O
Projeto de Lei n.º 974/XIV/3.ª, do PS, que deu recentemente entrada na
Assembleia da República (AR) pretende alterar a Lei n.º 2/3013, de 10 de janeiro,
e a Lei 53/2015, de 11 de junho, com vista ao reforço do interesse público, da
autonomia e independência da regulação e promoção do acesso a atividades
profissionais.
Na
exposição de motivos, invoca-se o alerta, de há muitos anos, da UE para a
necessidade de os Estados-membros “identificarem e eliminarem entraves no
acesso a profissões reguladas, de forma a criar oportunidades de emprego e
aumentar o potencial de crescimento económico”. Com efeito, em 2017, a Comissão
adotou uma Comunicação relativa às recomendações para a reforma da regulação
dos serviços profissionais (COM (2016) 820, de 10 de janeiro
de 2017), onde
identifica uma série de entraves resultantes da regulamentação dos serviços
profissionais pelos Estados-Membros, que não visam necessariamente a consecução
de objetivos de interesse geral ou, quando os visam, não são adequados,
necessários ou proporcionais, pelo que faz várias recomendações aos Estados
Membros no sentido de eliminaram restrições injustificadas e criarem um quadro
regulamentar que promova crescimento, inovação e emprego.
Também
a Diretiva 2018/958, de 28 de junho de 2018, transposta para o nosso ordenamento
jurídico pela Lei n.º 2/2021, de 21 de janeiro, sobre o regime de acesso e
exercício de profissões e atividades profissionais, pretende que as regras
nacionais de organização do acesso às profissões reguladas não constituam
obstáculo injustificado ou desproporcionado ao exercício do direito fundamental
à livre escolha de uma atividade profissional.
No
âmbito do Semestre Europeu, a UE considera que os esforços de Portugal para
reduzir a carga regulamentar das profissões reguladas, traduzidos na Lei n.º
2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação,
organização e funcionamento das associações públicas profissionais, foram
travados ou revertidos pelos estatutos das ordens. E alerta para a falta de
resposta às recomendações da Comissão sobre a regulação dos serviços
profissionais, bem como à análise da OCDE de 2018 sobre a concorrência no
domínio das profissões autorreguladas em Portugal, recomendando a redução de
restrições nas profissões altamente reguladas.
Entre
as recomendações da OCDE a Portugal (Economic Outlook 2019) consta a redução de barreiras
regulatórias nas profissões reguladas e, especificamente, a alteração de regras
ao nível da supervisão do acesso a estas profissões, que deve estar a cargo dum
órgão independente. Já em 2018, a OCDE, em cooperação com a AdC (Autoridade
da Concorrência),
fez uma avaliação de impacto concorrencial da regulamentação duma série de
profissões autorreguladas (advogados, solicitadores, agentes de
execução, notários, engenheiros, engenheiros técnicos, arquitetos, auditores,
contabilistas certificados, despachantes oficiais, economistas, farmacêuticos e
nutricionistas). Entre
as suas recomendações, destaca-se a necessidade de separar a função regulatória
da função representativa e a de as mesmas serem dotadas de um órgão de
supervisão independente, de forma a contribuir para uma melhor regulação e
criar incentivos à inovação em prol dos consumidores, bem como a necessidade
de, nas sociedades profissionais, se abrir o acesso a parcerias, propriedade e
gestão de empresas profissionais a indivíduos doutras profissões e permitir que
empresas multidisciplinares atuem nos vários setores profissionais, de forma
que diferentes modelos de negócios surjam no mercado e respondam à procura de
serviços multidisciplinares. Nestes termos, é objetivo do diploma reforçar as
competências regulatórias do órgão de supervisão das associações profissionais
e garantir a sua independência e isenção, densificando o regime jurídico em
vigor que já prevê a obrigatoriedade da existência deste órgão independente.
Por outro lado, tendo em conta que uma das principais missões das associações
públicas profissionais é a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos
serviços, propõe-se que seja obrigatória a existência do Provedor do Cliente e
se reforcem os poderes de fiscalização das associações. Para eliminar
restrições injustificadas ao acesso às profissões reguladas, estipulam-se
limites claros quanto aos estágios profissionais e eventuais cursos de formação
e exames, que não devem incidir sobre matérias já lecionadas e avaliadas pelas
Instituições de Ensino Superior, que estão sujeitas a processos de avaliação e
acreditação rigorosos, que envolvem as associações públicas profissionais. E, com
o objetivo de dar pleno cumprimento ao artigo 25.º da Diretiva 2006/123/CE,
relativa aos serviços no mercado interno propõe-se uma densificação das
condições de constituição e funcionamento das sociedades profissionais
multidisciplinares, já previstas na lei em vigor, para que possam fornecer
serviços multidisciplinares e inovadores, com claros benefícios para os seus
beneficiários.
