quinta-feira, 7 de outubro de 2021

É necessária a revisão da lei-quadro das ordens profissionais

 

O Projeto de Lei n.º 974/XIV/3.ª, do PS, que deu recentemente entrada na Assembleia da República (AR) pretende alterar a Lei n.º 2/3013, de 10 de janeiro, e a Lei 53/2015, de 11 de junho, com vista ao reforço do interesse público, da autonomia e independência da regulação e promoção do acesso a atividades profissionais.

Na exposição de motivos, invoca-se o alerta, de há muitos anos, da UE para a necessidade de os Estados-membros “identificarem e eliminarem entraves no acesso a profissões reguladas, de forma a criar oportunidades de emprego e aumentar o potencial de crescimento económico”. Com efeito, em 2017, a Comissão adotou uma Comunicação relativa às recomendações para a reforma da regulação dos serviços profissionais (COM (2016) 820, de 10 de janeiro de 2017), onde identifica uma série de entraves resultantes da regulamentação dos serviços profissionais pelos Estados-Membros, que não visam necessariamente a consecução de objetivos de interesse geral ou, quando os visam, não são adequados, necessários ou proporcionais, pelo que faz várias recomendações aos Estados Membros no sentido de eliminaram restrições injustificadas e criarem um quadro regulamentar que promova crescimento, inovação e emprego.

Também a Diretiva 2018/958, de 28 de junho de 2018, transposta para o nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 2/2021, de 21 de janeiro, sobre o regime de acesso e exercício de profissões e atividades profissionais, pretende que as regras nacionais de organização do acesso às profissões reguladas não constituam obstáculo injustificado ou desproporcionado ao exercício do direito fundamental à livre escolha de uma atividade profissional.

No âmbito do Semestre Europeu, a UE considera que os esforços de Portugal para reduzir a carga regulamentar das profissões reguladas, traduzidos na Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, foram travados ou revertidos pelos estatutos das ordens. E alerta para a falta de resposta às recomendações da Comissão sobre a regulação dos serviços profissionais, bem como à análise da OCDE de 2018 sobre a concorrência no domínio das profissões autorreguladas em Portugal, recomendando a redução de restrições nas profissões altamente reguladas.

Entre as recomendações da OCDE a Portugal (Economic Outlook 2019) consta a redução de barreiras regulatórias nas profissões reguladas e, especificamente, a alteração de regras ao nível da supervisão do acesso a estas profissões, que deve estar a cargo dum órgão independente. Já em 2018, a OCDE, em cooperação com a AdC (Autoridade da Concorrência), fez uma avaliação de impacto concorrencial da regulamentação duma série de profissões autorreguladas (advogados, solicitadores, agentes de execução, notários, engenheiros, engenheiros técnicos, arquitetos, auditores, contabilistas certificados, despachantes oficiais, economistas, farmacêuticos e nutricionistas). Entre as suas recomendações, destaca-se a necessidade de separar a função regulatória da função representativa e a de as mesmas serem dotadas de um órgão de supervisão independente, de forma a contribuir para uma melhor regulação e criar incentivos à inovação em prol dos consumidores, bem como a necessidade de, nas sociedades profissionais, se abrir o acesso a parcerias, propriedade e gestão de empresas profissionais a indivíduos doutras profissões e permitir que empresas multidisciplinares atuem nos vários setores profissionais, de forma que diferentes modelos de negócios surjam no mercado e respondam à procura de serviços multidisciplinares. Nestes termos, é objetivo do diploma reforçar as competências regulatórias do órgão de supervisão das associações profissionais e garantir a sua independência e isenção, densificando o regime jurídico em vigor que já prevê a obrigatoriedade da existência deste órgão independente. Por outro lado, tendo em conta que uma das principais missões das associações públicas profissionais é a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços, propõe-se que seja obrigatória a existência do Provedor do Cliente e se reforcem os poderes de fiscalização das associações. Para eliminar restrições injustificadas ao acesso às profissões reguladas, estipulam-se limites claros quanto aos estágios profissionais e eventuais cursos de formação e exames, que não devem incidir sobre matérias já lecionadas e avaliadas pelas Instituições de Ensino Superior, que estão sujeitas a processos de avaliação e acreditação rigorosos, que envolvem as associações públicas profissionais. E, com o objetivo de dar pleno cumprimento ao artigo 25.º da Diretiva 2006/123/CE, relativa aos serviços no mercado interno propõe-se uma densificação das condições de constituição e funcionamento das sociedades profissionais multidisciplinares, já previstas na lei em vigor, para que possam fornecer serviços multidisciplinares e inovadores, com claros benefícios para os seus beneficiários.

