segunda-feira, 9 de março de 2015

Sobre o Ano da Vida Consagrada

Está a decorrer, desde o dia 30 do mês de novembro do ano transato, I Domingo de Advento, até 2 de fevereiro de 2016, festa da Apresentação de Jesus no Templo, o Ano da Vida Consagrada, proclamado por Carta Apostólica do Papa Francisco, de 21 de novembro de 2014, festa da Apresentação de Maria.
Abarcando o Ano Internacional da Luz sob a égide a ONU (os discípulos são a luz do mundo – Mt 5,14), é confiado à Virgem da escuta e da contemplação, a primeira discípula do seu amado Filho, filha predileta do Pai e revestida de todos os dons da graça, para a qual olhamos como modelo insuperável de seguimento no amor a Deus e no serviço do próximo.
Ora, constituindo a primeira e grande iniciação cristã o Batismo, sacramento instituído por Jesus Cristo, para cunhar na alma dos crentes o selo indelével pelo qual Ele nos tornou propriedade da Santíssima Trindade, filhos do mesmo Pai e seus irmãos – os membros do Povo de Deus ou fiéis já são consagrados pelo Batismo.
A este respeito, pode ler-se na Constituição Dogmática sobre a Igreja, a Lumen Gentium, n.º 11:
A índole sagrada e orgânica da comunidade sacerdotal efetiva-se pelos sacramentos e pelas virtudes. Os fiéis, incorporados na Igreja pelo Batismo, são destinados pelo caráter batismal ao culto da religião cristã e, regenerados para filhos de Deus, devem confessar diante dos homens a fé que de Deus receberam por meio da Igreja.

No entanto, embora o serviço fundamental da Igreja pudesse em tese desenvolver-se sem a presença da imensa plêiade daqueles e daquelas que decidem seguir, de forma mais específica e próxima, o Cristo pobre, obediente e casto, a Igreja assume a consagração especial dos religiosos e religiosas que voluntariamente optam pela profissão explícita e radical dos valores evangélicos da pobreza voluntária, da obediência inteira e da castidade perpétua, bem como dos leigos e leigas que optam por viver estes valores no meio do mundo, entregues às lides profissionais como quaisquer outros cidadãos. São estes e estas a que vulgarmente se dá a denominação de consagrados e consagradas. Alguns são também consagrados pelo sacerdócio. E todos os sacerdotes, mesmo os ditos seculares, são chamados a um sério compromisso com a obediência, com a castidade (na Igreja Latina, mesmo a castidade celibatária) e uma certa sobriedade no uso e fruição dos bens terrenos.
No seu n.º 44, mesma Lumen Gentium ensina que, pelos votos de observação dos preditos valores ou conselhos, o cristão se entrega “totalmente ao serviço de Deus”, ficando destinado ao serviço do Senhor por novo e especial título. Se pelo Batismo morrera para o pecado e fora consagrado a Deus, pretende agora, para colher mais abundantes frutos da graça batismal, libertar-se, pela profissão dos conselhos evangélicos, dos impedimentos que o possam afastar do fervor da caridade e da perfeição cultual. Fica assim mais intimamente consagrado ao serviço divino. E esta consagração será tanto mais perfeita quanto mais a firmeza e a estabilidade dos vínculos representarem a união de Cristo à Igreja, Sua esposa. E como aqueles conselhos, pela caridade a que conduzem, unem os que os seguem, de modo especial, à Igreja e ao seu mistério, deve também a sua vida espiritual ser consagrada ao bem de toda a Igreja. Daqui nasce o dever de trabalhar na implantação e consolidação do reino de Cristo nas almas e de o levar a todas as regiões com a oração e com a ação, segundo as próprias forças e a índole da própria vocação. (…)
A profissão dos conselhos evangélicos aparece como sinal que pode e deve atrair todos os membros da Igreja a corresponderem animosamente às exigências da vocação cristã. E, porque o Povo de Deus vai em demanda da cidade futura (cf Hbr 13,14), o estado de consagração, tornando os seus seguidores mais livres das preocupações terrenas, manifesta melhor aos fiéis os bens celestes, já presentes neste mundo, sendo assim testemunho da vida nova, adquirida pela redenção de Cristo e pré-anunciando a ressurreição futura e a glória do reino celeste.
