Foi entregue, no passado dia 11, à Assembleia
da República (AR) a proposta do Governo para o Orçamento do Estado para 2022 (OE2022), tendo quase de imediato vinho a conhecimento público a posição do BE e do
PCP de que votariam contra na votação na generalidade, a 27 de outubro se o
Partido Socialista não garantir alterações substanciais no quadro da discussão
na especialidade. Também da parte do CDS-PP já veio o aviso de que o seu voto
será contra e julgava-se que o PSD também votará contra, embora a direção do
partido ainda não se tenha pronunciado (fê-lo há
pouco), o que deu
azo a críticas internas. E parece que a direção do PS não está disposta a negociar
à direita, nomeadamente com PSD e/ou com CDS-PP.
Nas
últimas semanas, António Costa tentou a aproximação ao BE, identificando-lhe
uma “trajetória diferente” nas negociações orçamentais face a 2020 tendo
chumbado o OE2021. Contudo, da parte do Bloco, na reação ao OE, nada terá mudado,
pois o OE2022 é uma “enorme desilusão” e um “autêntico
balde de água fria”, no dizer de Catarina Martins, segundo a
qual nenhuma prioridades é acolhida na proposta.
Os bloquistas continuam a definir três prioridades: o SNS (Serviço Nacional de Saúde), a lei laboral e as pensões. E, na maioria dos casos, o que
exigem está longe de ser aceite pelo PS. Há um ano o BE apresentou 12 propostas,
mas a maior parte foi rejeitada pelos socialistas, ao lado da direita. Agora
não se conhecem em pormenor todas as suas medidas, mas sabe-se das suas intenções.
No SNS, quer a exclusividade dos profissionais e a
valorização das carreiras; nas pensões, o fim
do fator de sustentabilidade e o recálculo de pensões atribuídas entre 2014 e
2018; e, na lei laboral, a reversão
das medidas da troika que permanecem.
Catarina Martins diz não ser contra, por exemplo, o alívio fiscal do IRS, o
aumento da dotação para a saúde ou a subida (extraordinária) das pensões mais baixas, mas, no dizer de Mariana Mortágua,
tais medidas são “remendos” que não resolvem as questões essenciais. E esta
deputada mostrou preferência, em vez da mexida nos escalões do IRS, pelo
alívio dos impostos indiretos (não progressivos, ao invés do IRS), em particular do IVA da
eletricidade. Porém, o Governo disse não haver mexidas em 2022, optando por
outros mecanismos para suster o efeito da subida dos preços da eletricidade.
O BE
não reagiu ao novo regime para substituir o recurso a médicos tarefeiros ou a
autonomia dos hospitais para substituir pessoal, medidas do OE2021 que julgava insuficientes.
Por
sua vez, o PCP tem uma longa lista de prioridades e medidas,
tornando mais difícil perceber o que determinará ou não a mudança no sentido de
voto comunista. São várias as “matérias importantes” identificadas em que o
Governo “resiste” a assumir “compromissos” e que levam o PCP a assumir a
hipótese de votar contra: da urgência de subida de salários à recuperação do
poder de compra dos pensionistas (além dos 10 euros extra nas pensões mais baixas), passando por mudanças mais
profundas nos impostos, incluindo no IVA da energia.
Além
das 4 medidas elencadas por João Leão, que respondem às preocupações de vários
partidos, o Ministério das Finanças cedeu em matérias caras aos comunistas,
como é o caso do fim do pagamento especial por conta. No entanto, o PCP, que deixa a porta aberta a mais negociações, entende que OE2022
só tem “respostas marginais”. Com efeito, mesmo naquilo em que
o Governo cedeu, o PCP não se mostra satisfeito, seja pela sua dimensão, seja
pela forma como a medida é concretizada, como é o caso do desdobramento dos
escalões do IRS e do englobamento obrigatório para as mais-valias de curto
prazo. O OE 2022 “não responde aos objetivos do progressivo
desagravamento dos rendimentos de trabalho mais baixos e intermédios e dos
impostos indiretos e não afronta os grandes lucros e património, adiando a
justiça fiscal e privando o Estado de milhares de milhões de euros de receita.
É na área dos impostos que há convergência entre as
exigências do PCP e do
BE. Também o PCP quer redução do IVA na eletricidade,
mas junta o “controlo e regulação dos preços” face à escalada dos valores nos últimos
meses. A isto adiciona a valorização expressiva e inadiável das carreiras e
salários dos profissionais do SNS, as creches gratuitas para todas as crianças,
o acesso à habitação (é insuficiente
o congelamento das rendas antigas por mais um ano) e as mexidas na legislação laboral
que o PS viabilizou inicialmente na AR, mas sem se comprometer. E, nos próximos 15 dias uma das
dúvidas em cima da mesa é se haverá cedência no dossiê dos CTT,
sendo preciso, segundo o PCP, recuperar o controlo da empresa em vez de renovar
a concessão dos correios.
