quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A glória de Deus é amor que se faz serviço, não poder de dominação

 

Disse-o o Papa Francisco no seu comentário ao Evangelho do 29.º domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 10,35-45), no passado dia 17, antes da recitação da oração mariana Angelus com os peregrinos e fiéis reunidos na Praça de São Pedro.

Dois dos discípulos Tiago e João, os Boanerges ou filhos do Trovão (ou seja, homens justos), movidos pela ambição do poder pediram ao Senhor a dita de um dia se sentarem junto d’Ele na glória (um à direita e outro à esquerda) a jeito de primeiros-ministros ou cargo equivalente. Os outros, ao ouvirem-nos a fazer tal pedido, indignaram-se. Com efeito, os dois estavam a formular o pedido que todos queriam fazer, mas tinham medo de falar. Porém, Jesus aproveita o ensejo para um ensinamento paciente. Questiona os dois sobre a sua capacidade de beber do cálice que Ele vai beber e de receber o Batismo que Ele vai receber. Eles respondem que ‘sim’. Jesus promete que beberão do predito cálice e receberão tal Batismo, mas avisa que não Lhe compete destinar os lugares junto de Si. E a todos ensina que a verdadeira glória não está em elevar-se sobre os demais, mas em receber e viver o Batismo que Ele receberá brevemente em Jerusalém.

O Santo Padre frisa que o termo ‘batismo’ significa ‘imersão’. De facto, na Paixão, o Senhor submergiu-se na morte, oferecendo a vida para nos salvar. Por isso, a sua glória é amor que se faz serviço, não poder que anele o domínio. Neste sentido, Jesus conclui: “Quem quiser ser grande entre vós, seja vosso servidor(“hòs àn thélê mégas genésthai en hymîn, éstai hymôn diákonos”: Mc 10,43). Quer dizer: para ser grande, é preciso enveredar pelo caminho do serviço aos outros.

São lógicas diferentes – diz o Papa – os discípulos querem emergir e Jesus quer submergir-Se. O primeiro verbo exprime a mentalidade humana que leva a viver tudo, incindo as relações, em função da ambição, êxito, poder, lugares de destaque – o que pode converter-se em enfermidade do espírito, mesmo que disfarçada de aparente boa intenção e efetivas boas obras. Depois, o verbo ‘submergir-se’ carrega a lógica de Jesus, contraposta à lógica mundana: em vez de trepar sobre os demais, importa descer do pedestal e servi-los. E esta submersão, no dizer de Francisco, postula a compaixão para com as pessoas que sofrem a fome, a doença e outras carências. É preciso ter em conta que estamos perante pessoas e não nos limitarmos a despachá-las com um pouco de comida, um agasalho, um medicamento…

Se olharmos o Senhor Crucificado, como sugere o Papa, submerso até ao fundo na nossa história ferida, descobriremos o jeito de atuação de Deus: Deus é amor e o amor é humilde, não se eleva, mas desce, como a chuva a cair na terra e a trazer vida, ou como Jesus fez, lavando os pés aos discípulos. Este alinhamento pela lógica de Jesus requer compromisso da nossa parte, mas que não é suficiente. Para que o compromisso resulte, contamos com a força que nos ajuda: a graça do Batismo, da imersão, de Jesus, que afinal já recebemos e que “nos dirige, nos impulsiona a segui-Lo, a não buscar o nosso interesse, mas a pormo-nos ao serviço.

É graça, fogo que o Espírito acendeu em nós, que se deve alimentar com a oração e a ação. Maria, a humilde serva do Senhor que, sendo a maior, não quis emergir, está completamente imersa ao nosso serviço para nos ajudar a encontrar Jesus.

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A dominga em referência oferece-nos um pequeno extrato (Is 53,10-11) do “Quarto Canto do Servo de Javé”. O trecho pertence ao “Livro da Consolação” do Deuteroisaías (cf Is 40-55). Deuteroisaías é designação com que os biblistas indicam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu – na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do Exílio (entre 550 e 539 a.C.) – a missão profética de consolar os exilados. Assim, começou por anunciar a iminente libertação e comparar a saída da Babilónia ao Êxodo, em que Deus libertou o Povo da escravidão do Egito (cf Is 40-48); depois, anunciou a reconstrução de Jerusalém, a cidade que a guerra reduziu a cinza, mas a que Deus fará regressar a alegria e a paz sem fim (cf Is 49-55).