Também o estado de consagração patenteia de modo especial a elevação do reino de Deus sobre tudo o que é terreno e as suas relações transcendentes, revelando aos homens a grandeza do poder de Cristo e a potência infinita com que o Espírito Santo atua na Igreja.
E, embora o estado constituído pela profissão dos conselhos evangélicos, não pertença à estrutura hierárquica da Igreja, está contudo inabalavelmente ligado à sua vida e santidade.
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Fazendo uma aligeirada visita à aludida carta pastoral, convém surpreendê-la na sua tríplice estrutura: objetivos do Ano da Vida Consagrada; expectativas para o Ano da Vida Consagrada; e horizontes do Ano da Vida Consagrada.
– Objetivos –
Francisco começa por citar João Paulo II na Exortação pós-sinodal Vita consecrata: “Vós não tendes apenas uma história gloriosa para recordar e narrar, mas uma grande história a construir! Olhai para o futuro, para o qual vos projeta o Espírito a fim de realizar convosco ainda coisas maiores” (n. 110). E refere que indicou como objetivos para este Ano os mesmos que o pontífice polaco propusera à Igreja no início do terceiro milénio. São três: olhar com gratidão o passado; viver com paixão o presente; e abraçar com esperança o futuro.
- Olhar com gratidão o passado. Cada Instituto de Vida Consagrada provém duma rica história carismática em cujas origens está presente a ação de Deus que chama algumas pessoas para seguirem Cristo, traduzirem o Evangelho numa forma peculiar de vida, lerem com os olhos da fé os sinais dos tempos, responderem às necessidades da Igreja. Depois, desenvolveu-se tocando outros membros em novos contextos geográficos e culturais, como semente que se torna árvore alargando os seus ramos. Por isso, será oportuno que cada família carismática recorde os seus inícios e a sua história, para agradecer a Deus os dons que tornam a Igreja bela e habilitada para toda a boa obra. Repassar a própria história afigura-se indispensável para manter viva a identidade, robustecendo a unidade da família e o sentido de pertença dos membros.
- Viver com paixão o presente. A grata lembrança do passado impele-nos a implementar de modo cada vez mais profundo os aspetos constitutivos da vida consagrada. Desde os inícios do monaquismo até às “novas comunidades” de hoje, cada forma de vida consagrada nasceu da chamada do Espírito para seguir a Cristo segundo o ensinamento do Evangelho. A regra é o Evangelho e qualquer outra regra é apenas expressão do Evangelho e instrumento para o viver em plenitude. Por isso, hoje a questão é de saber se e como nos deixamos interpelar pelo Evangelho. Também viver com paixão o presente é tornarmo-nos “peritos em comunhão”, ou “testemunhas e artífices” daquele “projeto de comunhão” que está no vértice da história do homem segundo Deus. Somos, pois, chamados a oferecer um modelo de comunidade que, mediante o reconhecimento da dignidade de cada pessoa e a partilha do dom de que ela é portadora, promova as relações fraternas na sociedade marcada pelo conflito, pela convivência difícil entre culturas, pela prepotência sobre os mais fracos e pelas grandes desigualdades.
- Abraçar com esperança o futuro. São grandes as dificuldades da vida consagrada: a diminuição das vocações e envelhecimento, sobretudo no mundo ocidental; os problemas decorrentes da grave crise financeira mundial; os desafios da internacionalidade e globalização; as insídias do relativismo; a marginalização e a irrelevância social... Mas é nestas incertezas, que partilhamos com muitos contemporâneos, que atua a nossa esperança, fruto da fé no Senhor da História que garante a sua presença reconfortante junto de nós. Esta esperança não se funda em números ou em obras, mas n’ Aquele em quem pusemos a nossa confiança (cf 2 Tm 1,12). É por isso necessário não ceder à tentação dos números e da eficiência, e menos ainda à tentação de confiar nas próprias forças, mas atender às recomendações de Bento XVI: “Não vos unais aos profetas de desventura, que proclamam o fim ou a insensatez da vida consagrada na Igreja dos nossos dias; pelo contrário, revesti-vos de Cristo e muni-vos das armas da luz – como exorta São Paulo (cf Rm 13,11-14) –, permanecendo acordados e vigilantes.
E o Papa, que faz uma referência específica aos jovens como futuro da Igreja e da Sociedade, termina o capítulo augurando que o “encontro” que os diferentes Institutos vão empreender se torne caminho habitual de comunhão, de apoio mútuo, de unidade.