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Liliana Lança, na edição online de 5 de outubro do “Jornal de Negócios” dá conta dos pontos essenciais do projeto de diploma, destacando que o órgão de supervisão de cada associação profissional, que já todas têm de ter, verá reforçadas as suas competências regulatórias, bem como a sua independência e isenção, que existirá, obrigatoriamente, um provedor do cliente e que serão limadas as arestas no atinente ao acesso à profissão (aqui trata-se de limitar as restrições que existam e que se verifique não serem de interesse público)

Esta será a primeira grande alteração à lei em vigor desde 2013 e que regulamenta a criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais. E vem no seguimento de recomendações da Comissão Europeia e da OCDE, pretendendo-se densificar e concretizar o espírito da lei-quadro adotada em 2013 e dar resposta às recomendações que reiteradamente têm sido feitas a Portugal e que nunca foram concretizadas porque nunca se alterou o ‘status quo’, no dizer da deputada Constança Urbano de Sousa, que lidera, no grupo parlamentar do PS, o grupo de trabalho criado para acompanhar esta revisão e que reforça:

Com esta iniciativa não se pretende, de todo, destruir as ordens profissionais, mas, muito pelo contrário, dignificar e reforçar a sua missão, que é servir o interesse público”.

Para tanto, propõe-se, desde logo, que as Ordens tenham um órgão disciplinar, eleito pela assembleia representativa e que deverá “integrar personalidades de reconhecido mérito que não sejam membros” da própria Ordem – incluindo membros vindos da academia e o presidente, escolhido entre os pares, não pode integrar a Ordem –, pois, como lembra a deputada, “além de regularem o acesso à profissão, as ordens têm poder disciplinar” e, “se há as que exercem muito bem esse poder, outras há que o não fazem”.  Por outro lado, avança-se com uma “densificação” dos poderes do órgão de supervisão independente, já existente, mas que ganha nova roupagem: mantém a missão de “velar pela legalidade da atividade exercida pelos órgãos da associação” e de “exercer poderes de controlo”, nomeadamente em matéria disciplinar e de regulação do exercício da profissão, mas ficando definidas na lei as suas funções: formulação das regras de estágio, incluindo avaliação final ou fixação de taxas; reconhecimento de habilitações  obtidas no estrangeiro; e poderes de controlo em matéria disciplinar, funcionando como instância de recurso. Além disso, este órgão será eleito pela assembleia representativa e, para garantia da sua independência, terá de integrar “uma personalidade de reconhecido mérito”, não inscrita na Ordem e dois membros vindos da academia. O presidente será escolhido entre os pares, mas não pode  integrar a Ordem. 

Em reforço dos interesses dos clientes, prevê que as ordens tenham sempre um Provedor do Cliente, devidamente remunerado e em permanência, pois “as ordens existem como associações profissionais públicas, para regular a profissão, não para defender os interesses dos profissionais, já que, para isso, existem os sindicatos. Segundo a predita deputada, as Ordens “são braços do Estado e têm poderes delegados para a prossecução de interesses públicos”. O Provedor será designado pelo bastonário ou presidente de entre três candidatos propostos pela entidade pública responsável pela defesa do consumidor, não poderá ser destituído, salvo por falta grave nas funções e será, por inerência, membro do órgão de supervisão.  

Outra regra proposta é que não sejam elegíveis para os órgãos destas associações os profissionais que tenham desempenhado cargos em órgãos dos sindicatos do setor nos últimos 4 anos, para haver um período de nojo e não haver portas giratórias.

Uma outra medida, já anteriormente avançada pelo PS, passa por densificar as condições de constituição e funcionamento das sociedades profissionais multidisciplinares: de engenheiros com advogados ou com arquitetos. Estão já previstas na lei, mas há ordens, como a dos advogados, cujos estatutos são taxativos na proibição. E a ideia é que possam ser estabelecidas condições para a sua constituição, mas que passe a ser sempre possível. São sociedades que “podem permitir serviços chave na mão”, o que é relevante para os jovens profissionais e para o nosso tecido empresarial, “já que permitem eliminar custos de contexto”, explica a deputada.

Em matéria de estágios, o PS quer que só sejam obrigatórios desde que o curso que confere as habilitações académicas não inclua já um estágio profissional. Terão duração máxima de 12 meses (agora podem ir aos 18) e deverão sempre ser remunerados. Não deverão ter sobreposição de matérias já lecionadas na universidade, terão de prever modalidade de ensino à distância com taxas reduzidas e a avaliação final ficará a cargo dum júri independente, sendo as ordens obrigadas a abrir pelo menos um período de inscrição por ano.

As associações públicas profissionais não podem estabelecer atividades reservadas. E o Governo avaliará se os regimes de reserva de atividade em vigor são legais, isto é, se decorrem da lei, já que a definição dos atos reservados a uma profissão é reserva de competência da AR.

