sábado, 16 de outubro de 2021

Aprovação do OE2022 em risco, uma janela para crise política

 

Foi entregue, no passado dia 11, à Assembleia da República (AR) a proposta do Governo para o Orçamento do Estado para 2022 (OE2022), tendo quase de imediato vinho a conhecimento público a posição do BE e do PCP de que votariam contra na votação na generalidade, a 27 de outubro se o Partido Socialista não garantir alterações substanciais no quadro da discussão na especialidade. Também da parte do CDS-PP já veio o aviso de que o seu voto será contra e julgava-se que o PSD também votará contra, embora a direção do partido ainda não se tenha pronunciado (fê-lo há pouco), o que deu azo a críticas internas. E parece que a direção do PS não está disposta a negociar à direita, nomeadamente com PSD e/ou com CDS-PP.

Nas últimas semanas, António Costa tentou a aproximação ao BE, identificando-lhe uma “trajetória diferente” nas negociações orçamentais face a 2020 tendo chumbado o OE2021. Contudo, da parte do Bloco, na reação ao OE, nada terá mudado, pois o OE2022 é uma “enorme desilusão” e um “autêntico balde de água fria”, no dizer de Catarina Martins, segundo a qual nenhuma prioridades é acolhida na proposta.

Os bloquistas continuam a definir três prioridades: o SNS (Serviço Nacional de Saúde), a lei laboral e as pensões. E, na maioria dos casos, o que exigem está longe de ser aceite pelo PS. Há um ano o BE apresentou 12 propostas, mas a maior parte foi rejeitada pelos socialistas, ao lado da direita. Agora não se conhecem em pormenor todas as suas medidas, mas sabe-se das suas intenções.

No SNS, quer a exclusividade dos profissionais e a valorização das carreiras; nas pensões, o fim do fator de sustentabilidade e o recálculo de pensões atribuídas entre 2014 e 2018; e, na lei laboral,  a reversão das medidas da troika que permanecem. Catarina Martins diz não ser contra, por exemplo, o alívio fiscal do IRS, o aumento da dotação para a saúde ou a subida (extraordinária) das pensões mais baixas, mas, no dizer de Mariana Mortágua, tais medidas são “remendos” que não resolvem as questões essenciais. E esta deputada mostrou preferência, em vez da mexida nos escalões do IRS, pelo alívio dos impostos indiretos (não progressivos, ao invés do IRS), em particular do IVA da eletricidade. Porém, o Governo disse não haver mexidas em 2022, optando por outros mecanismos para suster o efeito da subida dos preços da eletricidade.

O BE não reagiu ao novo regime para substituir o recurso a médicos tarefeiros ou a autonomia dos hospitais para substituir pessoal, medidas do OE2021 que julgava insuficientes.

Por sua vez, o PCP tem uma longa lista de prioridades e medidas, tornando mais difícil perceber o que determinará ou não a mudança no sentido de voto comunista. São várias as “matérias importantes” identificadas em que o Governo “resiste” a assumir “compromissos” e que levam o PCP a assumir a hipótese de votar contra: da urgência de subida de salários à recuperação do poder de compra dos pensionistas (além dos 10 euros extra nas pensões mais baixas), passando por mudanças mais profundas nos impostos, incluindo no IVA da energia.

Além das 4 medidas elencadas por João Leão, que respondem às preocupações de vários partidos, o Ministério das Finanças cedeu em matérias caras aos comunistas, como é o caso do fim do pagamento especial por conta. No entanto, o PCP, que deixa a porta aberta a mais negociações, entende que OE2022 só tem “respostas marginais”. Com efeito, mesmo naquilo em que o Governo cedeu, o PCP não se mostra satisfeito, seja pela sua dimensão, seja pela forma como a medida é concretizada, como é o caso do desdobramento dos escalões do IRS e do englobamento obrigatório para as mais-valias de curto prazo. O OE 2022 “não responde aos objetivos do progressivo desagravamento dos rendimentos de trabalho mais baixos e intermédios e dos impostos indiretos e não afronta os grandes lucros e património, adiando a justiça fiscal e privando o Estado de milhares de milhões de euros de receita. É na área dos impostos que há convergência entre as exigências do PCP e do BE. Também o PCP quer redução do IVA na eletricidade, mas junta o “controlo e regulação dos preços” face à escalada dos valores nos últimos meses. A isto adiciona a valorização expressiva e inadiável das carreiras e salários dos profissionais do SNS, as creches gratuitas para todas as crianças, o acesso à habitação (é insuficiente o congelamento das rendas antigas por mais um ano) e as mexidas na legislação laboral que o PS viabilizou inicialmente na AR, mas sem se comprometer. E, nos próximos 15 dias uma das dúvidas em cima da mesa é se haverá cedência no dossiê dos CTT, sendo preciso, segundo o PCP, recuperar o controlo da empresa em vez de renovar a concessão dos correios. 

