domingo, 8 de março de 2015

O porquê e para quê dos novos movimentos e partidos políticos

A revista Share Magazine, de março-abril de 2015, traz, a páginas 16 e 17, uma local sobre a razão do surto de novos movimentos e partidos políticos no espectro político, nomeadamente em Espanha e Portugal. A prosa vem subordinada ao título na interrogativa “A voz dos Cidadãos?” e um pós-título assertivo “Em que acreditam as novas alternativas políticas”.
Parece, à primeira vista, que se pretende colocar para uma banda a cidadania e para outra a política. Mas não é bem assim, já que os desiludidos, descontentes ou inconformados – e, tantas vezes, dissidentes – dão corpo a uma onda, que depressa se faz movimento e não raro se transforma em partido político.
Com efeito, a expressão ativa da cidadania não tem de se transformar em expressão política partidária, mas não deixa de ser facto político, como já tive ocasião de o explicar a propósito de um livro de Pedro Tadeu. Assim, distinguir política de cidadania é algo artificioso e pode revelar falta de coragem ou mesmo exprimir a mais deslavada postura de hipocrisia, sobretudo quando se tem medo de mexer na realidade para a transformar ou se nega ser político para não se encontrar misturado ou conotado com os que alegadamente fazem a má política e se aproveitam indevidamente dos cargos que ocupam para obterem vantagens não acessíveis de outro modo.
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Antes de mais, convém distinguir entre movimento e partido.
Um movimento social constitui a forma que permite congregar no seu âmbito uma série de pessoas que, em espírito unitário e sem olhar a outras diferenças, lutam por uma mesma causa. Denomina-se de social em razão da sua natureza coletiva, em torno de interesses grupais ou classistas, e ainda que possam ser agremiação de interesses individuais, nunca é uma simples federação ou extensão de interesses particulares.
Já a um partido cabe o ónus da luta por um projeto abrangente, um programa político coerente que atinja todas as esferas da política. É por isso que representa quer para a luta imediata, quer para o futuro, um projeto alternativo de poder.
Se os movimentos sociais lutam por causas setoriais – e não há nenhuma menoridade nesta função setorial – os partidos políticos lutam pela governança, pelo poder do e sobre o todo.
A grande distinção entre partidos políticos e movimentos sociais é, pois, a do seu conteúdo ou dos fins que perseguem. É certo que alguns dos movimentos, em graus e cambiantes diferentes, transversalizam lutas, congregam diversas causas emancipatórias. São, assim, ricas as experiências de luta em que se encontram e reencontram, em cada luta, os movimentos feministas, os movimentos ecologistas, os movimentos de trabalhadores e os movimentos antibélicos e pacifistas. Porém, quando a abrangência do movimento passa do campo de uma reivindicação social específica para a necessidade de uma alternativa política, esse movimento torna-se político no sentido estrito, não podendo assumir outra forma senão a de partido político.
Todas as demais diferenças entre partidos e movimentos são sobredeterminadas por esta distinção fundamental nos fins, incluindo o formato e a orgânica. Pode, no limite, haver uma quase identidade de princípios e objetivos, mas o escopo do movimento social é fazer reivindicações junto do poder ou assumir-se como contra o poder. O partido, podendo e fazendo tudo isto, tem a função principal de disputar o poder, de querer ser poder.
Um Partido político define-se com um grupo organizado, legalmente formado, com base em formas voluntárias de participação numa associação de interesse público orientada para influenciar ou ocupar o poder político.
