A revista Share Magazine, de março-abril de 2015, traz, a páginas 16 e 17,
uma local sobre a razão do surto de novos movimentos e partidos políticos no
espectro político, nomeadamente em Espanha e Portugal. A prosa vem subordinada
ao título na interrogativa “A voz dos Cidadãos?” e um pós-título assertivo “Em
que acreditam as novas alternativas políticas”.
Parece, à primeira vista, que se
pretende colocar para uma banda a cidadania e para outra a política. Mas não é
bem assim, já que os desiludidos, descontentes ou inconformados – e, tantas
vezes, dissidentes – dão corpo a uma onda, que depressa se faz movimento e não
raro se transforma em partido político.
Com efeito, a expressão ativa da
cidadania não tem de se transformar em expressão política partidária, mas não
deixa de ser facto político, como já tive ocasião de o explicar a propósito de
um livro de Pedro Tadeu. Assim, distinguir política de cidadania é algo
artificioso e pode revelar falta de coragem ou mesmo exprimir a mais deslavada
postura de hipocrisia, sobretudo quando se tem medo de mexer na realidade para
a transformar ou se nega ser político para não se encontrar misturado ou
conotado com os que alegadamente fazem a má política e se aproveitam
indevidamente dos cargos que ocupam para obterem vantagens não acessíveis de
outro modo.
***
Antes de mais, convém
distinguir entre movimento e partido.
Um movimento social
constitui a forma que permite congregar no seu âmbito uma série de pessoas que,
em espírito unitário e sem olhar a outras diferenças, lutam por uma mesma
causa. Denomina-se de social em razão da sua natureza coletiva, em torno de
interesses grupais ou classistas, e ainda que possam ser agremiação de
interesses individuais, nunca é uma simples federação ou extensão de interesses
particulares.
Já a um partido cabe
o ónus da luta por um projeto abrangente, um programa político coerente que
atinja todas as esferas da política. É por isso que representa quer para a luta
imediata, quer para o futuro, um projeto alternativo de poder.
Se os movimentos
sociais lutam por causas setoriais – e não há nenhuma menoridade nesta função
setorial – os partidos políticos lutam pela governança, pelo poder do e sobre o
todo.
A
grande distinção entre partidos políticos e movimentos sociais é, pois, a do
seu conteúdo ou dos fins que perseguem. É certo que alguns dos movimentos, em graus
e cambiantes diferentes, transversalizam lutas, congregam diversas causas
emancipatórias. São, assim, ricas as experiências de luta em que se encontram e
reencontram, em cada luta, os movimentos feministas, os movimentos ecologistas,
os movimentos de trabalhadores e os movimentos antibélicos e pacifistas. Porém,
quando a abrangência do movimento passa do campo de uma reivindicação social
específica para a necessidade de uma alternativa política, esse movimento torna-se
político no sentido estrito, não podendo assumir outra forma senão a de partido
político.
Todas
as demais diferenças entre partidos e movimentos são sobredeterminadas por esta
distinção fundamental nos fins, incluindo o formato e a orgânica. Pode, no
limite, haver uma quase identidade de princípios e objetivos, mas o escopo do
movimento social é fazer reivindicações junto do poder ou assumir-se como contra
o poder. O partido, podendo e fazendo tudo isto, tem a função principal de
disputar o poder, de querer ser poder.
Um Partido político define-se com um grupo
organizado, legalmente formado, com base em formas voluntárias de participação
numa associação de interesse público orientada para influenciar ou ocupar o
poder político.