Se o voto do BE chega para o PS ter o Orçamento viabilizado, o do PCP é insuficiente e o PS necessita da ajuda de outros partidos, daí a necessidade de negociar com o PAN e o PEV, que não reagiram de forma tão dura, deixando o sentido de voto em aberto. O PAN anotou que o OE2022 é “pouco ambicioso”, nomeadamente no alívio fiscal do IRS, e lamentou que não esteja previsto o fim das isenções sobre os produtos petrolíferos. Não se vê que bandeiras do PAN foram satisfeitas, à exceção do desdobramento dos escalões do IRS. Do lado do PEV, o sentido de voto fica em aberto, mas identificam-se duas lacunas a resolver na especialidade: o aumento do rendimento mínimo de existência, o qual poderá ser efetuado na fase de especialidade como sucedeu no ano passado, e a atualização dos escalões do IRS à taxa de inflação.

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O Primeiro-Ministro veio, no dia 14, defender o diploma entregue na AR e lembrar aos parceiros da esquerda que “está devidamente articulado com outros instrumentos de política”.

Pegando na asserção de Jorge Sampaio de que “há mais vida além do Orçamento”, Costa, ante o grupo parlamentar do PS, explicitou as “prioridades certas” em matéria orçamental, que desdobrou em seis matérias que podem ser a chave para a aprovação do OE à esquerda:

- O PRR, negociado com Bruxelas, permite uma “capacidade acrescida de investimento”.

- A agenda para o Trabalho Digno, que não é tema do OE, será bem tratada em diploma a aprovar no Conselho de Ministros de 21 de outubro para pôr em discussão pública e passar a projeto de lei, estando em causa regular as plataformas digitais e o teletrabalho, dinamizar a contratação coletiva e atacar o “inaceitável” grau de precariedade, informalidade e desregulação nas relações de trabalho.

- O Estatuto do SNS, no espírito da LBS (Lei de Bases da Saúde), já aprovada, criará “as devidas condições de organização para que, entre a complexidade das instituições da área da saúde, possa ter uma gestão articulada”, para o que o predito Conselho de Ministros aprovará o diploma que estabelece “regras próprias para carreiras atrativas e condições para atrair e fixar duradouramente profissionais” de saúde.

- O Estatuto Profissional do Artista, tendo a pandemia mostrado a dificuldade de arranjar forma de apoiar a quebra de rendimentos dos diferentes agentes da cultura, ajustada a formas de contratualização atípica, resultará de diploma a aprovar para “garantir a todos proteção social”.

- O aumento superior no salário mínimo nacional, cujo montante exato de atualização para o próximo ano ainda não foi acertado em sede de concertação social, tem a porta aberta para que fique acima da média dos anos anteriores, pois, estando a meta fixada nos 750 euros em 2023, há “boas razões para dar um novo impulso a essa trajetória e procurarmo-nos aproximar o mais possível desse objetivo”, de forma que o esforço em 2023 não seja excessivo relativamente à evolução da economia.

- E o Regime de Profissões Reguladas, já que nem a troika foi capaz de impor o poder democrático ao poder corporativo, será agora revisto, pois atualmente “subverte a concorrência e limita a liberdade do exercício profissional, em particular para as novas gerações”, sendo a sua revisão uma das condições de libertação das verbas do PRR.

Ao elencar várias propostas extra OE, Costa está a ir ao encontro dos potenciais viabilizadores da proposta. No encontro com os deputados do PS, fechou a intervenção a prometer que o Governo terá a “humildade para saber dialogar, ouvir e procurar, ao longo do debate negociar para sair daqui sempre com um OE melhor” do que o apresentado pelo Ministro das Finanças. Todavia, lembrou que não abrirá mão das “contas certas”.

Os novos argumentos postos em cima da mesa negocial por António Costa para a viabilização do OE surgem poucas horas depois de o Presidente da República se mostrar convicto de que o OE será aprovado pela esquerda na AR, mas admitir um cenário de crise política que provoque eleições antecipadas, mostrando dúvidas sobre se um orçamento feito em abril seria muito diferente do atual.

Até 27 de outubro, dia em que a proposta do OE2022 será votada na generalidade pelos partidos para seguir (ou não) para a discussão na especialidade, o PS terá de dar garantias à esquerda do que viabilizará na fase de especialidade para que PCP e/ou BE se abstenham, sendo, para os politólogos o desbloqueador a lei laboral e os salários. Caso contrário, o OE é rejeitado, um cenário que o Presidente da República afasta, até porque mesmo com eleições antecipadas não se prevê que fosse diferente. O PSD remete a responsabilidade para o Governo.

Neste momento, é preciso saber quantos milhões a “folga” orçamental com que o Executivo constrói o orçamento permite acomodar na fase de especialidade e a aritmética parlamentar, pois o BE é suficiente para o PS, mas, se for o PCP a querer salvar o OE, terá ainda de se garantir o apoio de mais partidos como o PAN e o PEV. Os sinais vindos do Governo são de que é possível ir além da proposta, mas sem se comprometer em nenhuma área e acrescentando que os partidos também têm de fazer um esforço de aproximação. Porém, do Bloco e do PCP só vieram palavras duras, embora com porta aberta à negociação até dia 27.

