A escritora moçambicana Paulina Chiziane é a vencedora
do Prémio Camões 2021, numa escolha feita por unanimidade, como anunciou, a 20
de outubro a portuguesa Graça Fonseca, Ministra da Cultura.
“No seguimento
da reunião do júri da 33.ª edição do Prémio Camões, que decorreu no dia 20 de
outubro, a Ministra da Cultura anuncia que o Prémio Camões 2021 foi atribuído à
escritora moçambicana Paulina Chiziane”, lê-se na nota informativa adrede divulgada,
onde também se lê que “o júri decidiu por
unanimidade atribuir o Prémio à escritora moçambicana Paulina Chiziane,
destacando a sua vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento
académico e institucional da sua obra”.
O júri referiu a importância que dedica nos seus
livros aos problemas da mulher moçambicana e africana, tal como sublinhou o seu
trabalho recente de aproximação aos jovens, nomeadamente na construção de
pontes entre a literatura e outras artes.
Paulina Chiziane “está
traduzida em muitos países e é hoje uma das vozes da ficção africana mais
conhecidas internacionalmente, tendo já recebido vários prémios e condecorações”,
conclui a mensagem.
O júri desta 33.ª edição do Prémio Camões foi
constituído pelos professores universitários Ana Martinho e Carlos Mendes de
Sousa (Portugal), pelo escritor e investigador Jorge Alves de Lima e
pelo professor universitário Raul César Fernandes (Brasil), e pelos escritores Tony Tcheka (Guiné-Bissau) e Teresa Manjate (Moçambique).
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Paulina Chiziane, atualmente com 66 anos de idade,
nasceu em Manjacaze, Moçambique, em 1955,
cresceu nos subúrbios da cidade de Maputo, à época colonial denominada Lourenço
Marques, cidade onde estudou
Linguística em Maputo. Atualmente vive e trabalha na Zambézia. Na juventude ainda militou
na Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), mas acabaria por se desvincular
em desacordo com uma série de posições adotadas pelo partido na
pós-independência, deixando assim a atividade partidária ativa e começando a
dedicar-se mais exclusivamente à literatura.
Como ficcionista, inicia-se na escrita literária publicando
vários contos na imprensa e publicou o seu primeiro romance, “Balada de Amor ao Vento” (1990), depois da independência do país, que é também o
primeiro romance de uma mulher moçambicana.
“Ventos do
Apocalipse”, concluído em 1991, saiu em Maputo, em 1993, como edição da
autora e foi publicado em Portugal, pela Caminho, em 1999, antecedendo a
publicação de “Balada de Amor ao Vento”,
em Portugal, pela mesma editora, em 2003.
Aliás, a Caminho possui os títulos da autora
publicados em Portugal: “Sétimo Juramento”
(2000); “Niketche: Uma
História de Poligamia” (2002); e “O Alegre Canto da Perdiz” (2008).
Integram igualmente a sua obra: “As Andorinhas” (2009); “Na mão de Deus” e “Por Quem Vibram os Tambores do Além” (2013); “Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo
Testamento” (2015); “O Canto dos Escravos” (2017); e “O
Curandeiro e o Novo Testamento” (2018).
No Brasil, está editada apenas a obra “Niketche: Uma História de Poligamia”.
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O Prémio Camões de literatura em língua portuguesa foi instituído
por Portugal e pelo Brasil, com o objetivo de distinguir um autor “cuja obra
contribua para a projeção e reconhecimento do património literário e cultural
da língua comum”. Segundo o texto do protocolo constituinte, assinado em
Brasília a 22 de junho de 1988 e publicado em novembro do mesmo ano, o prémio
consagra anualmente “um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco
da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e
cultural da língua comum”.
Foi atribuído pela primeira vez, em 1989, ao escritor português
Miguel Torga. Em 2019, o prémio distinguiu o músico e escritor brasileiro Chico
Buarque, autor de “Leite Derramado” e
“Budapeste”, entre outras obras; e, em
2020, o professor e ensaísta português Vítor Aguiar e Silva. De facto, Portugal
e Brasil lideram a lista de distinguidos com o Prémio Camões, com 13 premiados
cada, seguindo-se Moçambique, agora com três laureados, Cabo Verde, com dois,
mais um autor angolano e outro luso-angolano.
A história do galardão conta com uma recusa, a do
luso-angolano Luandino Vieira, em 2006.
Em 33 anos, é a terceira vez que o prémio é atribuído a um
autor moçambicano, depois das distinções de José Craveirinha em 1991 e Mia
Couto em 2013.
Entre os vencedores das 32 edições anteriores do prémio
estão, entre outros, autores como Miguel Torga (1989), acima referido, Vergílio Ferreira (1992),
Jorge Amado (1994), José Saramago (1995), Eduardo Lourenço (1996),
Pepetela (1997), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999), Rubem Fonseca (2003),
Agustina Bessa-Luís (2004), António Lobo Antunes (2007) e Raduan Nassar (2016).
Os vencedores mais recentes foram Vítor Aguiar e Silva (2020), acima referido, Chico Buarque (2019), acima referido, Germano Almeida (2018) e Manuel Alegre (2017).