Se o
voto do BE chega para o PS ter o Orçamento viabilizado, o do PCP é insuficiente
e o PS necessita da ajuda de outros partidos, daí a necessidade de negociar com
o PAN e o PEV, que não reagiram de forma tão dura, deixando o sentido de voto
em aberto. O PAN anotou que o
OE2022 é “pouco ambicioso”, nomeadamente no alívio fiscal do IRS, e
lamentou que não esteja previsto o fim das isenções sobre os produtos
petrolíferos. Não se vê que bandeiras do PAN foram satisfeitas,
à exceção do desdobramento dos escalões do IRS. Do lado
do PEV, o sentido de voto fica em aberto, mas identificam-se duas lacunas a resolver na especialidade: o aumento do
rendimento mínimo de existência, o qual poderá ser efetuado
na fase de especialidade como sucedeu no ano passado, e a atualização dos
escalões do IRS à taxa de inflação.
***
O Primeiro-Ministro veio, no dia 14, defender o diploma entregue na AR
e lembrar aos parceiros da esquerda que “está devidamente articulado com outros
instrumentos de política”.
Pegando na asserção de Jorge Sampaio de que “há mais vida além do
Orçamento”, Costa, ante o grupo parlamentar do PS, explicitou as
“prioridades certas” em matéria orçamental, que desdobrou em seis matérias que podem ser a chave para a aprovação do OE à
esquerda:
- O PRR, negociado
com Bruxelas, permite uma “capacidade acrescida de investimento”.
- A agenda para o Trabalho Digno, que não é tema do OE, será
bem tratada em diploma a aprovar no Conselho de Ministros de 21 de outubro para
pôr em discussão pública e passar a projeto de lei, estando em causa regular as
plataformas digitais e o teletrabalho, dinamizar a contratação coletiva e
atacar o “inaceitável” grau de precariedade, informalidade e desregulação nas
relações de trabalho.
- O Estatuto do SNS, no espírito da LBS (Lei de Bases da Saúde), já aprovada, criará “as devidas condições de organização para que, entre
a complexidade das instituições da área da saúde, possa ter uma gestão articulada”,
para o que o predito Conselho de Ministros aprovará o diploma que estabelece “regras
próprias para carreiras atrativas e condições para atrair e fixar
duradouramente profissionais” de saúde.
- O Estatuto Profissional do Artista, tendo a pandemia mostrado a dificuldade de arranjar
forma de apoiar a quebra de rendimentos dos diferentes agentes da cultura,
ajustada a formas de contratualização atípica, resultará de diploma a aprovar para
“garantir a todos proteção social”.
- O aumento superior no salário mínimo nacional, cujo montante exato de atualização para o
próximo ano ainda não foi acertado em sede de concertação social, tem a porta aberta
para que fique acima da média dos anos anteriores, pois, estando a meta fixada
nos 750 euros em 2023, há “boas razões para dar um novo impulso a essa
trajetória e procurarmo-nos aproximar o mais possível desse objetivo”, de forma
que o esforço em 2023 não seja excessivo relativamente à evolução da economia.
- E o Regime de Profissões Reguladas, já que nem a troika foi capaz de impor o poder
democrático ao poder corporativo, será agora revisto, pois atualmente “subverte
a concorrência e limita a liberdade do exercício profissional, em particular
para as novas gerações”, sendo a sua revisão uma das condições de libertação das
verbas do PRR.
Ao elencar várias propostas extra OE, Costa está a ir ao encontro dos
potenciais viabilizadores da proposta. No encontro com os deputados do PS, fechou
a intervenção a prometer que o Governo terá a “humildade
para saber dialogar, ouvir e procurar, ao longo do debate negociar para
sair daqui sempre com um OE melhor” do que o apresentado pelo Ministro das
Finanças. Todavia, lembrou que não abrirá mão das “contas certas”.
Os novos argumentos postos em cima da mesa negocial por António Costa para
a viabilização do OE surgem poucas horas depois de o Presidente da República se mostrar convicto de que o OE será aprovado pela
esquerda na AR, mas admitir um cenário de crise política que provoque
eleições antecipadas, mostrando dúvidas sobre se um orçamento feito em
abril seria muito diferente do atual.
Até 27 de outubro, dia em que a proposta do OE2022 será votada na
generalidade pelos partidos para seguir (ou não) para a discussão na especialidade, o PS terá de dar garantias à esquerda do que viabilizará na fase de
especialidade para que PCP e/ou BE se abstenham, sendo, para os
politólogos o desbloqueador a lei laboral e os salários. Caso contrário, o OE é
rejeitado, um cenário que o Presidente da República afasta, até porque mesmo
com eleições antecipadas não se prevê que fosse diferente. O PSD remete a
responsabilidade para o Governo.