Todavia, nesta “consoladora”, proposta aparecem 4 cânticos (cf Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem a esta temática. Falam, antes, duma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Javé”, um predileto a quem Deus chamou, confiou uma missão profética e enviou aos homens de todo o mundo. Cumpre a missão no sofrimento e na entrega incondicional à Palavra. Tem, contudo, o sofrimento do profeta um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo. Por isso, Deus aprecia o sacrifício deste Servo e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos detratores e adversários.

Colocam-se várias hipóteses sobre a identidade deste profeta: Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra; o próprio Deuteroisaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio; um profeta desconhecido; uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, mas que se mantém a testemunhar Deus no meio das outras nações; ou uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de modo a representar o Povo de Deus na sua totalidade. No entanto, a figura emergente nesses poemas receberá fulgurante iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino. E, no trecho em causa, o Servo não fala. Quem proclama o cântico parece ser um coro, que percebeu, no aparente sem sentido da vida do Servo, o profundo significado da lógica de Deus.

A primeira parte do trecho (Is 53,2-3) apresenta-nos o Servo de Javé. Não se diz quem é, quem são os seus pais ou qual é a sua terra. É figura anónima, sem história, insignificante à luz dos critérios humanos. O profeta compara-o a uma raiz crescida no deserto, marcada pela aridez do ambiente circundante, sem beleza e sem caraterísticas que atraiam o olhar ou a atenção dos homens (Is 53,2). É figura desprezada e abandonada pelos homens, que veem o seu sofrimento como castigo de Deus e tapam o rosto diante dele para não se contaminarem (Is 53,3). Numa época em que o sofrimento é visto como castigo pelo pecado, o sofrimento desse Servo devia aparecer aos olhos dos concidadãos como castigo de Deus para faltas muito graves. Assim, à luz dos critérios de avaliação humanos, o Servo é um fracassado, um vencido, um ser trágico, abandonado por Deus e desprezado pelos homens, que nunca será contado entre os grandes, os vencedores, os que têm preponderância na construção do mundo e da história.

Todavia, na lógica de Deus, a existência do Servo não é insignificante, perdida… O sofrimento que o atingiu ao longo de toda a existência não é castigo de Deus por causa dos seus pecados pessoais, mas sacrifício de reparação que justificará os pecados de muitos. O termo ‘reparação’ utilizado pelo Deuteroisaías, um termo cúltico por excelência, remete para um ritual sacrificial em que o crente veterotestamentário oferecia um animal em sacrifício e, por tal oferta, obtinha de Deus o perdão dos pecados. Ao dizer que o sofrimento do Servo é sacrifício de reparação, o profeta porfia que tal sofrimento não é castigo, nem inutilidade, mas um sofrimento que serve para eliminar o pecado e gerar vida nova para toda a comunidade do Povo de Deus (os muitos de que fala o texto). Ao abençoar o Servo e dar-lhe ‘uma posteridade duradoura’, uma ‘vida longa’ (v. 10) e a possibilidade de “ver a luz” (Is 53,11), Deus garante a verdade e a autenticidade da vida do Servo. Dito de outro modo, o autor do texto está convicto de que a vida vivida na simplicidade, humildade, sacrifício, entrega e dom de si não é, aos olhos de Deus, vida maldita, perdida, fracassada, mas é vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação, verdade, esperança e amor ao mundo e aos homens.

Assim, os primeiros cristãos, impressionados pela beleza e profundidade do texto – e convictos de que Deus não nos salva do sofrimento, mas nos salva no e pelo sofrimento – utilizaram-no frequentemente para procurar compreender a figura de Jesus, que “morreu pela salvação do povo”. N’Ele, a enigmática figura do Servo de Javé atingiu pleno significado.

E Dom António Couto, considerando o dizer de Deus “o justo, meu Servo justificará muitos”, fala do profeta ‘profetizado’, o profeta-servo que não fala, mas que é falado: fala dele Deus (Is 52,13-15; 53,11-12) e falamos nós dele (Is 53,1-10). Reconhecemos que as suas chagas não são o castigo merecido, mas a cura para a nossa malvadez e, entrando-nos pelos olhos, “são a imagem do que há dentro de nós”. Mirando aquelas chagas, reconhecemos que “foi a nossa violência e malvadez que as produziu”. Porém, temos à mão o remédio:

Deus apresenta-O como Aquele que, entregando a sua vida à nossa violência, atravessa a nossa violência, não combatendo-a com mais violência, o que só aumentaria o caudal da violência, mas absorvendo-a e sofrendo-a, e abraçando-a, dissolvendo-a e absolvendo-a por amor: é assim que nos justifica, isto é, nos transforma de pecadores em justos: milagre do perdão e da recriação do nosso Deus”.

