moral, será a honestidade, integridade, a honra, a dignidade. No âmbito da literatura e da estética, é a adequação do estilo ao tema. E, no atinente à apresentação pública, compagina o comedimento, o recato, um certo pudor no falar e no agir, o equilíbrio entre o respeito e o à vontade.
O vocábulo português provém do nome masculino latino decor, decoris (com “o” longo), a significar: beleza física, formosura; ornamento, enfeite; conveniência, o que fica bem, o que convém. Com o “e” breve, é um adjetivo, que significa belo, formoso, elegante, ornado, enfeitado.
Da sua família lexical e semântica são: decoro, decorare (verbo), que significa ornar, enfeitar, decorar, honrar e distinguir; decoramen, decoraminis e decoramentum, decoramenti (nomes neutros), a significar ornato, enfeite; decorosus, a, um (adjetivo da 1.ª classe), que significa elegante, formoso, brilhante; decore (advérbio de modo), que significa convenientemente, artisticamente, dignamente; o advérbio de modo correspondente decorose, significando elegantemente, formosamente, brilhantemente; decus, decoris (com “o” breve, nome neutro), a significar decoro, decência, dignidade, glória, honra, enfeite, ornato, ornamento, beleza moral, virtude, dever; decet, decere (verbo defetivo), que significa “é conveniente”, “fica bem”, “é mister”, convém; decens, decentis (adjetivo derivado de decet), a significar conveniente, decente, próprio, que fica bem, regular, bem feito, formoso, majestoso; decenter (advérbio de modo), significando convenientemente, com arte, com graça; decentia, decentiae (nome feminino), que significa decência, decoro, conveniência.
Se a cada um dos termos supramencionados antepusermos os prefixos “de” ou “in”, teremos vocábulos com o significado contrário ou antónimo.
Como se pode verificar, “decoro” e palavras da mesma família na latinidade transportavam-nos para aspetos físicos, morais e sociais; dados naturalmente conexos com a personalidade ou o ambiente e dados que se trabalham, que se constroem. Assim, quando falamos do decoro público temos de considerar obviamente a apresentação, o cuidado da imagem visual e da voz, bem como os gestos, a postura e as movimentações. Ora, estes cuidados são apanágio de quem pretende um bom desempenho no mundo dos negócios, na ocupação de um cargo público, empresarial ou profissional e na liderança de um grupo profissional ou político.
Porém, muitas vezes se esquece o aprimoramento da personalidade e de caráter, com as convenientes virtudes morais e a ética da ação e da relação. A ambição empresarial, a reivindicação dos direitos, o frenesim concorrencial e a disputa política não raro levam à perda da noção do decoro, da decência, da consciência dos limites.
Assim, quando alguém se locupleta deslavadamente à custa da hipocrisia, do espezinhamento, da fraude ou da habilidade saloia, da corrupção e quejandos, apontamos-lhe a falta de decoro, a obscenidade, a indecência, o oportunismo – quando não o crime, a gestão danosa e outros mimos denominativos. E, quando em nome da frontalidade, se envereda pela via do insulto, clamamos peça ultrapassagem dos limites, pela falta de contenção, pela indecência.
Com efeito, em política é importante cuidar do ser e do parecer – desejavelmente não uma vertente sem a outra. Cuidar do ser sem o parecer dará como consequência a ineficácia, cuidar do parecer sem o ser é hipocrisia, soa a oco e desmascara-se mais cedo ou mais tarde.
Por isso, o profissional, o empresário, o político devem assumir o cuidado do ser integral, do caráter e das suas circunstâncias. Sendo autênticos, serão eles próprios e a comunidade só tem a ganhar. Depois, devem tomar consciência de que, à medida que a profissão, a empresa ou o cargo público/político os expõem publicamente, começam a ter de prestar contas à comunidade, mesmo sobre a sua personalidade e os seus pertences. E, se forem apanhados pelo escrutínio múltiplo da opinião pública, dos serviços, dos concorrentes, só perdem tempo e prestígio em ocultar, desmentir, negar. O menos mau que podem fazer é assumir os erros, explicar-se prontamente com razões que não entrem em contradição com a substância do perfil desejável e, sobretudo, mostrar à evidência a mudança de rumo pessoal.
