terça-feira, 31 de março de 2015

O epifenómeno paroquial de Canelas, Vila Nova de Gaia

As pessoas que me conhecem minimamente conhecerão, com certeza, a relutância com que eu me vejo a discorrer sobre o tema em epígrafe, já que se trata de matéria eclesiástica sensível por denotar o melindre do fenómeno eclesial, não confundível com os mecanismos de recrutamento político ou de provisão administrativa. Mas parece que tem de ser e, no dizer do povo, o que tem de ser tem muita força.
O caso da paróquia de São João Batista de Canelas, do concelho de Vila Nova de Gaia, está ligado ao mecanismo de transferências de sacerdotes de e para paróquias e/ou outros serviços diocesanos – mecanismo em funcionamento regular, que não atinge necessariamente, em cada ano, todos os sacerdotes e/ou todas as paróquias. Segundo a determinação da Conferência Episcopal, os sacerdotes são colocados e nomeados normalmente por um sexénio (período de seis anos), sendo automaticamente renovada a nomeação por outro sexénio, se outra coisa não tiver sido determinada. Naturalmente que o bispo diocesano não fica inibido de proceder a nomeações por período de tempo de duração inferior.
Os critérios que presidem à nomeação, remoção ou transferência de párocos são habitualmente os seguintes: o bem da Igreja, o bem das comunidades ou setores em causa e o bem da pessoa a nomear, transferir ou remover.
Depois, o processo de provimento das paróquias não decorre usualmente pelo processo eleitoral como para o provimento dos órgãos do poder político (central, regional ou local), por duas ordens de razões: na sociedade civil, em princípio, quem está no gozo dos seus direitos cívicos e políticos pode eleger e ser eleito e esta é a fonte de legitimidade originária de poder político (em vigor com a entrada em funções), mesmo que o seu exercício possa ser entregue a titulares de cargos providos por nomeação (obviamente derivada de órgãos eleitos direta ou indiretamente); por outro lado, embora a paróquia e a freguesia possam coincidir territorialmente em população, são realidades diferentes, pois a gestão da freguesia consubstancia-se na tomada de decisões políticas e administrativas por órgãos representativos (assembleia e junta) e os seus fins são de ordem temporal, ao passo que a vida da paróquia se consubstancia no serviço desempenhado não em termos de representação, mas de participação e colaboração, tanto assim que na paróquia pululam os sistemas de coordenação e os grupos de serviços, a assembleia é constituída por todos os elementos da paróquia e os fins são marcadamente espirituais e apostólicos.
A freguesia é por definição constitucional, uma autarquia local e, como tal, é uma pessoa coletiva territorial dotada de órgãos representativos (assembleia e junta), visando a prossecução de interesses próprios da sua população (vd CRP art.os 235.º/2 e 244.º). Já a paróquia é, segundo o código de direito canónico (CIC ou CDC), uma comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, cuja cura (cuidado) pastoral, sob a autoridade do bispo diocesano, está confiada ao pároco, como a seu pastor próprio (cf CIC can. 515 § 1). Ora, o coletivo é o somatório dos indivíduos; na comunidade cristã, em que subsiste a Igreja Corpo de Cristo (povo, mas povo de Deus; e povo de Deus não diz “não”), mais do que essa vertente, importa o liame comunitário forjado na mesma fé, norteado pela mesma esperança e animado pela mesma caridade.
Na paróquia, o responsável não é eleito, porque nem todos podem ser o pároco, mas unicamente aqueles que estejam constituídos na sagrada ordem do presbiterado (cf CIC can. 521 § 1). Além disso, todos conhecem a magreza de vocações sacerdotais, que impede que o pároco gira uma só paróquia, como seria desejável (1.ª parte do § 1 do can. 526), tendo que se socorrer o bispo do concedido na 2.ª parte do § 1 do can. 526, que estabelece: “pode ser confiada ao mesmo pároco a cura de várias paróquias vizinhas”.
