Não
sei aquilatar da importância prática da distinção entre os vocábulos
ocasionalmente contrastantes referenciados em epígrafe, mas o certo é que a
evolução noticiosa dos últimos dias faz-me verificar a liquidez daquela conclusão.
A
Comunicação Social noticiou largamente a denúncia da existência de uma bolsa de
contribuintes VIP pelo Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), com base na informação
prestada pelo respetivo formador (um dirigente da
Autoridade Tributária e Aduaneira)
numa ação de formação para inspetores, reveladora da predita bolsa ou lista.
Depois, sucedeu-se uma série de episódios com alegados
desmentidos por parte das entidades ligadas institucionalmente à área –
Primeiro-Ministro, Passos Coelho, gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos
Fiscais, Paulo Núncio, e Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira,
António Brigas Afonso – seguidos da reafirmação ainda com mais veemência da
existência dessa lista, de que resultaram demissões, não de políticos, mas de
técnicos.
Entretanto, a revista Visão
on line, no passado dia 18 do corrente mês de março, divulgou no seu site seis gravações áudio em que o
diretor dos serviços de auditoria da Administração Tributária, Vítor Lourenço,
admitira perante mais de 500 inspetores tributários estagiários em formação a
existência de um pacote VIP, que inclui pessoas que ocupam ou ocuparam “cargos
políticos” e mais “mediatizadas”.
A fazer fé nas gravações da ação de formação referida, que
foram feitas a 20 de janeiro, na Torre do Tombo, e que o Diário Económico transcreveu a 18 de março, a Administração
Tributária terá monitorizado, através do seu sistema informático, o acesso de
funcionários ao cadastro fiscal de um grupo específico de personalidades
públicas. O objetivo de tal monitorização era identificar on line eventuais acessos indevidos.
A Visão acrescenta
que a bolsa de contribuintes VIP fora entregue à Autoridade Tributária e Aduaneira
(AT) por Paulo Núncio na sequência do
caso Tecnoforma, que envolveu o Primeiro-Ministro. Os desmentidos oficiais não
desmentem o essencial, ou seja, que há efetivamente uma bolsa de contribuintes
VIP. Esta é, com efeito, a questão essencial, vindo logo a seguir a questão de
se vir a saber quem a ordenou, quais os objetivos visados e as consequências
que dela podem decorrer. Não basta que o Primeiro-Ministro tenha dito na
Assembleia da República, no contexto do debate parlamentar quinzenal, que “não há nenhuma bolsa VIP”, já que a
bolsa VIP existe e até já foram dados a conhecer alguns dos nomes constantes
dessa bolsa. Aliás só Passos Coelho é que negou peremptoriamente a existência
da bolsa; os outros não a negam, negam apenas que tenha sido o Secretário de
Estado a entregá-la à Autoridade Tributária e Aduaneira ou que ela tenha sido
já utilizada.
O “gabinete de Paulo Núncio” (citado pela Visão) desmente apenas parte da questão,
ou seja, declara que ele “não entregou qualquer alegada
lista de contribuintes VIP à AT no ano passado”. Note-se o pormenor do verbo no
pretérito perfeito simples do indicativo e na remissão para o passado pelo
modificador do grupo verbal “no ano passado”. Nem uma palavra há sobre a
existência da bolsa no presente.
Também o diretor-geral da Autoridade Tributária, António Brigas
Afonso, atira a bola pela linha lateral, negando que “tenha recebido qualquer tipo de lista da parte do Secretário de Estado
dos Assuntos Fiscais”. Quer dizer, nega que tenha
recebido a lista da parte do governante, mas não desmente a sua existência no
presente. E, na Comissão Parlamentar do Orçamento e das Finanças, declarou que
a monitorização de alguns contribuintes foi ideia concertada em reunião com
outras autoridades tributárias, nomeadamente a dos Estados Unidos. Trata-se,
segundo palavras suas, de uma questão grave de segurança, que comparou com o
facto de uns precisarem de polícia à porta e outros não. Analogamente, é
preciso proteger alguns contribuintes dos acessos indevidos ao seu cadastro
fiscal.
De resto, segundo o mesmo dirigente público, foram definidos
perfis de acesso ao cadastro fiscal dos contribuintes a que têm de ter acesso
quaisquer funcionários no estrito cumprimento da sua missão e no respeito pelos
perfis definidos. Informou que, no horizonte de cerca de 12 mil funcionários na
“Casa”, a existência de perto de 40 processos disciplinares, apesar de grave,
não se pode considerar significativa. Aduziu que em todas as profissões se cometem
erros e transgressões e revelou que alguns dos funcionários, ao serem
questionados, responderam que simplesmente tinham agido por curiosidade.