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Não raras vezes, tem acontecido que as figuras públicas cometem dislates em público que ficam a longas milhas do decoro público. Recordo, a título de exemplo, que o Primeiro-Ministro do I Governo Provisório respondeu a repórter que desejava saber da evolução dos acontecimentos políticos que fosse à bruxa. Um Chefe do Estado que se recandidatava ao cargo assumiu com uma determinada força política o compromisso de apoio mútuo em eleições (legislativas e presidenciais), mas, vencidas as eleições legislativas por força política contrária, apressou-se a declarar publicamente que o seu programa presidencial ao desta. Um Presidente da República que pretendia entrar em Lisboa em autocarro como se fosse um anónimo cidadão, bradou para o homem da GNR que desaparecesse e dissesse ao colega que fizesse o mesmo. Um ministro do Estado no Parlamento chamou ignorante a uma deputada líder de bancada parlamentar. Um secretário d Estado da área da educação não sabia dirigir-se ao Parlamento. Um chefe de Estado, convidado para uma cerimónia, não se sujeitou às regras protocolares da instituição que o convidou e exigiu a presença da esposa ao seu lado. Um Presidente da República veio queixar-se pela televisão de que estava sob escuta do Governo, que as pensões de reforma / aposentação que percebia talvez nem dessem para as despesas e que estava por nascer quem fosse tão honesto como ele ou mais do que ele – para não falarmos do apelo ao sobressalto democrático ou da acusação de falta de lealdade de um primeiro-ministro que nomeara e empossara.
No último quadriénio, primeiro-ministro e ministros aconselharam a emigrar, pediram que não fôssemos piegas, identificaram a salsicha da educação, não foram eleitos coisíssima nenhuma, mandaram lixar as eleições, quando falam ao telefone é como se falassem para um gravador e assim por diante. Uma conhecida figura pública chamou barata tonta à Ministra da Justiça. Mas esta também não se coibiu de publicamente difamar funcionários que trabalharam para o seu Ministério e processá-los judicialmente.
Ultimamente, evidenciaram-se mais dilates.
Miguel Cadilhe, esquecendo o seu controverso perfil, criticou a política (também a economia), acusando que não segrega atempadamente o “puro sacana, o velhaco”.
Portas, acossado por causa do caso dos submarinos, compara José Magalhães e Ana Gomes à mosca que anda com as patas para cima: “Mais a sua amiga Ana Gomes. Todo o resto do mundo está errado", defendeu, para logo a seguir fazer uma comparação: Faz-me lembrar aquela história que se contava, do Octavio Paz: que as moscas andavam todas com patas para baixo e depois há uma mosca que anda com as patas para o ar e acha, essa mosca que anda com as patas para o ar, que as outras moscas estão todas erradas e ela é que está certa".
O advogado de José Sócrates disse a uma jornalista do Correio da Manhã, Tânia Laranjo, que “cheirava mal” e “devia tomar banho”. Está em causa o modo como João Araújo se dirigiu à jornalista no final da apreciação do pedido de “habeas corpus” pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em que lhe dirigiu, em resposta, a palavra naqueles termos. A jornalista vai, por isso, apresentar uma queixa-crime ao Ministério Público contra o advogado de José Sócrates, João Araújo, e uma outra à Ordem dos Advogados.
Paulo Morais disse abertamente que a sede legislativa já não reside efetivamente no Parlamento, mas nas grandes sociedades de advogados (aqui, o dislate não é do comunicador, mas do facto), que ganham por um trabalho que fazem a jeito, defendem os clientes perante leis que redigiram (materialmente são suas). Os deputados, por sua vez, estão a colaborar no negócio.
Quem não se lembra do mistério da vírgula, na década de 80/90, que de São Bento à INCM alterou o sentido de a lei? Ou do apontamento do PR sobre a alteração, na lei de limitação dos mandatos, das expressões Presidente da Câmara e Presidente da Junta para as expressões Presidente de Câmara e Presidente de Junta, respetivamente?
Como é que se aceita que altos funcionários, detentores de cargos políticos, antes, durante e/ou após o exercício público, encaminhem dinheiros seus para paraísos fiscais?
Será verdade o que Paulo Morais refere: que angolanos vêm a Portugal gastar dinheiro supostamente de Angola, que, afinal nem sequer saiu do país, porque resulta de empréstimo de banca portuguesa a banca em Angola nas condições de gestão ruinosa?
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O decoro público parece estar de gozo de umas longuíssimas férias, que é imperioso interromper para nunca mais serem concedidas. Ora, para que os cidadãos se reaproximem da política e esta atinja scores mínimos de dignidade e patamares razoáveis de serviço público, urge a reforma do sistema partidário e do sistema político instituinte. Para quando?

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