E quem é e o que é o pároco? O pároco é o pastor próprio da paróquia (e não outro) da paróquia que lhe foi confiada e presta serviço à comunidade que lhe foi entregue, sob a autoridade do bispo diocesano, do qual foi chamado a partilhar o ministério de Cristo, para que, em favor da mesma comunidade, desempenhe ele o múnus de ensinar, santificar e governar, com a cooperação ainda de outros presbíteros ou diáconos com a ajuda dos fiéis leigos, nos termos do direito (cf can. 519). Para que alguém seja assumido como pároco, deve, além da ordenação presbiteral (sacerdotal), ser notável pela sã doutrina e probidade de costumes, zelo das almas, e dotado das outras virtudes, e gozar ainda daquelas qualidades que, pelo direito universal ou particular, se requerem para tomar a seu cuidado a paróquia de que se trata (cf can. 521 § 2).
Alguém do movimento Uma Comunidade Reage se deu ao cuidado de estudar estas questões jurídico-canónicas, assentes na doutrina conciliar, nomeadamente da Lumen Gentium, Constituição Dogmática sobre a Igreja, e no decreto Christus Dominus, sobre o Múnus Pastoral dos Bispos? Estará aqui em causa a luta pela salvação das almas, a lei suprema da Igreja?
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O Bispo do Porto, aconselhado por quem de direito, à semelhança dos procedimentos seguidos para com outros, convidou o pároco de Canelas para um outro serviço diocesano. Por dificuldades surgidas na gestão da transferência (não me importa saber se a culpa foi do reverendo padre ou de alguns dos paroquianos ou das duas partes), o prelado condescendeu em desanexar o processo de Canelas do conjunto dos demais e disponibilizou outras hipóteses de escolha de serviço ao sacerdote em causa. Entretanto, confiou a paroquialidade de Canelas a outro padre vizinho, nos termos canónicos (vd exposto supra). A população auto-organizou-se num movimento Uma Comunidade Reage e tentou bloquear a entrada em funções do novo pároco. E, a princípio, conseguiu tornar pública a imagem da alegada inanidade ou da minoração da ação do novo pastor. Os canais generalistas deram notável contributo à rebelião popular. A ação persiste já sem as pantalhas usuais, porque outras notícias ganharam maior vulto.
O novel sacerdote conseguiu, entretanto, organizar os serviços paroquiais de estrutura e de dinamização. Os bloqueadores são cada vez menos numerosos, mas mantêm a sua força. É normal que a organização do compasso pascal tenha borregado, já que os novos colaboradores da paróquia, por mais ousados que sejam, não queiram expor-se a insultos, como já tem acontecido. Com efeito, as autoridades policiais têm conseguido manter a ordem de modo a que os ofícios pastorais sejam satisfeitos e o pároco se desloque em segurança, embora não tenham inibido – e bem – as pessoas de se manifestarem. Porém, a segurança em todo o perímetro paroquial e por todo um dia não seria fácil de assegurar. Ademais, o serviço do compasso, por conveniente que seja, não configura um serviço inerente à essencialidade da vivência eclesial.
Entendo que ao padre que tinha anteriormente a cura da paróquia tivesse custado a decisão episcopal, bem como a alguns paroquianos, já que as afeições que se criam naturalmente não se desfazem com facilidade. Todavia, parece-me que a persistência na rebeldia do ex-pároco e do grupo de cristãos de Canelas configuram teimosia claramente contrastante com o bom senso, ganham o perfil de desobediência eclesial, ferindo o ser, o devir e a missão da Igreja e soam a escândalo. Seria menos mau se enveredassem provisoriamente pela cura do tempo, por exemplo, ficando em casa ou frequentado a missa noutro lugar.
Não, um ostensivo jantar com anterior pároco, que poderia tolerar-se como despedida e sinal de simpatia e reconhecimento, a que se segue via-sacra reiteradamente presidida pelo ex-pároco, uma peregrinação a Fátima com o mesmo sacerdote, vigília junto ao Paço Episcopal entrada na Sé, atos de vandalismo, insultos – são epifenómenos que significam vedetismo, falta de senso, falta de comunhão em Igreja, mau serviço à causa de Cristo, falta de respeito a pessoas.
