sábado, 21 de março de 2015

Não é lista, é pacote ou bolsa!

Não sei aquilatar da importância prática da distinção entre os vocábulos ocasionalmente contrastantes referenciados em epígrafe, mas o certo é que a evolução noticiosa dos últimos dias faz-me verificar a liquidez daquela conclusão.
A Comunicação Social noticiou largamente a denúncia da existência de uma bolsa de contribuintes VIP pelo Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), com base na informação prestada pelo respetivo formador (um dirigente da Autoridade Tributária e Aduaneira) numa ação de formação para inspetores, reveladora da predita bolsa ou lista.
Depois, sucedeu-se uma série de episódios com alegados desmentidos por parte das entidades ligadas institucionalmente à área – Primeiro-Ministro, Passos Coelho, gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, e Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, António Brigas Afonso – seguidos da reafirmação ainda com mais veemência da existência dessa lista, de que resultaram demissões, não de políticos, mas de técnicos.
Entretanto, a revista Visão on line, no passado dia 18 do corrente mês de março, divulgou no seu site seis gravações áudio em que o diretor dos serviços de auditoria da Administração Tributária, Vítor Lourenço, admitira perante mais de 500 inspetores tributários estagiários em formação a existência de um pacote VIP, que inclui pessoas que ocupam ou ocuparam “cargos políticos” e mais “mediatizadas”.
A fazer fé nas gravações da ação de formação referida, que foram feitas a 20 de janeiro, na Torre do Tombo, e que o Diário Económico transcreveu a 18 de março, a Administração Tributária terá monitorizado, através do seu sistema informático, o acesso de funcionários ao cadastro fiscal de um grupo específico de personalidades públicas. O objetivo de tal monitorização era identificar on line eventuais acessos indevidos.
A Visão acrescenta que a bolsa de contribuintes VIP fora entregue à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) por Paulo Núncio na sequência do caso Tecnoforma, que envolveu o Primeiro-Ministro. Os desmentidos oficiais não desmentem o essencial, ou seja, que há efetivamente uma bolsa de contribuintes VIP. Esta é, com efeito, a questão essencial, vindo logo a seguir a questão de se vir a saber quem a ordenou, quais os objetivos visados e as consequências que dela podem decorrer. Não basta que o Primeiro-Ministro tenha dito na Assembleia da República, no contexto do debate parlamentar quinzenal, que “não há nenhuma bolsa VIP”, já que a bolsa VIP existe e até já foram dados a conhecer alguns dos nomes constantes dessa bolsa. Aliás só Passos Coelho é que negou peremptoriamente a existência da bolsa; os outros não a negam, negam apenas que tenha sido o Secretário de Estado a entregá-la à Autoridade Tributária e Aduaneira ou que ela tenha sido já utilizada.
O “gabinete de Paulo Núncio” (citado pela Visão) desmente apenas parte da questão, ou seja, declara que ele “não entregou qualquer alegada lista de contribuintes VIP à AT no ano passado”. Note-se o pormenor do verbo no pretérito perfeito simples do indicativo e na remissão para o passado pelo modificador do grupo verbal “no ano passado”. Nem uma palavra há sobre a existência da bolsa no presente.
Também o diretor-geral da Autoridade Tributária, António Brigas Afonso,  atira a bola pela linha lateral, negando que “tenha recebido qualquer tipo de lista da parte do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais”. Quer dizer, nega que tenha recebido a lista da parte do governante, mas não desmente a sua existência no presente. E, na Comissão Parlamentar do Orçamento e das Finanças, declarou que a monitorização de alguns contribuintes foi ideia concertada em reunião com outras autoridades tributárias, nomeadamente a dos Estados Unidos. Trata-se, segundo palavras suas, de uma questão grave de segurança, que comparou com o facto de uns precisarem de polícia à porta e outros não. Analogamente, é preciso proteger alguns contribuintes dos acessos indevidos ao seu cadastro fiscal.
De resto, segundo o mesmo dirigente público, foram definidos perfis de acesso ao cadastro fiscal dos contribuintes a que têm de ter acesso quaisquer funcionários no estrito cumprimento da sua missão e no respeito pelos perfis definidos. Informou que, no horizonte de cerca de 12 mil funcionários na “Casa”, a existência de perto de 40 processos disciplinares, apesar de grave, não se pode considerar significativa. Aduziu que em todas as profissões se cometem erros e transgressões e revelou que alguns dos funcionários, ao serem questionados, responderam que simplesmente tinham agido por curiosidade.