As expectativas
Francisco diz o que espera deste Ano de graça da vida consagrada. Espera: a alegria; a profecia; a espiritualidade da comunhão; a missão; e a resposta a Deus e à humanidade.
- A alegria. Ma convicção de que Deus preenche o coração e nos faz felizes, deve a fraternidade vivida em nas comunidades alimentar a alegria da nossa entrega total à Igreja, às famílias, aos jovens, aos idosos, aos pobres, que nos realiza e dá plenitude à nossa vida. Um consagrado triste é um contratestemunho. Ora, numa sociedade que ostenta o culto da eficiência, saúde e sucesso e que marginaliza os pobres e exclui os “perdedores”, podemos testemunhar, através da vida, a verdade das palavras da Escritura: Quando sou fraco, então é que sou forte (2 Cor 12,10). A vida consagrada não cresce pela organização de belas campanhas vocacionais, mas pelo nosso testemunho de homens e mulheres felizes.
- A profecia. Espera o Papa que os consagrados despertem o mundo, porque esta é uma das caraterísticas da vida consagrada. Sendo pedida a todos a radicalidade evangélica e não só aos religiosos, estes seguem o Senhor de um modo especial – profético e interpelante. O religioso não pode renunciar à profecia. Recebendo de Deus a capacidade de perscrutar a história e interpretar os acontecimentos, é como a sentinela que vigia durante a noite e percebe a chegada da aurora (cf. Is 21,11-12). Conhecendo Deus e os homens, torna-se capaz de discernimento e de denúncia do mal do pecado e das injustiças. Porque é livre, não responde a outros senhores que não a Deus, nem tem outros interesses além dos de Deus. Está do lado dos pobres e indefesos, porque sabe que Deus está do lado deles. Sendo assim, Francisco espera que os Institutos e todos os lugares que nasceram da caridade e da criatividade carismática – e ainda farão nascer, com nova criatividade – se tornem cada vez mais o fermento duma sociedade inspirada no Evangelho, a “cidade sobre o monte” que mostra a verdade e a força da palavra de Jesus.
- A espiritualidade da comunhão. Os consagrados são chamados a ser “peritos em comunhão”. Por isso, o Papa deseja que essa espiritualidade se torne realidade e que os consagrados estejam na vanguarda abraçando “o grande desafio que nos espera” neste milénio: fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão: comunhão praticada dentro das respetivas comunidades (na aceitação e solicitude recíprocas, na partilha dos bens materiais e espirituais, na correção fraterna, no respeito pelas pessoas mais frágeis); comunhão entre os membros dos diferentes Institutos, através de projetos comuns de formação, de evangelização, de intervenções sociais; e procura duma sinergia sincera entre todas as vocações na Igreja, a começar pelos presbíteros e os leigos, a fim de “fazer crescer a espiritualidade da comunhão, primeiro no seu seio e depois na própria comunidade eclesial e para além dos seus confins”.
- A missão. Também os consagrados têm de sair de si mesmos para ir às periferias existenciais. “Ide pelo mundo inteiro” (cf Mc 16,15) – é o mandato de Jesus. E a humanidade aguarda: pessoas sem esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado o futuro, doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens mas com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino. Dos consagrados Francisco espera gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na catequese, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração; e almeja a racionalização das estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais cônsonas às exigências atuais da evangelização e da caridade, a adaptação das obras às novas necessidades.
- A resposta a Deus e à humanidade. Cada forma de vida consagrada deve interrogar-se sobre o que lhe pedem Deus e a humanidade de hoje. Os grupos contemplativos podem encontrar-se ou conectar-se entre si para troca de experiências sobre a oração, modo de crescer na comunhão em Igreja, apoiar os cristãos perseguidos, acolher e acompanhar as pessoas que andam à procura duma vida espiritual mais intensa ou necessitam de apoio moral ou material. E os grupos de ação poderão fazer o mesmo. O Espírito gerou modos de vida e obras tão diferentes que não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em esquemas pré-fabricados. Mas neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério controlo sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder às incessantes e novas solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres.
Só com atenção às necessidades do mundo e na docilidade aos impulsos do Espírito é que este Ano se tornará um autêntico kairós, um tempo de Deus, rico de graças e de transformação.