O quarto Cântico do Servo de Javé leva-nos ao caminho de Jesus e dos discípulos para Jerusalém. Obviamente os Boanerges vão no caminho desde o princípio, mas agora, prestes a chegar ao fim fazem ao Mestre (“didáskalos) um estranho pedido: querem sentar-se na glória um à direita e outro à esquerda. Enfim, vão no caminho, mas querem sentar-se, não em qualquer sítio do caminho, mas em lugares de relevo. Os outros Dez ficaram indignados, não por censura ao pedido feito pelos dois irmãos, mas porque pensavam o mesmo e se viram antecipados.

Jesus, entretanto, dá a lição que os dois merecem e, depois, chama-os todos para si para lhes dizer ao coração que os chefes deste mundo mandam e tiranizam e tiram a vida, mas os que servem dão a vida por amor.

Assim, no caminho, Jesus afirma-se como o genuíno Mestre pró-ativo: sabe o caminho, ensina o caminho, faz o caminho e é o Caminho. De facto, Ele veio para servir e dar a vida por amor.

Ora, não podemos continuar apenas a fazer que seguimos Jesus no caminho, tendo em conta só os nossos interesses e olhando este mundo com indiferença e calculismo. É, ao invés, forçoso que mudemos de atitude, deixando imprimir no nosso coração e no nosso rosto o estilo de vida de Jesus: pobre, despojado, feliz, apaixonado, ousado, próximo e dedicado.

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Em consonância com os preditos extratos de Isaías e de Marcos vem o trecho da Carta aos Hebreus (Heb 4,14-16) sobre “Jesus, o grande sumo-sacerdote”, para todos os crentes, que “atravessou os céus” para alcançar misericórdia para todos (Heb 4 14). “Atravessou os céus” é expressão que se refere à incarnação: Jesus, o Filho de Deus, veio ao encontro dos homens como sumo-sacerdote para eliminar o pecado que impedia a comunhão entre os homens e Deus e levar os homens ao encontro de Deus. Evoca-se o esforço de Deus, através do seu Filho, para refazer a comunidade de vida com os homens e os reconduzir ao encontro da verdadeira vida.

Face a esta inefável ação de Deus, fruto do seu amor pelo homem, os crentes devem responder com a fé, ou seja, aceitando incondicionalmente a proposta de Jesus (“conservemos firme a fé que professamos”), que nos faz reentrar na comunhão com Deus, assumindo-nos como família de Deus, na qual recebemos de Deus a vida em abundância. Com efeito, apesar de Filho de Deus, Jesus não é um ser celestial estranho, incapaz de perceber os crentes na dramática luta de todos os dias, na fragilidade face à perseguição, na dificuldade em vencer o confronto com o egoísmo e a acomodação. Ele próprio foi submetido à mesma prova, conheceu a mordedura das mesmas tentações, experimentou as mesmas dificuldades. Não obstante, soube manter-Se fiel ao Pai e ao seu desígnio, mostrando que podemos viver na fidelidade a Deus e à sua vontade (Heb 1,15).

Os seguidores de Jesus não estão em situação desesperada, apesar das falhas e incoerências. Podem e devem aceitar Jesus e dirigir-se a Deus, certos de que Ele os acolhe como filhos muito amados. Graças a Jesus, que veio ao nosso encontro, experimentou e entendeu a nossa fragilidade, restabeleceu a comunhão entre nós e Deus, nos leva ao encontro de Deus e nos garante a sua misericórdia, estamos na nova situação de graça e de liberdade. Podemos, com tranquilidade e confiança, aproximar-nos desse trono da graça donde brota a vida. Esta certeza ajuda-nos e dá-nos esperança nos momentos dramáticos da nossa caminhada pela história (Heb 4,16). Importa que não saiamos do caminho, nem tentemos sentar-nos fora do caminho, muito menos em lugares de destaque acima dos outros. Servir é o lema e há de ser o estilo e a prática.

Para tanto, é bom rezar ou cantar com o Salmo 33 “Desça sobre nós a vossa misericórdia”, e contemplar com encanto o rosto do novo sumo-sacerdote, Jesus, Filho de Deus, posto por escrito diante dos nossos olhos no trono da Cruz (cf Gl 3,1), para O contemplarmos de novo em rosto desfigurado pela nossa violência e malvadez, a par da ternura daquele olhar de graça, que nos redime e salva.

2021.10.20 – Louro de Carvalho

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