Porém, o STI é mais direto e explícito:não há dúvidas de que a lista existe” (…) “se for feito um acesso a determinados contribuintes é disparado um alarme e a pessoa que fez o acesso é notificada para se justificar”.
Esta sucessão de declarações mostra que o discurso do poder é hoje muito pouco transparente e, não raras vezes, deliberadamente enganador, por exemplo, dando como “desmentido” algo que não desmente o essencial das afirmações e as afirmações que lhes deram origem e que era suposto desmentir.
Ora, os rumores sobre a existência de uma “lista VIP” começaram ainda no ano passado, quando se soube dos inquéritos a dois funcionários do Fisco por terem acedido aos dados do primeiro-ministro, depois de o jornal I ter noticiado, em setembro, as informações fiscais de Passos Coelho.
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Penso não ser despicienda uma referência a alguns aspetos para se aferir da leviandade instalada nalguns ambientes que deveriam ser mais respeitáveis e respeitadores, já que o acesso aos dados de qualquer contribuinte só deve ocorrer a pedido do mesmo, por suspeita ou em determinadas épocas do ano previstas para o controlo e acerto de contas (como é ocaso do IRS, IMI, IUC, etc.).
Nunca deve ocorrer por curiosidade, leviandade ou para fins jornalísticos ou comerciais. No caso dos ditos VIP, os casos de irregularidade devem ser presentes aos próprios ou, em caso de despiciência aos competentes serviços Ministérios Público e não a terceiros.
Apesar de avisar que não podia adiantar quais as personalidades que estão na lista, Vítor Lourenço, o responsável pela sobredita ação de formação, avançou os nomes de Cavaco Silva, Passos Coelho, Paulo Portas e Manuel Pinho.
Por exemplo, os dados do Primeiro-Ministro terão sido acedidos por sete pessoas, sem que nenhuma delas tenha admitido a consulta. A folha fiscal do Presidente da República terá sido acedida por uma funcionária da AT e esse acesso terá sido comunicado aos serviços de auditoria. “Queria saber quanto é que ganhava o Presidente da República”, justificou-se.
Segundo Vítor Lourenço, os acessos indevidos detetados tinham uma justificação comum: a mera curiosidade, com a convicção de que não divulgando não havia qualquer problema. “Ficou provado que havia promiscuidade entre passwords”, justificou, dizendo-se sempre mais preocupado com o que “se passará com os contribuintes comuns”.
Como se disse já, a AT criou um pacote associado a pessoas que detêm ou detiveram cargos políticos relevantes. Essas pessoas mais mediatizadas estão identificadas e a AT sabe on line, pelo alerta no centro de informática quem está a ter acesso e se este é indevido. Não pode é divulgar quem integra esse pacote.
O acesso indevido pode acontecer com qualquer contribuinte e, não se tratando contribuinte constante do pacote VIP, não é monitorizado. Em qualquer parte do país um funcionário tem a possibilidade ou a facilidade de entrar na privacidade de qualquer contribuinte sem qualquer fundamento. É que as pessoas estão convencidas de que, não divulgando, não há problema. E este configura um problema de cultura, de ética e de formação das pessoas.
Ora aqui a culpa é da Administração pelo facto de esta mensagem ética e cultural nunca ter sido suficientemente emitida – refere o mencionado formador e verificada e a sua falta sancionada, penso eu.
No entanto, apesar destes abusos (Abusus non tollit usum) – o ex-diretor geral também o declarou na mencionada comissão parlamentar – não se pode deixar de considerar a evidência de que a informática é uma ferramenta de apoio à gestão e, quando as aplicações são concebidas ou encomendadas, estão concebidas ou encomendadas para a operacionalidade. Só que, às vezes, descura-se o controlo interno, a ética, a responsabilidade pelos atos praticados; e reina a curiosidade e o negócio (este sob a capa do jornalismo de investigação e a coberto da preservação das fontes).
E Vítor Lourenço não deixa de recordar que “o sistema de informação da AT assenta em três grandes pilares: confidencialidade, integridade e disponibilidade”; de reconhecer que, por força dos casos conhecidos, a AT está longe de atingir a perfeição na confidencialidade, de atingir a perfeição da integridade, de atingir a perfeição na disponibilidade; e de que está a dar passos largos no sentido de melhorar a segurança nos pilares dos sistemas de informação.
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Entretanto, o Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, António Brigas Afonso, ao ter conhecimento do impacto que a situação teve na opinião pública apresentou o seu pedido de demissão, que foi aceite de imediato. A seguir, ocorreu a demissão do Subdiretor-geral dos Impostos, José Maria Pires. Ao contrário, Paulo Núncio, apesar das vozes críticas do seu partido (CDS), tem a manifesta confiança do Primeiro-Ministro. E foi nomeada uma Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, nova Helena Borges.