Os horizontes
- Além das pessoas consagradas, o Papa dirige-se aos leigos que, com elas, partilham ideais, espírito, missão. Na realidade, à volta de cada família religiosa, bem como das Sociedades de Vida Apostólica e dos Institutos Seculares, gravita uma família maior, a “família carismática”, englobando os vários Institutos que se reconhecem no mesmo carisma e sobretudo os leigos que se sentem chamados, na condição laical, a participar da mesma rede carismática. Neste sentido, devem celebrar o Ano com toda a “família”, para crescerem e responderem juntos aos apelos do Espírito na sociedade atual.  
- O Ano da Vida Consagrada diz respeito à Igreja inteira. Assim, o Pontífice dirige-se  a todo o povo cristão, para que tome cada vez maior consciência do dom que é a presença das pessoas consagradas, herdeiras de grandes Santos que fizeram a história do cristianismo. Por isso, todas as comunidades cristãs devem viver o Ano, procurando agradecer ao Senhor e, reconhecidas, recordar os dons que foram recebidos, e ainda recebemos, pela santidade dos Fundadores e das Fundadoras e da fidelidade de tantos consagrados ao seu próprio carisma, bem como estreitarem-se ao redor dos consagrados, rejubilar com eles, partilhar as suas dificuldades, colaborar na prossecução do seu serviço e obra, que são os da Igreja.
Aqui, Francisco não resiste a fazer especial alusão à coincidência do Ano da Vida Consagrada com o Sínodo da Família, desejando realçar a complementaridade entre a espiritualidade dos consagrados e a da vocação matrimonial e familiar – ambas expressão da vida eclesial.
- Ousa o Papa dirigir-se também às pessoas consagradas e aos membros de fraternidades e comunidades pertencentes a Igrejas de tradição diversa da católica. O monaquismo é património da Igreja indivisa, bem vivo nas Igrejas ortodoxas e na Igreja católica. Nele bem como nas sucessivas  experiências do tempo em que a Igreja do Ocidente ainda estava unida, se inspiram iniciativas análogas surgidas no âmbito das Comunidades eclesiais da Reforma, tendo estas continuado a gerar no seu seio novas expressões de comunidades fraternas e de serviço. É desejável que se desenvolva o conhecimento mútuo, a estima, a cooperação recíproca, de modo que o ecumenismo da vida consagrada sirva de ajuda ao caminho mais amplo rumo à unidade entre todas as Igrejas.
- O Papa, reconhece a presença do monaquismo e doutras expressões de fraternidade religiosa em todas as grandes religiões e as experiências, já consolidadas, de diálogo intermonástico da Igreja católica com algumas das grandes tradições religiosas. Assim, augura que o Ano seja ocasião para avaliar o caminho percorrido, sensibilizar as pessoas consagradas neste campo, questionar-nos sobre os passos a dar para um conhecimento recíproco cada vez mais profundo e uma colaboração crescente em muitos âmbitos comuns do serviço à vida humana, na certeza de que o caminhar em conjunto é sempre um enriquecimento e pode abrir caminhos novos nas relações entre povos e culturas que, neste período, aparecem carregadas de dificuldades.
- Vêm no final os bispos como que a apor a chancela da hierarquia sobre a vivência carismal. Devem eles aproveitar o ensejo para acolher, cordial e jubilosamente, a vida consagrada como um capital espiritual que contribui para o bem de todo o corpo de Cristo e não só das famílias religiosas, dado que “a vida consagrada é dom feito à Igreja”: nasce e cresce na Igreja, “está totalmente orientada para a Igreja”. Por isso, o Bispo de Roma convida os irmãos no episcopado a uma especial solicitude em promover nas comunidades diocesanas os diferentes carismas – os históricos e os novos – apoiando, animando, ajudando no discernimento, acompanhando com ternura e amor as situações de sofrimento e fraqueza em que se encontrem alguns consagrados e, sobretudo, esclarecendo com o ensino pastoral o povo de Deus sobre o valor da vida consagrada, de modo a fazer resplandecer a sua beleza e santidade na Igreja.
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Aqui deixo pequena súmula de um documento cujo alcance, na minha reiterada distração, pensei de interesse restrito, mas que afinal constitui uma mensagem dirigida a toda a Igreja (a ler na íntegra e a meditar), especificando diversos setores, e também ao mundo ecuménico e ao mundo inter-religioso, em prol da ação comum por Deus e a bem da humanidade, ao serviço da vida!

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