A lei portuguesa dos partidos
políticos (Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto, com as alterações introduzidas pela
Lei Orgânica n.º 2/2008, de 14 de maio), estabelece os fins dos
partidos, em se dá relevo, para lá da ambição de poder, à sua função na
pedagogia social e política. São eles:
- Contribuir para o esclarecimento plural e
para o exercício das liberdades e direitos políticos dos cidadãos (função pedagógica);
- Estudar e debater os problemas da vida
política, económica, social e cultural, a nível nacional e internacional (no âmbito da investigação e debate);
- Apresentar programas políticos e preparar
programas eleitorais de governo e de administração (no âmbito do poder);
- Apresentar candidaturas para os órgãos
eletivos de representação democrática (no âmbito do poder);
- Fazer a crítica, designadamente de oposição,
à atividade dos órgãos do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais
e das organizações internacionais de que Portugal seja parte (função crítica e pedagógica e papel de
contrapoder);
- Participar no esclarecimento das questões
submetidas a referendo nacional, regional ou local (função pedagógica);
- Promover a formação e a preparação política
de cidadãos para uma participação direta e ativa na vida pública democrática
(função pedagógica);
- Em geral, contribuir para a promoção dos
direitos e liberdades fundamentais e o desenvolvimento das instituições
democráticas (função
pedagógica e papel político).
A mesma lei orgânica dispõe que o reconhecimento, com atribuição da
personalidade jurídica, e o início das atividades dum partido político depende
de inscrição no registo existente no Tribunal Constitucional (vd art.º 14.º); que a inscrição dum partido
político tem de ser requerida por escrito por, pelo menos, 7500 cidadãos
eleitores e acompanhada do projeto de estatutos, da declaração de
princípios ou programa político e da denominação, sigla e símbolo do partido,
incluindo, em relação a todos os signatários, o nome completo, o número de
identificação civil e o de eleitor (vd art.º 15.º); e que, aceite a inscrição,
o Tribunal Constitucional envia extrato da decisão, de que consta a verificação
da legalidade, juntamente com os estatutos do partido político, para publicação
no Diário da República, podendo, a
requerimento do Ministério Público, o Tribunal Constitucional, a todo o tempo,
apreciar e declarar a ilegalidade de qualquer norma dos estatutos (vd art.º 16.º).
Por outro
lado, em nome do princípio da transparência e segundo o art.º 6.º da referida lei
orgânica, os partidos políticos prosseguem publicamente os seus fins. Em
conformidade com esta disposição, a divulgação das suas atividades abrange
obrigatoriamente: os estatutos; a identidade dos titulares dos
órgãos; as declarações de princípios e os programas; e as atividades
gerais a nível nacional e internacional. Cabe ainda a cada partido político
comunicar ao Tribunal Constitucional, para efeito de anotação, a identidade dos
titulares dos seus órgãos nacionais, após a respetiva eleição, assim como os
estatutos, as declarações de princípios e o programa, uma vez aprovados ou após
cada modificação.
***
O que leva os cidadãos a criar
movimentos novos e partidos novos?
Conhecemos a experiência da
criação do PRD (Partido Renovador Democrático) sob a égide do então Presidente
da Republica, General António dos Santos Ramalho Eanes. Nas eleições
legislativas de 1985, alcançou a fatia de 18% dos votos, constituindo um
significativo grupo parlamentar, que tomou, em 1987, a iniciativa da censura ao
governo minoritário de Cavaco Silva, a que se associou o PS, causando a queda
do Governo. Dissolvido o Parlamento e devolvida a palavra aos eleitores, o PRD
obteve uma votação residual, o mesmo sucedendo nas eleições autárquicas
seguintes.
A desilusão com os partidos
tradicionais, sobretudo com o PS, deu um resultado efémero e reforçou, a curto
prazo, o PSD, que granjeou duas maiorias absolutas consecutivas e, a médio
prazo, o PS conseguiu bons resultados com Guterres e, mais tarde, uma
confortável maioria absoluta com Sócrates. De pouco valeu o propósito tão
badalado e pouco alcançado de funcionamento em bases diferentes e de moralizar
a vida política.
Recentemente, o aburguesamento
dos partidos tradicionais, a má relação entre as promessas eleitorais enunciadas
e as políticas praticadas, o alinhamento com a inflexibilidade europeia,
acompanhado das trágicas práticas austeritárias, o excesso de europeísmo, a diferença
entre o justicialismo dos políticos contra os rendimentos e atitudes dos
cidadãos em contrate com o seu locupletamento pessoal e partidário, o
compadrio, os favorecimentos, a complacência com a gestão danosa de bens
coletivos, o desaparecimento milagroso e avassalador de captais, além de outros
desmandos, são fatores de desencanto, desmotivação, abstenção, indiferença
crassa e desesperança alastrante.