A lei portuguesa dos partidos políticos (Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de maio), estabelece os fins dos partidos, em se dá relevo, para lá da ambição de poder, à sua função na pedagogia social e política. São eles:
- Contribuir para o esclarecimento plural e para o exercício das liberdades e direitos políticos dos cidadãos (função pedagógica);  
- Estudar e debater os problemas da vida política, económica, social e cultural, a nível nacional e internacional (no âmbito da investigação e debate);  
- Apresentar programas políticos e preparar programas eleitorais de governo e de administração (no âmbito do poder);  
- Apresentar candidaturas para os órgãos eletivos de representação democrática (no âmbito do poder);  
- Fazer a crítica, designadamente de oposição, à atividade dos órgãos do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e das organizações internacionais de que Portugal seja parte (função crítica e pedagógica e papel de contrapoder);  
- Participar no esclarecimento das questões submetidas a referendo nacional, regional ou local (função pedagógica);    
- Promover a formação e a preparação política de cidadãos para uma participação direta e ativa na vida pública democrática (função pedagógica);  
- Em geral, contribuir para a promoção dos direitos e liberdades fundamentais e o desenvolvimento das instituições democráticas (função pedagógica e papel político).
A mesma lei orgânica dispõe que o reconhecimento, com atribuição da personalidade jurídica, e o início das atividades dum partido político depende de inscrição no registo existente no Tribunal Constitucional (vd art.º 14.º); que a inscrição dum partido político tem de ser requerida por escrito por, pelo menos, 7500 cidadãos eleitores e  acompanhada do projeto de estatutos, da declaração de princípios ou programa político e da denominação, sigla e símbolo do partido, incluindo, em relação a todos os signatários, o nome completo, o número de identificação civil e o de eleitor (vd art.º 15.º); e que, aceite a inscrição, o Tribunal Constitucional envia extrato da decisão, de que consta a verificação da legalidade, juntamente com os estatutos do partido político, para publicação no Diário da República, podendo, a requerimento do Ministério Público, o Tribunal Constitucional, a todo o tempo, apreciar e declarar a ilegalidade de qualquer norma dos estatutos (vd art.º 16.º).  
Por outro lado, em nome do princípio da transparência e segundo o art.º 6.º da referida lei orgânica, os partidos políticos prosseguem publicamente os seus fins. Em conformidade com esta disposição, a divulgação das suas atividades abrange obrigatoriamente: os estatutos; a identidade dos titulares dos órgãos; as declarações de princípios e os programas; e as atividades gerais a nível nacional e internacional. Cabe ainda a cada partido político comunicar ao Tribunal Constitucional, para efeito de anotação, a identidade dos titulares dos seus órgãos nacionais, após a respetiva eleição, assim como os estatutos, as declarações de princípios e o programa, uma vez aprovados ou após cada modificação.  
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O que leva os cidadãos a criar movimentos novos e partidos novos?
Conhecemos a experiência da criação do PRD (Partido Renovador Democrático) sob a égide do então Presidente da Republica, General António dos Santos Ramalho Eanes. Nas eleições legislativas de 1985, alcançou a fatia de 18% dos votos, constituindo um significativo grupo parlamentar, que tomou, em 1987, a iniciativa da censura ao governo minoritário de Cavaco Silva, a que se associou o PS, causando a queda do Governo. Dissolvido o Parlamento e devolvida a palavra aos eleitores, o PRD obteve uma votação residual, o mesmo sucedendo nas eleições autárquicas seguintes.
A desilusão com os partidos tradicionais, sobretudo com o PS, deu um resultado efémero e reforçou, a curto prazo, o PSD, que granjeou duas maiorias absolutas consecutivas e, a médio prazo, o PS conseguiu bons resultados com Guterres e, mais tarde, uma confortável maioria absoluta com Sócrates. De pouco valeu o propósito tão badalado e pouco alcançado de funcionamento em bases diferentes e de moralizar a vida política.
Recentemente, o aburguesamento dos partidos tradicionais, a má relação entre as promessas eleitorais enunciadas e as políticas praticadas, o alinhamento com a inflexibilidade europeia, acompanhado das trágicas práticas austeritárias, o excesso de europeísmo, a diferença entre o justicialismo dos políticos contra os rendimentos e atitudes dos cidadãos em contrate com o seu locupletamento pessoal e partidário, o compadrio, os favorecimentos, a complacência com a gestão danosa de bens coletivos, o desaparecimento milagroso e avassalador de captais, além de outros desmandos, são fatores de desencanto, desmotivação, abstenção, indiferença crassa e desesperança alastrante.