Porém, o STI é mais direto e explícito: “não há dúvidas de que a lista
existe” (…) “se for feito um acesso a determinados contribuintes é disparado um
alarme e a pessoa que fez o acesso é notificada para se justificar”.
Esta sucessão de declarações mostra que o discurso do poder é
hoje muito pouco transparente e, não raras vezes, deliberadamente enganador,
por exemplo, dando como “desmentido” algo que não desmente o essencial das
afirmações e as afirmações que lhes deram origem e que era suposto desmentir.
Ora, os rumores sobre a existência de uma “lista VIP” começaram ainda no
ano passado, quando se soube dos inquéritos a dois funcionários do Fisco por
terem acedido aos dados do primeiro-ministro, depois de o jornal I ter noticiado, em setembro, as
informações fiscais de Passos Coelho.
***
Penso não ser despicienda uma referência a alguns aspetos
para se aferir da leviandade instalada nalguns ambientes que deveriam ser mais
respeitáveis e respeitadores, já que o acesso aos dados de qualquer
contribuinte só deve ocorrer a pedido do mesmo, por suspeita ou em determinadas
épocas do ano previstas para o controlo e acerto de contas (como é ocaso do IRS, IMI, IUC, etc.).
Nunca deve ocorrer por curiosidade, leviandade ou para fins jornalísticos
ou comerciais. No caso dos ditos VIP, os casos de irregularidade devem ser presentes
aos próprios ou, em caso de despiciência aos competentes serviços Ministérios Público
e não a terceiros.
Apesar de avisar que não podia adiantar
quais as personalidades que estão na lista, Vítor Lourenço, o responsável pela
sobredita ação de formação, avançou os nomes de Cavaco Silva, Passos Coelho,
Paulo Portas e Manuel Pinho.
Por exemplo, os dados do Primeiro-Ministro terão
sido acedidos por sete pessoas, sem que nenhuma delas tenha admitido a
consulta. A folha fiscal do Presidente da República terá sido acedida por uma
funcionária da AT e esse acesso terá sido comunicado aos serviços de auditoria.
“Queria saber quanto é que ganhava o Presidente da República”, justificou-se.
Segundo Vítor Lourenço, os acessos indevidos
detetados tinham uma justificação comum: a mera curiosidade, com a convicção de
que não divulgando não havia qualquer problema. “Ficou provado que havia
promiscuidade entre passwords”, justificou, dizendo-se sempre mais preocupado
com o que “se passará com os contribuintes comuns”.
Como se disse já, a AT criou um pacote associado
a pessoas que detêm ou detiveram cargos políticos relevantes. Essas pessoas
mais mediatizadas estão identificadas e a AT sabe on line, pelo alerta no centro de informática quem está a ter acesso e se este é indevido. Não pode é divulgar
quem integra esse pacote.
O acesso indevido pode acontecer com
qualquer contribuinte e, não se tratando contribuinte constante do pacote VIP,
não é monitorizado. Em qualquer parte do país um funcionário tem a
possibilidade ou a facilidade de entrar na privacidade de qualquer contribuinte
sem qualquer fundamento. É que as pessoas estão convencidas de que, não
divulgando, não há problema. E este configura um problema de cultura, de ética
e de formação das pessoas.
Ora aqui a culpa é da Administração pelo
facto de esta mensagem ética e cultural nunca ter sido suficientemente emitida
– refere o mencionado formador e verificada e a sua falta sancionada, penso eu.
No entanto, apesar destes abusos (Abusus non tollit usum) – o ex-diretor geral também o
declarou na mencionada comissão parlamentar – não se pode deixar de considerar
a evidência de que a informática é uma ferramenta de apoio à gestão e, quando
as aplicações são concebidas ou encomendadas, estão concebidas ou encomendadas para
a operacionalidade. Só que, às vezes, descura-se o controlo interno, a ética, a
responsabilidade pelos atos praticados; e reina a curiosidade e o negócio (este sob a capa do
jornalismo de investigação e a coberto da preservação das fontes).
E Vítor Lourenço não deixa de recordar que
“o sistema de informação da AT assenta em três grandes pilares:
confidencialidade, integridade e disponibilidade”; de reconhecer que, por força
dos casos conhecidos, a AT está longe de atingir a perfeição na
confidencialidade, de atingir a perfeição da integridade, de atingir a
perfeição na disponibilidade; e de que está a dar passos largos no sentido de
melhorar a segurança nos pilares dos sistemas de informação.
***
Entretanto, o Diretor-Geral da Autoridade Tributária e
Aduaneira, António Brigas Afonso, ao ter conhecimento do impacto que a situação
teve na opinião pública apresentou o seu pedido de demissão, que foi aceite de
imediato. A seguir, ocorreu a demissão do Subdiretor-geral dos Impostos, José
Maria Pires. Ao contrário, Paulo Núncio, apesar das vozes críticas do seu
partido (CDS), tem a manifesta confiança do
Primeiro-Ministro. E foi nomeada uma Diretora-Geral da Autoridade Tributária e
Aduaneira, nova Helena Borges.