***
Liliana
Lança, na edição online de 5 de outubro do “Jornal
de Negócios” dá conta dos pontos essenciais do projeto de diploma,
destacando que o órgão de
supervisão de cada associação profissional, que já todas têm de ter, verá reforçadas
as suas competências regulatórias, bem como a sua independência e isenção, que
existirá, obrigatoriamente, um provedor do cliente e que serão limadas as arestas
no atinente ao acesso à profissão (aqui trata-se de limitar as
restrições que existam e que se verifique não serem de interesse público).
Esta será a
primeira grande alteração à lei em vigor desde 2013 e que regulamenta a
criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais. E vem
no seguimento de recomendações da Comissão Europeia e da OCDE, pretendendo-se
densificar e concretizar o espírito da lei-quadro adotada em 2013 e dar
resposta às recomendações que reiteradamente têm sido feitas a Portugal e que
nunca foram concretizadas porque nunca se alterou o ‘status quo’, no dizer da deputada Constança Urbano de Sousa, que lidera,
no grupo parlamentar do PS, o grupo de trabalho criado para acompanhar esta
revisão e que reforça:
“Com esta iniciativa não se
pretende, de todo, destruir as ordens profissionais, mas, muito pelo contrário,
dignificar e reforçar a sua missão, que é servir o interesse público”.
Para tanto, propõe-se,
desde logo, que as Ordens tenham um órgão disciplinar, eleito pela assembleia
representativa e que deverá “integrar personalidades de reconhecido mérito que
não sejam membros” da própria Ordem – incluindo membros vindos da academia e o
presidente, escolhido entre os pares, não pode integrar a Ordem –, pois, como
lembra a deputada, “além de regularem o acesso à profissão, as ordens têm poder
disciplinar” e, “se há as que exercem muito bem esse poder, outras há que o não
fazem”. Por outro lado, avança-se com uma “densificação” dos poderes do
órgão de supervisão independente, já existente, mas que ganha nova roupagem:
mantém a missão de “velar pela legalidade da atividade exercida pelos órgãos da
associação” e de “exercer poderes de controlo”, nomeadamente em matéria
disciplinar e de regulação do exercício da profissão, mas ficando definidas na
lei as suas funções: formulação das regras de estágio, incluindo avaliação
final ou fixação de taxas; reconhecimento de habilitações obtidas no
estrangeiro; e poderes de controlo em matéria disciplinar, funcionando como
instância de recurso. Além disso, este órgão será eleito pela assembleia
representativa e, para garantia da sua independência, terá de integrar “uma
personalidade de reconhecido mérito”, não inscrita na Ordem e dois membros
vindos da academia. O presidente será escolhido entre os pares, mas não
pode integrar a Ordem.
Em reforço
dos interesses dos clientes, prevê que as ordens tenham sempre um Provedor do
Cliente, devidamente remunerado e em permanência, pois “as ordens existem como
associações profissionais públicas, para regular a profissão, não para defender
os interesses dos profissionais, já que, para isso, existem os sindicatos. Segundo
a predita deputada, as Ordens “são braços do Estado e têm poderes delegados
para a prossecução de interesses públicos”. O Provedor será designado pelo
bastonário ou presidente de entre três candidatos propostos pela entidade
pública responsável pela defesa do consumidor, não poderá ser destituído, salvo
por falta grave nas funções e será, por inerência, membro do órgão de
supervisão.
Outra regra
proposta é que não sejam elegíveis para os órgãos destas associações os
profissionais que tenham desempenhado cargos em órgãos dos sindicatos do setor
nos últimos 4 anos, para haver um período de nojo e não haver portas
giratórias.
Uma outra medida,
já anteriormente avançada pelo PS, passa por densificar as condições de
constituição e funcionamento das sociedades profissionais multidisciplinares: de
engenheiros com advogados ou com arquitetos. Estão já previstas na lei, mas há
ordens, como a dos advogados, cujos estatutos são taxativos na proibição. E a
ideia é que possam ser estabelecidas condições para a sua constituição, mas que
passe a ser sempre possível. São sociedades que “podem permitir serviços chave
na mão”, o que é relevante para os jovens profissionais e para o nosso tecido empresarial,
“já que permitem eliminar custos de contexto”, explica a deputada.
Em matéria
de estágios, o PS quer que só sejam obrigatórios desde que o curso que confere
as habilitações académicas não inclua já um estágio profissional. Terão duração
máxima de 12 meses (agora podem ir aos 18) e deverão sempre ser remunerados. Não deverão ter sobreposição de matérias
já lecionadas na universidade, terão de prever modalidade de ensino à distância
com taxas reduzidas e a avaliação final ficará a cargo dum júri independente,
sendo as ordens obrigadas a abrir pelo menos um período de inscrição por ano.
As
associações públicas profissionais não podem estabelecer atividades reservadas.
E o Governo avaliará se os regimes de reserva de atividade em vigor são legais,
isto é, se decorrem da lei, já que a definição dos atos reservados a uma profissão
é reserva de competência da AR.