Assim, o Partido Livre, que se apresentou, em 2014, às eleições europeias,
representa, nas palavras do seu líder Rui Tavares, “a esquerda que faltava ao
país”, pois, era necessário fazer algo “para melhorar o país, pois qualquer
dia, não temos um país onde viver”. Por seu turno, o secretário-geral do movimento
Tempo de Avançar Daniel Oliveira entende
que este é o momento-chave para ambicionar a governação do país. Estas duplas formações
políticas, criadas na dissidência do Bloco de Esquerda, assumem-se como espaço
que dá voz aos cidadãos (Todos os partidos o afirmam, alegando
que promovem a participação ativa de todos, até de independentes!) e coligam-se para, com as próximas
eleições legislativas, construírem “uma alternativa política para o país”.
Também o PDR (Partido Democrático Republicano), fundado por Marinho e Pinto e
que tem a prosápia de juntar nesta formação incipiente a nomenclatura dos dois
partidos norte-americanos e dos dois mais expressivos da nossa I República (Não
será ambição demasiada?),
tem a sua justificação em não querer “fazer apenas diagnósticos”, mas passar à prescrição
terapêutica e à sua aplicação.
Confesso que já me cria tédio a recorrente
metaforização clínica do país, feita à esquerda, ao centro e à direita, como se
os políticos tivessem uma sólida formação médica em saúde pública.
Seja como for, o político errático
ex-bastonário da Ordem dos Advogados (eleito eurodeputado
pelo Movimento Partido da Terra, força
política que abandonaria relativamente cedo) apresenta o seu novel partido como alternativa aos
partidos existentes, já que estes se atribuíram a si mesmos “privilégios inadmissíveis”
e cartelizam a política “bloqueando a participação direta dos cidadãos”. Propõe-se
então revolucionar o país e atrair a si os ecos da cidadania participativa.
Mais recentemente, a 24 de
janeiro, formou-se o movimento Juntos Podemos,
que espera reunir as condições para se constituir em partido político. Os seus coordenadores,
pela voz de Manuela Magno, acham que “a política está desacreditada”. Esta é a formação
política que mais se aproxima do vizinho “Podemos”, do lado de lá da fronteira
e que foi considerado a grande surpresa eleitoral em Espanha nas eleições
europeias de 2014.
Condenando as estratégias dos
últimos governos de Portugal, que apenas cavaram o empobrecimento do país, o Juntos Podemos pretende atrair os
cidadãos para um maior envolvimento político ativo.
Embora nem todos estes movimentos
e partidos recém-criados em Portugal se revejam no fenómeno Syriza, a revolução
eleitoral grega criou neles um novo elã. A situação na Grécia tem, segundo
alguns, a força de um recomeço importante no conspecto europeu, a ponto de criar
focos de instabilidade no poder estabelecido.
Porém, nas palavras do politólogo
António Costa Pinto, “no caso português não surgiu ainda nenhum partido
antissistema que tenha derrubado aquilo que é hoje o sistema partidário nacional”.
Muito embora se estejam a criar
expectativas fundadas de mudança no panorama político português, persistem as
dúvidas quanto à real influência destes fenómenos sociopolíticos na
reperspetivação do país, até porque ninguém sabe qual vai ser o desfecho da
governação grega.
Vamos a ver até quando estes
movimentos resistem à tentação aparelhística e consequente cartelização
burocrática e mandam a “cidadania” ativa e participativa para o limbo que os
outros para ela inventaram.
Ao menos, em vez da pressa em se afirmarem
como alternativa de poder, poderiam constituir-se em peça importante no esclarecimento
plural do exercício das liberdades e direitos políticos dos cidadãos, bem como
na formação e na preparação
política dos cidadãos para uma participação direta e ativa na vida pública
democrática.
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