Neste momento, é preciso saber quantos milhões a
“folga” orçamental com que o Executivo constrói o orçamento permite acomodar na
fase de especialidade e a aritmética parlamentar, pois o BE é suficiente para o
PS, mas, se for o PCP a querer salvar o OE, terá ainda de se garantir o apoio
de mais partidos como o PAN e o PEV. Os sinais
vindos do Governo são de que é possível ir além da proposta, mas sem se
comprometer em nenhuma área e acrescentando que os partidos também têm de fazer
um esforço de aproximação. Porém, do Bloco e do PCP só vieram palavras
duras, embora com porta aberta à negociação até dia 27.
Como o Chefe de Estado, também alguns politólogos consideram que o OE será
viabilizado. Com efeito, as consequências dum Orçamento recusado
seriam extremamente gravosas ficando o país em regime duodécimos numa altura da
necessária retoma económica. E André Freire, do ISCTE, pensa que o “mais desejável para o país e para todos os partidos de esquerda é
que haja um acordo” e adverte que “quem fizer colapsar as negociações
será penalizado, dependendo de como as pessoas interpretam a raiz do colapso”.
A aprovação do OE é convicção do Presidente da República, reforçada depois
de o BE e o PCP terem tomado posição, achando que “o natural é que, com mais
ou menos entendimento ou mais ou menos paciência, o OE acabe por passar na
Assembleia”, pois a alternativa (eleições antecipadas e novo OE) “é tão pesada e custosa” e não trará grandes diferenças
ao panorama político. A politóloga Paula do Espírito Santo frisa que a atitude
do PCP é uma “reação” aos resultados das eleições autárquicas, “demarcando mais
a sua posição face ao PS” para evitar interpretações de “fraqueza”. André
Freire, que lembra que o BE não viabilizou o OE2021 e foi penalizado nas
autárquicas, considera que o PCP está a “elevar o nível de
exigência” porque o PS apenas “faz concessões mínimas na esperança de que baste
o receio de que uma crise grave leve ao regresso da direita”. E
Paulo Trigo Pereira, ex-deputado do PS, criticou o Governo “minoritário” por “chegar
à entrega do OE sem ter havido negociações suficientes”.
A chave do processo está na lei laboral e no aumento
dos salários, sendo de recordar que
o PS foi contra as medidas da troika que
agora não quer reverter e que PCP e BE precisam de mostrar que o seu apoio “traz
vantagens ao seu eleitorado”. Porém, o PS comporta-se como se tivesse maioria absoluta e esquece que tais parâmetros, estando nos
programas eleitorais do PCP e do BE, também estão no do PS.
Na falta de acordo, é provável o cenário de eleições antecipadas, más há risco de as coisas não correrem caso haja colapso das
negociações. O que sucedeu nas autárquicas em Lisboa e noutras grandes
cidades do litoral é sinal (embora não inequívoco) de disponibilidade do eleitorado para uma viragem. E, se os partidos de esquerda não entenderem, o
eleitorado de esquerda pode ficar desmobilizado e o de direita mobilizar-se-á
mais e não terá problemas de entendimento.
Se ficarmos no regime de duodécimos, a despesa pública de cada mês não pode exceder 1/12
da despesa total do OE2021, com exceção das prestações sociais de Segurança
Social e despesas com aplicações financeiras, e o Governo não poderá executar
os investimentos do PRR, no valor de três mil milhões de euros em 2022,
falhando as metas e objetivos contratados com a Comissão Europeia e ficando,
assim, por implementar o alívio fiscal no IRS, o aumento extraordinário nas
pensões e a subida de 0,9% dos salários da função pública.
Sem surpresas, os socialdemocratas fizeram uma primeira reação negativa à
proposta do OE por causa da estratégia do Governo, pois não
esqueceram as palavras de Costa no ano passado em entrevista ao “Expresso”:
“No dia em que a sua
subsistência depender do PSD, este Governo acabou”. Na altura, perante
a iminência dum chumbo do OE e a especulação sobre duodécimos em 2021, o PSD
deixou claro que só se Costa pedisse desculpa é que salvaria o OE. E agora nem isso levará o partido a reconsiderar a sua posição,
após o fôlego ganho nas autárquicas, pois o partido não faz parte do processo
de negociação, o qual incumbe ao Governo e aos parceiros parlamentares à
esquerda. Na verdade, seria penoso para o PSD negociar com o PS, pois as
eleições antecipadas são do seu interesse, segundo o que parece pensar Rui Rio.
Na
apresentação do OE2022, o Ministro das Finanças deu 4
exemplos de aproximação do Governo aos “anseios” dos partidos:
a melhoria do rendimento das famílias através da redução do IRS, o reforço dos
abonos de família para 2022 e 2023, um novo aumento extraordinário de 10 euros
das pensões a partir de agosto e a subida de 0,9% dos salários da administração
pública. Porém, para o BE e o PCP tal não é suficiente, nem os três mil milhões
de euros do PRR, que permitem ao Governo prometer o maior nível de investimento
público desde 2010.
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