Como o Chefe de Estado, também alguns politólogos consideram que o OE será viabilizado. Com efeito, as consequências dum Orçamento recusado seriam extremamente gravosas ficando o país em regime duodécimos numa altura da necessária retoma económica. E André Freire, do ISCTE, pensa que o “mais desejável para o país e para todos os partidos de esquerda é que haja um acordo” e adverte que “quem fizer colapsar as negociações será penalizado, dependendo de como as pessoas interpretam a raiz do colapso”.

A aprovação do OE é convicção do Presidente da República, reforçada depois de o BE e o PCP terem tomado posição, achando que “o natural é que, com mais ou menos entendimento ou mais ou menos paciência, o OE acabe por passar na Assembleia”, pois a alternativa (eleições antecipadas e novo OE) “é tão pesada e custosa” e não trará grandes diferenças ao panorama político. A politóloga Paula do Espírito Santo frisa que a atitude do PCP é uma “reação” aos resultados das eleições autárquicas, “demarcando mais a sua posição face ao PS” para evitar interpretações de “fraqueza”. André Freire, que lembra que o BE não viabilizou o OE2021 e foi penalizado nas autárquicas, considera que o PCP está a “elevar o nível de exigência” porque o PS apenas “faz concessões mínimas na esperança de que baste o receio de que uma crise grave leve ao regresso da direita”. E Paulo Trigo Pereira, ex-deputado do PS, criticou o Governo “minoritário” por “chegar à entrega do OE sem ter havido negociações suficientes”.

A chave do processo está na lei laboral e no aumento dos salários, sendo de recordar que o PS foi contra as medidas da troika que agora não quer reverter e que PCP e BE precisam de mostrar que o seu apoio “traz vantagens ao seu eleitorado”. Porém, o PS comporta-se como se tivesse maioria absoluta e esquece que tais parâmetros, estando nos programas eleitorais do PCP e do BE, também estão no do PS.

Na falta de acordo, é provável o cenário de eleições antecipadas, más há risco de as coisas não correrem caso haja colapso das negociações. O que sucedeu nas autárquicas em Lisboa e noutras grandes cidades do litoral é sinal (embora não inequívoco) de disponibilidade do eleitorado para uma viragem. E, se os partidos de esquerda não entenderem, o eleitorado de esquerda pode ficar desmobilizado e o de direita mobilizar-se-á mais e não terá problemas de entendimento.

Se ficarmos no regime de duodécimos, a despesa pública de cada mês não pode exceder 1/12 da despesa total do OE2021, com exceção das prestações sociais de Segurança Social e despesas com aplicações financeiras, e o Governo não poderá executar os investimentos do PRR, no valor de três mil milhões de euros em 2022, falhando as metas e objetivos contratados com a Comissão Europeia e ficando, assim, por implementar o alívio fiscal no IRS, o aumento extraordinário nas pensões e a subida de 0,9% dos salários da função pública.

Sem surpresas, os socialdemocratas fizeram uma primeira reação negativa à proposta do OE por causa da estratégia do Governo, pois não esqueceram as palavras de Costa no ano passado em entrevista ao “Expresso: “No dia em que a sua subsistência depender do PSD, este Governo acabou”. Na altura, perante a iminência dum chumbo do OE e a especulação sobre duodécimos em 2021, o PSD deixou claro que só se Costa pedisse desculpa é que salvaria o OE. E agora nem isso levará o partido a reconsiderar a sua posição, após o fôlego ganho nas autárquicas, pois o partido não faz parte do processo de negociação, o qual incumbe ao Governo e aos parceiros parlamentares à esquerda. Na verdade, seria penoso para o PSD negociar com o PS, pois as eleições antecipadas são do seu interesse, segundo o que parece pensar Rui Rio.

Na apresentação do OE2022, o Ministro das Finanças deu 4 exemplos de aproximação do Governo aos “anseios” dos partidos: a melhoria do rendimento das famílias através da redução do IRS, o reforço dos abonos de família para 2022 e 2023, um novo aumento extraordinário de 10 euros das pensões a partir de agosto e a subida de 0,9% dos salários da administração pública. Porém, para o BE e o PCP tal não é suficiente, nem os três mil milhões de euros do PRR, que permitem ao Governo prometer o maior nível de investimento público desde 2010.

***

Mais prudente parece a viabilização do OE e os partidos, à esquerda e à direita, ganharem tempo para a clarificação em 2023 e PRR entrar no comboio da sua execução. Depois, será mais fácil. Por outro lado, evita-se a vitimização de Costa, clarificam-se as lideranças à direita e, sobretudo, não se trava a aplicação dos fundos comunitários em projetos já em desenvolvimento.

2021.10.15 – Louro de Carvalho

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