As ordens não podem exercer atividades de natureza comercial. Isto, sem prejuízo da comercialização de artigos institucionais, por exemplo, vender aos sócios produtos ou serviços obrigatórios e que estes não possam adquirir noutros sítios.

As ordens poderão estabelecer protocolos com os serviços de fiscalização e inspeção do Estado para fiscalizar a atuação dos seus membros no âmbito das suas funções ou para efeitos de exercício do poder disciplinar, assim colmatando eventuais faltas de meios próprios.

Depois da entrada em vigor da nova lei, o Governo apresentará na AR propostas de alterações aos estatutos das ordens para acomodar as mudanças.

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O constitucionalista Vital Moreira vê nesta iniciativa legislativa um meio de combate à “atávica tendência das ordens”, para limitar o acesso à profissão, o que chama de “malthusianismo profissional, sobretudo através de exames e estágios à entrada na profissão, e “para expandir a esfera das atividades profissionais reservadas aos seus membros” (monopólio profissional). Diz Moreira que o projeto ataca os principais pontos críticos da atual regulação jurídica das Ordens e das más práticas de quase todas, pondo-as ao serviço do interesse público que as justifica. Por isso, entende que é de “saudar e de sufragar, portanto, esperando a sua aprovação parlamentar”.

Confessa que se tornou cada vez mais crítico da solução tradicional das ordens profissionais, propendendo cada vez mais para a supressão das suas funções corporativas de representação e defesa de interesse profissionais, ficando com o papel de entidades de regulação e disciplina da profissão, em substituição do Estado, pois, como diz, “num Estado de direito liberal, baseado na separação entre o Estado e a sociedade civil, não compete a entidades públicas, como as ordens são, a tarefa de representação e defesa oficial e unicitária de interesse profissionais”, que “deve caber exclusivamente a sindicatos e associações profissionais de livre iniciativa dos interessados”, não havendo razão para dar a certas profissões o privilégio da “representação de defesa dos seus interesses profissionais a cargo de entidades públicas, de inscrição e quotização obrigatórias e de representação unicitária, quando as outras profissões têm de recorrer a sindicatos e associações voluntárias, desprovidas de estatuto e de poderes públicos”.

E, sem assumir foros revolucionários, o projeto “autonomiza e reforça a função de supervisão e de disciplina profissional, atenuando o risco da sua captura pela função corporativa paralela das Ordens”, o que, para Vital Moreira, é “um enorme progresso”.

É óbvio que se esperava que o projeto de lei tivesse a oposição das Ordens, que o acusam de ingerência, como o fez a Ordem dos Advogados, ou de “retirar às Ordens a competência para a defesa dos interesses gerais dos beneficiários dos serviços”. Quanto à acusação de ingerência, é de lembrar que é ao Estado que incumbe a condução da defesa do interesse público, bem como a regulação das atividades com ele conexas, sem nelas interferir. E, quanto à acusação de retirada de competências, diz Moreira que “as Ordens nunca tiveram tal poder”, pois, nada na lei dá, por exemplo à Ordem dos Médicos, “o poder de efetuar inspeções aos serviços de saúde públicos ou privados”, tendo o poder (e o dever) de “defender os direitos dos destinatários de serviços profissionais contra eventuais abusos dos próprios profissionais”. Porém, ante a passividade do Governo e do MP (Ministério Público), algumas usurpam poder que não têm, “em vez de exercerem os poderes que legalmente têm a obrigação de exercer e que justificam a sua criação”.

Ainda quanto à acusação de instituir a “ingerência do Governo nas Ordens”, sacrificando a sua independência e autonomia, Moreira esclarece que “o projeto não agrava em nada a tutela governamental sobre as ordens nem prevê qualquer outro tipo de ingerência governamental suscetível de pôr em risco o autogoverno e a autonomia funcional das mesmas”, sendo “curioso que quem denuncia infundadamente um alegado propósito de ingerência governamental nas Ordens seja quem pretenda manter uma ilegítima ingerência destas na esfera administrativa do Governo, a pretexto da defesa dos direitos dos cidadãos”.

Enfim, como diz um seguidor do blog “Causa nossa”, “o que está em causa é assegurar a confiança dos consumidores dos serviços profissionais (advogados, médicos, etc.) no cumprimento das obrigações deontológicas e das boas práticas profissionais, sendo essencial acreditar que as Ordens supervisionam os membros e os punem com eficácia quando incumprem gravemente.

Porque há de, por exemplo, uma Universidade criar um curso de engenharia civil e vir a Ordem respetiva ameaçar não admitir na profissão os que concluírem tal curso?

2021.10.07 – Louro de Carvalho

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