Finalmente, Paulo Núncio e os demitidos, bem como o Presidente do STI e Vítor Lourenço foram ouvidos na Comissão Parlamentar do Orçamento e das Finanças e as conclusões apontam para aquilo que o I on line dizia no passado dia 19: “A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não tem uma lista, mas um “pacote VIP” de contribuintes associado a políticos”.
Não me parece descabido então distinguir lista, bolsa e pacote. Segundo o Dicionário de Língua Portuguesa, da Porto Editora, podemos fazer as seguintes verificações:
Lista – Tira comprida e estreita de pano ou papel; risca em tecido de cor diferente da do fundo, listra; risca de pelos, em certos animais, mais escuros que a pelagem geral; conjunto de nomes de pessoas ou coisas, uns a seguir aos outros e segundo uma determinada ordem, rol, listagem; relação de pratos disponíveis para refeição, com os respetivos preços nos restaurantes, ementa, cardápio; relação oficial dos números da lotaria.
Bolsa – Saco (de material diverso) para transportar ou guardar qualquer coisa; mala de mão (de material diverso) para transportar objetos de uso pessoal; carteira para o dinheiro; saca pequena (de material diverso) fechada por meio de cordões; dinheiro para despesas correntes; (economia) instituição pública onde são negociados valores; (militar) saliência na linha da frente do combate, espaço onde os militares se encontram cercados; (anatomia) cavidade em forma de saco.
Pacote – Invólucro de papel (ou outro material) para conter, proteger ou transportar mercadorias; conjunto de unidades contidas num embrulho; conjunto de produtos ou bens negociados em conjunto; conjunto de medidas (económicas, sociais, políticas, legislativas, etc.); (televisão) conjunto de programas vendidos por uma emissora ou seus produtores a outra estação, a preço geralmente mais reduzido.
Assim, além do exposto, a partir do dicionário, e por analogia, temos listas telefónicas, listas de compras, listas de casamento, listas de prendas, listas de tarefas, listas negras, listas de espera, listas eleitorais…; temos, além de abrirmos os cordões à bolsa, bolsa de valores, bolsa de corretores, bolsa de classificadores/corretores, bolsa de suplentes, bolsa de substitutos, bolsa de turismo, bolsa das águas, bolsa de emprego, bolsa de estudo, bolsa do fel, bolsa do ferrado…; pacotes de férias, pacotes de viagens, pacotes financeiros, pacotes laborais, pacotes de serviços das operadoras de comunicação e telecomunicação, pacotes financeiros.
Porém, estava longe de saber que se bolsavam políticos e contribuintes, nem sabia que se empacotavam contribuintes, embora soubesse que a cada passo estes são bem embrulhados!
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Ora, os comentadores partiram quase todos do mesmo princípio: uma lista com políticos, economistas e outros contribuintes mediáticos violar o princípio da igualdade. Para a maioria das pessoas que já se pronunciaram sobre o assunto a existência de uma “lista” ou “pacote VIP” de contribuintes, cujos acessos aos dados fiscais fazem soar os alarmes informáticos, não é legal. José Azevedo Pereira, antigo diretor-geral da Autoridade Tributária (AT), já disse que a haver uma lista restrita com contribuintes mediáticos esta seria ilegal e o próprio primeiro-ministro garante que o governo nunca “admitiria que uma lista ou um procedimento dessa natureza pudesse existir na Autoridade Tributária”. Mas há juristas que têm uma posição contrária. E mais: até a entendem, na linha do ex-diretor-geral, como uma proteção dos contribuintes mais expostos ao círculo mediático.
Se fôssemos só pelo lado da igualdade, esqueceríamos, penso eu, o requisito da especificação, que também é importante. Por isso, igualdade, confidencialidade, discrição, disponibilidade, especificação, ética e operacionalidade – tudo isto são valores a ter em conta na administração.
É mau o fisco e serviços de igual relevância darem conhecimento a terceiros (que não ao MP, se for o caso) da situação fiscal de qualquer contribuinte. Porém, o contribuinte “empacotado”, que se sentiu indevida e publicamente “desempacotado” não tem de negar ou esconder a situação nem pode refugiar-se em meia explicação. Explica, repara, se for ocaso, e age disciplinar ou judicialmente contra quem agiu abusivamente.

No Estado de Direito, a lei respeita-se, os factos são assumidos, as responsabilidades são apuradas, as transgressões são punidas e as ideias e situações são debatidas com franqueza e respeito.

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