Finalmente, Paulo Núncio e os demitidos, bem como o
Presidente do STI e Vítor Lourenço foram ouvidos na Comissão Parlamentar do Orçamento
e das Finanças e as conclusões apontam para aquilo que o I on line dizia no passado dia 19: “A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não
tem uma lista, mas um “pacote VIP” de contribuintes associado a políticos”.
Não me parece descabido então distinguir lista,
bolsa e pacote. Segundo o Dicionário de
Língua Portuguesa, da Porto Editora, podemos fazer as seguintes verificações:
Lista – Tira comprida e estreita de pano ou papel; risca em tecido
de cor diferente da do fundo, listra; risca de pelos, em certos animais, mais
escuros que a pelagem geral; conjunto de nomes de pessoas ou coisas, uns a
seguir aos outros e segundo uma determinada ordem, rol, listagem; relação de pratos
disponíveis para refeição, com os respetivos preços nos restaurantes, ementa,
cardápio; relação oficial dos números da lotaria.
Bolsa – Saco (de material diverso) para transportar ou guardar qualquer
coisa; mala de mão (de material diverso) para transportar objetos de uso pessoal;
carteira para o dinheiro; saca pequena (de material diverso) fechada por meio de cordões; dinheiro
para despesas correntes; (economia) instituição pública
onde são negociados valores; (militar) saliência na linha da frente
do combate, espaço onde os militares se encontram cercados; (anatomia) cavidade em forma
de saco.
Pacote – Invólucro de papel (ou outro material) para conter, proteger ou
transportar mercadorias; conjunto de unidades contidas num embrulho; conjunto
de produtos ou bens negociados em conjunto; conjunto de medidas (económicas, sociais,
políticas, legislativas, etc.); (televisão) conjunto de programas
vendidos por uma emissora ou seus produtores a outra estação, a preço
geralmente mais reduzido.
Assim, além do exposto, a partir do dicionário, e
por analogia, temos listas telefónicas, listas de compras, listas de casamento,
listas de prendas, listas de tarefas, listas negras, listas de espera, listas
eleitorais…; temos, além de abrirmos os cordões à bolsa, bolsa de valores,
bolsa de corretores, bolsa de classificadores/corretores, bolsa de suplentes, bolsa
de substitutos, bolsa de turismo, bolsa das águas, bolsa de emprego, bolsa de
estudo, bolsa do fel, bolsa do ferrado…; pacotes de férias, pacotes de viagens,
pacotes financeiros, pacotes laborais, pacotes de serviços das operadoras de
comunicação e telecomunicação, pacotes financeiros.
Porém, estava longe de saber que se bolsavam
políticos e contribuintes, nem sabia que se empacotavam contribuintes, embora
soubesse que a cada passo estes são bem embrulhados!
***
Ora, os comentadores partiram quase todos do
mesmo princípio: uma lista com políticos, economistas e outros contribuintes
mediáticos violar o princípio da igualdade. Para a maioria das pessoas que já se pronunciaram sobre
o assunto a existência de uma “lista” ou “pacote VIP” de contribuintes, cujos
acessos aos dados fiscais fazem soar os alarmes informáticos, não é legal. José
Azevedo Pereira, antigo diretor-geral da Autoridade Tributária (AT), já disse
que a haver uma lista restrita com contribuintes mediáticos esta seria ilegal e
o próprio primeiro-ministro garante que o governo nunca “admitiria que uma
lista ou um procedimento dessa natureza pudesse existir na Autoridade
Tributária”. Mas há juristas que têm uma posição contrária. E mais: até a entendem, na linha do
ex-diretor-geral, como uma proteção dos contribuintes mais expostos ao círculo
mediático.
Se fôssemos só pelo lado da igualdade,
esqueceríamos, penso eu, o requisito da especificação, que também é importante.
Por isso, igualdade, confidencialidade, discrição, disponibilidade, especificação,
ética e operacionalidade – tudo isto são valores a ter em conta na administração.
É mau o fisco e serviços de igual relevância darem
conhecimento a terceiros (que não ao MP,
se for o caso) da situação fiscal de qualquer contribuinte. Porém,
o contribuinte “empacotado”, que se sentiu indevida e publicamente “desempacotado”
não tem de negar ou esconder a situação nem pode refugiar-se em meia explicação.
Explica, repara, se for ocaso, e age disciplinar ou judicialmente contra quem agiu
abusivamente.
No Estado de Direito, a lei respeita-se, os
factos são assumidos, as responsabilidades são apuradas, as transgressões são punidas
e as ideias e situações são debatidas com franqueza e respeito.
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