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É consensual que a escrita de Chiziane constitui uma lupa
sobre a história e os traumas da Moçambique. Quando, em 1990, publicou o
primeiro livro em Moçambique, intitulado “Balada de Amor ao Vento”, tornou-se
a primeira mulher com um romance publicado no país. Desde aí foi-lhe atribuído
o título de primeira romancista de Moçambique, ainda que preferisse não ser
tratada como romancista. Aliás, antes desta obra, já se dedicara ao conto (com publicações em jornais e revistas
do país), que foi o
primeiro género literário que explorou.
A edição mais recente de “Balada de Amor ao Vento” em
Portugal foi feita pela Editorial Caminho, mas outras obras posteriores de
Paulina Chiziane foram igualmente publicadas em Portugal, casos de “Ventos do Apocalipse” (publicado
em Moçambique em 1993, em Portugal seis anos depois), “O Sétimo Juramento” e a
que foi a sua obra mais traduzida e lida, o romance feminista “Niketche: Uma História de Poligamia”.
Tendo publicado consistentemente até há poucos anos (decidiu parar em 2016), Paulina Chiziane foi agraciada,
em 2014, pelo Estado português com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante
Dom Henrique.
Embora seja conhecida popularmente como a “primeira
romancista de Moçambique”, Chiziane insiste que não só não é apenas uma
romancista como não o é predominantemente, já que os seus livros – efetivamente,
romances – incorporam outros géneros literários (como o conto) e nem sempre obedecem a uma estrutura clássica de género.
A sua obra, como referido pelo júri do Prémio Camões,
evidencia um olhar pormenorizado sobre os problemas da mulher africana e da mulher
moçambicana, mas não só: toda a cultura, os hábitos e o passado do continente e
do país são vistos e pensados criticamente. Traumas históricos como a guerra
civil moçambicana, o colonialismo e o racismo, práticas culturais como o
curandeirismo e o sistema poligâmico e o tratamento dado à mulher em Moçambique
e em África acabam por infiltrar-se tematicamente nos seus livros, como lembrava
em entrevista dada pela escritora em 2014 (publicada na plataforma online Buala).
Nessa entrevista, Chiziane falava do colonialismo português (“há um medo terrível dos portugueses,
a repressão colonial foi muito dura” – dizia), das marcas profundas deixadas por essa experiência
colonial em África e em Moçambique, das tradições seculares e culturais, do seu
próprio percurso de vida e da cultura moçambicana e da forma como esta não se
libertou das convenções e construções alheias, nomeadamente dos colonizadores.
Zeferino Coelho, o editor português da autora, sustentou em
declarações à Lusa que o
reconhecimento das qualidades literárias de Chiziane “já tardava” e disse que “é
uma honra para a escritora que vai honrar” o galardão. E, recordando que a
escritora foi alvo “de preconceitos literários e de género”, defendeu que isso
não afetou o seu reconhecimento pelos leitores, dadas as regulares reedições da
sua obra, nomeadamente do romance “Niketche: Uma História de
Poligamia”
(2002). E a Editorial Caminho conta
reeditar as suas obras, “como o tem feito”, mas não tem previsto nenhum novo
título.
“Paulina Chiziane é uma grande escritora que vai ficar na
literatura moçambicana e na de língua portuguesa”, defendeu ainda Zeferino
Coelho, manifestando contentamento pela distinção.
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Entretanto, Chiziane resolveu dedicar o Prémio Camões 2021
às mulheres. Efetivamente, como referiu à Lusa
depois de receber a distinção, o
Prémio Camões 2021 serve para valorizar o papel das mulheres numa altura em que
o seu trabalho ainda é subvalorizado, quando “afinal a mulher tem uma alma grande e tem uma grande mensagem para dar ao
mundo”, servindo este prémio “para despertar as mulheres e fazê-las sentir o
poder que têm por dentro”.
Chiziane, que foi a primeira mulher a publicar um romance em
Moçambique, com “Balada de amor ao vento”,
em 1990, aludindo à temática do género, um dos fios condutores da sua obra,
referiu que, quando começou a escrever, “ninguém acreditava” naquilo que ela
fazia “porque eram escritos de mulher”
Agora, confessou-se confusa com a notícia do prémio, pois nem
sequer se lembrava de que “o Prémio Camões existia”, porque os confinamentos
provocados pela covid-19 a deixaram “bem fechada em casa, desligada de tudo”. Não
obstante, considerou que o prémio surgiu como uma surpresa bem-vinda: “uma
surpresa muito boa para mim, para o meu povo, para a minha gente”, que em
África escreve “o português, aprendido de Portugal” – disse “emocionada”
porque, segundo afirmou, sempre achou que o seu português “não merecia tão alto
patamar”.
O seu último trabalho foi “A voz do cárcere”, escrito em conjunto com Dionísio Bahule e
lançado este ano, em Maputo, depois de ambos entrarem nas prisões e ouvirem os
reclusos – ela a escutar as mulheres, ele, os homens. E, sobre o futuro, disse
à Lusa que “há tantas ideias”, ideias
que “nem sempre o corpo consegue realizar”. Mas pode ser que “este prémio seja
um motor para eu me sentir um pouco mais de pé, porque às vezes fico cansada”, referiu,
seja pela idade, seja pelo impacto “da covid, que impede tudo”.
Enfim, Paulina Chiziane disse que o Prémio Camões pode ser “um
alento novo”, um símbolo de que a sua caminhada “valeu a pena” e de que “é
preciso continuar a lutar”.
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Seja. Para a frente é que é o caminho!
2021.10.21 –
Louro de Carvalho
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