Depois, incoerência: o pároco atual não foi eleito, o povo não foi ouvido para a sua nomeação. E o padre anterior tinha sido? O bispo do Porto veio sem ninguém o chamar, queixam-se alguns dos cristãos de Canelas. E o Papa Francisco foi eleito por sufrágio universal e direto? A que títulos lhe mandaram uma carta, quando a competência do Papa (não falo aqui da jurisdição) não chega a estas paróquias? Querem um padre imposto por Roma? Se calhar, eu também queria que o Papa fizesse o que eu mandasse…
Mas a comunicação Social é clara:
Depois de nove meses de luta contra a saída do padre Roberto de Sousa da paróquia de Canelas, em Vila Nova de Gaia, o movimento ‘Uma Comunidade Reage’ resolveu enviar uma carta ao papa Francisco. No interior do envelope seguiram as razões que levaram o pároco a abandonar a freguesia, uma petição com 5700 assinaturas e as inúmeras notícias que saíram na comunicação social. “Esperemos que o papa apele à sensibilização e nos dê razão”, explicou Miguel Rangel, representante do movimento. À porta do posto dos CTT, concentraram-se dezenas de pessoas que aplaudiram o momento da entrega (vd CM de 28/3).
É nítida a ostentação do movimento, não?
A Igreja de Canelas foi vandalizada na madrugada de ontem (dia 29). As fechaduras de dois portões foram seladas com uma massa que, quando seca, solidifica e assemelha-se a cimento. A GNR foi alertada às primeiras horas da manhã pelo sacristão. Vários militares conseguiram remover o material do portão principal, mas o secundário – o único que permite o acesso a pessoas com mobilidade reduzida – continuava, ontem à tarde, com a fechadura inutilizável. O movimento, que pede o regresso do padre Roberto à paróquia, rejeita qualquer envolvimento no caso, numa altura em que os cónegos do Porto pedem ‘bom senso’(vd CM de 30/3).
“Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele” – diz o nosso povo.
Depois, o pároco anterior perdeu o senso ao aproveitar a ocasião para denunciar atividades presuntivamente pecaminosas doutro sacerdote que vive noutra diocese, alegadamente praticadas num passado um tanto longínquo e que trabalhava algures ainda noutra diocese (ambas as dioceses diferentes da do Porto). Tal oportunismo parece dar a entender que o padre terá perdido as demais qualidades exigidas canonicamente para a assunção da paroquialidade.
Cabe ainda a obrigação de, embora confessando a legitimidade cidadã da constituição de associações a quem quer que seja, denunciar a insensatez da transformação do movimento Uma Comunidade Reage numa associação, dados os fins enunciados, em que se destaca a promoção do regresso do “ex-pároco”, que alguma linguagem não cuidada designa por “ex-padre”.
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As reações dos “pares” eclesiásticos são as normais em casos como este, que ultrapassa as marcas. Em terras de outras dioceses e com outros sacerdotes, a paróquia já tinha ficado ao abandono, o que também não parece desejável. Não se vai à missa em razão do padre, mas em razão de Cristo na pessoa de Quem o padre preside às celebrações.
O Núncio Apostólico pediu aos paroquianos de Canelas, descontentes com a substituição do padre, que retomem o diálogo com o bispo do Porto, adiantou à Lusa, em comunicado, o movimento “Uma Comunidade Reage!”. Segundo a nota, Mons. Rino Passigato aconselhou a população, que domingo após domingo se concentra à porta da igreja em protesto, obrigando o novo pároco a sair escoltado pela GNR, a encontrar com o bispo Dom António Francisco, “com realismo e bom senso”, uma solução “permanente, aceitável e viável” para Canelas. Resta saber se os descontentes permitem as condições para diálogo!
Por seu turno, em declarações recentes à agência Lusa, o secretário da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) disse que o seu conselho permanente manifesta “toda a confiança” nas decisões do bispo do Porto sobre a situação na freguesia de Canelas. O padre Manuel Barbosa frisou que o conselho permanente da CEP, reunido na terça-feira passada em Fátima, manifestou “apoio, comunhão e profunda solidariedade” para com o bispo do Porto, na decisão de substituir o pároco de Canelas, contestada pela população.
Ademais, também o Conselho de Presbíteros da Diocese do Porto emitira oportunamente um comunicado, lido em todas as igrejas da diocese em missa dominical, de “apoio, comunhão e profunda solidariedade” para com o seu bispo.
O senhor Bispo do Porto não merecia ter este escolho logo no início do seu pontificado diocesano na grande e vetusta diocese portuense, a qual não se confina a Canelas, na sua dimensão e profundidade cristãs! Quem tiver a maior responsabilidade, que não se esconda e faça com nobreza o necessário mea culpa

É caso para dizer: Deus nos dê juízo, que idade já nós temos!

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