Assim, o Partido Livre, que se apresentou, em 2014, às eleições europeias, representa, nas palavras do seu líder Rui Tavares, “a esquerda que faltava ao país”, pois, era necessário fazer algo “para melhorar o país, pois qualquer dia, não temos um país onde viver”. Por seu turno, o secretário-geral do movimento Tempo de Avançar Daniel Oliveira entende que este é o momento-chave para ambicionar a governação do país. Estas duplas formações políticas, criadas na dissidência do Bloco de Esquerda, assumem-se como espaço que dá voz aos cidadãos (Todos os partidos o afirmam, alegando que promovem a participação ativa de todos, até de independentes!) e coligam-se para, com as próximas eleições legislativas, construírem “uma alternativa política para o país”.
Também o PDR (Partido Democrático Republicano), fundado por Marinho e Pinto e que tem a prosápia de juntar nesta formação incipiente a nomenclatura dos dois partidos norte-americanos e dos dois mais expressivos da nossa I República (Não será ambição demasiada?), tem a sua justificação em não querer “fazer apenas diagnósticos”, mas passar à prescrição terapêutica e à sua aplicação.
Confesso que já me cria tédio a recorrente metaforização clínica do país, feita à esquerda, ao centro e à direita, como se os políticos tivessem uma sólida formação médica em saúde pública.
Seja como for, o político errático ex-bastonário da Ordem dos Advogados (eleito eurodeputado pelo Movimento Partido da Terra, força política que abandonaria relativamente cedo) apresenta o seu novel partido como alternativa aos partidos existentes, já que estes se atribuíram a si mesmos “privilégios inadmissíveis” e cartelizam a política “bloqueando a participação direta dos cidadãos”. Propõe-se então revolucionar o país e atrair a si os ecos da cidadania participativa.
Mais recentemente, a 24 de janeiro, formou-se o movimento Juntos Podemos, que espera reunir as condições para se constituir em partido político. Os seus coordenadores, pela voz de Manuela Magno, acham que “a política está desacreditada”. Esta é a formação política que mais se aproxima do vizinho “Podemos”, do lado de lá da fronteira e que foi considerado a grande surpresa eleitoral em Espanha nas eleições europeias de 2014.
Condenando as estratégias dos últimos governos de Portugal, que apenas cavaram o empobrecimento do país, o Juntos Podemos pretende atrair os cidadãos para um maior envolvimento político ativo.
Embora nem todos estes movimentos e partidos recém-criados em Portugal se revejam no fenómeno Syriza, a revolução eleitoral grega criou neles um novo elã. A situação na Grécia tem, segundo alguns, a força de um recomeço importante no conspecto europeu, a ponto de criar focos de instabilidade no poder estabelecido.
Porém, nas palavras do politólogo António Costa Pinto, “no caso português não surgiu ainda nenhum partido antissistema que tenha derrubado aquilo que é hoje o sistema partidário nacional”.
Muito embora se estejam a criar expectativas fundadas de mudança no panorama político português, persistem as dúvidas quanto à real influência destes fenómenos sociopolíticos na reperspetivação do país, até porque ninguém sabe qual vai ser o desfecho da governação grega.  
Vamos a ver até quando estes movimentos resistem à tentação aparelhística e consequente cartelização burocrática e mandam a “cidadania” ativa e participativa para o limbo que os outros para ela inventaram.

Ao menos, em vez da pressa em se afirmarem como alternativa de poder, poderiam constituir-se em peça importante no esclarecimento plural do exercício das liberdades e direitos políticos dos cidadãos, bem como na formação e na preparação política dos cidadãos para uma participação direta e ativa na vida pública democrática.

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