As ordens
não podem exercer atividades de natureza comercial. Isto, sem prejuízo da
comercialização de artigos institucionais, por exemplo, vender aos sócios
produtos ou serviços obrigatórios e que estes não possam adquirir noutros
sítios.
As ordens
poderão estabelecer protocolos com os serviços de fiscalização e inspeção do
Estado para fiscalizar a atuação dos seus membros no âmbito das suas funções ou
para efeitos de exercício do poder disciplinar, assim colmatando eventuais
faltas de meios próprios.
Depois da
entrada em vigor da nova lei, o Governo apresentará na AR propostas de
alterações aos estatutos das ordens para acomodar as mudanças.
***
O
constitucionalista Vital Moreira vê nesta iniciativa legislativa um meio de combate à “atávica tendência das ordens”, para
limitar o acesso à profissão, o que
chama de “malthusianismo profissional”, sobretudo através de
exames e estágios à entrada na profissão, e “para expandir a esfera das
atividades profissionais reservadas aos seus membros” (monopólio
profissional). Diz Moreira que o projeto ataca os principais pontos
críticos da atual regulação jurídica das Ordens e das más práticas de quase
todas, pondo-as ao serviço do interesse público que as justifica. Por isso,
entende que é de “saudar e de sufragar, portanto, esperando a sua aprovação
parlamentar”.
Confessa que se tornou cada vez mais crítico da solução tradicional
das ordens profissionais, propendendo cada vez mais para a supressão das suas
funções corporativas de representação e defesa de interesse profissionais,
ficando com o papel de entidades de regulação e disciplina da profissão, em
substituição do Estado, pois, como diz, “num Estado de direito liberal, baseado
na separação entre o Estado e a sociedade civil, não compete a entidades
públicas, como as ordens são, a tarefa de representação e defesa oficial e
unicitária de interesse profissionais”, que “deve caber exclusivamente a
sindicatos e associações profissionais de livre iniciativa dos interessados”, não
havendo razão para dar a certas profissões o privilégio da “representação de
defesa dos seus interesses profissionais a cargo de entidades públicas, de
inscrição e quotização obrigatórias e de representação unicitária, quando as
outras profissões têm de recorrer a sindicatos e associações voluntárias,
desprovidas de estatuto e de poderes públicos”.
E, sem assumir foros revolucionários, o projeto “autonomiza e reforça a
função de supervisão e de disciplina profissional, atenuando o risco da sua
captura pela função corporativa paralela das Ordens”, o que, para Vital
Moreira, é “um enorme progresso”.
É óbvio que se esperava que o projeto de lei
tivesse a oposição das Ordens, que o acusam de ingerência, como o fez a Ordem
dos Advogados, ou de “retirar às Ordens a competência para a defesa dos interesses
gerais dos beneficiários dos serviços”. Quanto à acusação de ingerência, é de
lembrar que é ao Estado que incumbe a condução da defesa do interesse público,
bem como a regulação das atividades com ele conexas, sem nelas interferir. E, quanto
à acusação de retirada de competências, diz Moreira que “as Ordens nunca tiveram
tal poder”, pois, nada na lei dá,
por exemplo à Ordem dos Médicos, “o poder de efetuar inspeções aos serviços de
saúde públicos ou privados”, tendo o poder (e o dever) de “defender os direitos dos destinatários
de serviços profissionais contra eventuais abusos dos próprios profissionais”. Porém,
ante a passividade do Governo e do MP (Ministério Público), algumas usurpam poder que não têm, “em
vez de exercerem os poderes que legalmente têm a obrigação de exercer e que
justificam a sua criação”.
Ainda quanto à acusação de instituir a “ingerência do Governo nas Ordens”, sacrificando
a sua independência e autonomia, Moreira esclarece que “o projeto não agrava em
nada a tutela governamental sobre as ordens nem prevê qualquer outro tipo de
ingerência governamental suscetível de pôr em risco o autogoverno e a autonomia
funcional das mesmas”, sendo “curioso que quem denuncia infundadamente um
alegado propósito de ingerência governamental nas Ordens seja quem pretenda
manter uma ilegítima ingerência destas na esfera administrativa do Governo, a
pretexto da defesa dos direitos dos cidadãos”.
Enfim, como diz um seguidor do blog “Causa nossa”, “o que está em
causa é assegurar a confiança dos consumidores dos serviços profissionais (advogados, médicos, etc.) no cumprimento
das obrigações deontológicas e das boas práticas profissionais, sendo essencial
acreditar que as Ordens supervisionam os membros e os punem com eficácia quando
incumprem gravemente.
Porque há de, por exemplo, uma Universidade
criar um curso de engenharia civil e vir a Ordem respetiva ameaçar não admitir
na profissão os que concluírem tal curso?
2021.10.07 –
Louro de Carvalho
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