O PS e o BE avançaram, na Assembleia da República (AR), com uma proposta conjunta para a reestruturação do SEF
(Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras), que deverá,
afinal, chamar-se Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo (APMA) e não Serviço de Estrangeiros e Asilo (SEA), como tinha avançado o Governo. Esta é, pelo menos, a
proposta de alteração conjunta do Partido Socialista e do Bloco de Esquerda à
proposta de lei para a reestruturação do SEF que está a ser discutida no
parlamento desde julho.
Na verdade,
a 9 de julho, foi aprovada, na generalidade, pela AR, a proposta do Governo que
define a passagem das competências policiais do SEF para a PSP, GNR e PJ, no âmbito
da reestruturação do SEF. A aprovação deveu-se aos votos a favor do PS e da
deputada não inscrita Joacine Katar Moreira e à
abstenção do BE e do PAN, pois votaram contra o PSD, o PCP, o CDS-PP,
o Chega, o PEV, a Iniciativa Liberal e a deputada não inscrita Cristina
Rodrigues. E a AR debateu também os projetos de lei do BE, PSD e Chega. No
entanto, foram apresentados requerimentos pelo PSD e BE para que os diplomas baixassem
à competente comissão sem votação por 60 dias, requerimentos que foram
aprovados por unanimidade.
A aprovação da
proposta na generalidade fez descer a discussão à 1.ª Comissão
(Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias) que vem a analisar artigo a artigo.
A proposta,
que fora aprovada previamente em Conselho de Ministros, visa “a reformulação
das forças e serviços de segurança que, nos termos da lei, exercem a atividade
de segurança interna, alterando-se para tal a Lei de Segurança Interna, a Lei
de Organização da Investigação Criminal e as leis orgânicas da GNR e PSP”.
A reestruturação do SEF, que já constava do Programa do Governo, ganhou fôlego após a polémica morte do
ucraniano Ihor Homeniuk, nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, em
março de 2020, e pela qual já foram condenados três inspetores. O Governo sustenta que esta
alteração legislativa define a passagem das competências policiais do SEF para
a GNR (Guarda Nacional Republicana), PSP (Polícia de Segurança Pública) e PJ (Polícia Judiciária),
“concretizando a separação entre funções policiais e funções administrativas de
autorização e documentação de imigrantes” (vistos,
autorizações de residência, etc.), prevista no programa do Governo. Paralelamente
é criado o SEA (Serviço
de Estrangeiros e Asilo), que ficará responsável, juntamente com o IRN (Instituto de Registos Notariado),
pelas matérias administrativas que eram tratadas pelo SEF.
Nos termos
da proposta, a GNR ficará responsável por “vigiar, fiscalizar e controlar as
fronteiras marítima e terrestre”, “agir no âmbito de processos de afastamento
coercivo e à expulsão judicial de cidadãos estrangeiros, nas áreas da sua
jurisdição” e “assegurar a realização de controlos móveis e de operações
conjuntas com forças e serviços de segurança nacionais e congéneres
estrangeiras”. Por seu turno, a PSP integrará as competências de “vigiar,
fiscalizar e controlar as fronteiras aeroportuárias e terminais de cruzeiros” e
“agir no âmbito de processos de afastamento coercivo e de expulsão judicial de
cidadãos estrangeiros, nas áreas da sua jurisdição”, bem como realizar
“controlos móveis e de operações conjuntas com forças e serviços de segurança
nacionais e congéneres estrangeiras”. E para a competência da PJ vão passar a
investigação dos crimes de auxílio à imigração ilegal, a associação de auxílio
à imigração ilegal e o tráfico de pessoas e de outros com estes conexos”.
No debate da
proposta do Governo, o Ministro da
Administração Interna defendeu que não se justifica “uma polícia para estrangeiros”
quase 50 anos num Estado de direito democrático, sendo os imigrantes “algo
benéfico para a sociedade e economia”. E considerou:
“A dúvida fundamental que hoje
existe, porque tem a ver com o modelo de reestruturação da lei de segurança
interna, e a que os senhores deputados terão de responder é se no Portugal
democrático, ao fim de quase 50 anos de Estado de direito de democrático se
justifica uma polícia para estrangeiros. Não é essa a visão que temos.”.
Eduardo Cabrita avançou que os cidadãos estrangeiros
devem ser tratados em Portugal “da mesma forma que qualquer um de nós”, a
partir do momento que sejam reconhecidos no país os seus direitos jurídicos e
de residência para trabalhar e estudar. E vincou:
“A proposta de lei dá cumprimento
aos compromissos de Portugal no quadro do pacto global das migrações e no
quadro daquilo que é a visão do programa do Governo que olha para as migrações
e comunidades estrangeiros como algo benéfico para a sociedade e economia”.
Agora, a proposta conjunta de PS e BE, enviada à 1.ª Comissão, define que a
futura APMA é um serviço administrativo, a criar por diploma próprio a aprovar
pelo Governo, com a missão de concretizar as políticas públicas em matéria
migratória e de asilo, “nomeadamente a de regularização da entrada e permanência
de cidadãos estrangeiros em território nacional, emitir pareceres sobre os
pedidos de vistos, de asilo e de instalação de refugiados, assim como
participar na execução da política de cooperação internacional do Estado
português no âmbito das migrações e asilo”. Até à entrada em vigor do diploma,
serão mantidas em vigor as normas que regulam os sistemas informáticos e de
comunicações do SEF, incluindo as relativas à parte nacional do sistema de
informação Schengen e outros existentes no âmbito do controlo da circulação de
pessoas, “passando a sua gestão a ser assegurada por uma unidade de tecnologias
de informação de segurança”. E junto da APMA funciona “um órgão consultivo em
matéria migratória e de asilo”, assegurando a representação de departamentos
governamentais e de organizações não governamentais, que se destinem “à defesa
dos direitos das pessoas migrantes, refugiadas e requerentes de asilo, à defesa
dos direitos humanos ou ao combate ao racismo e xenofobia, competindo-lhe,
designadamente, emitir pareceres, recomendações e sugestões que lhe sejam
submetidos”. Como na versão inicial, as funções policiais do SEF passam para a
GNR, PSP e PJ. A GNR ficará com a vigilância, fiscalização e controlo das fronteiras
marítima e terrestre; a PSP, com a vigilância, fiscalização e controlo das
fronteiras aeroportuárias e controlo dos terminais de cruzeiro; e a PJ, com a
investigação dos crimes de auxílio à imigração ilegal, associação de auxílio à
imigração ilegal e tráfico de pessoas.
Entretanto, o PSD requereu à Comissão que sejam ouvidos ex-ministros da
Administração Interna, ex-diretores do SEF e a ex-secretária geral do Sistema
de Segurança Interna, Helena Fazenda. Entre os ex-ministros, estão Rui Pereira
e Severiano Teixeira, que integraram governos socialistas, bem como Ângelo Correia.
Os ex-diretores do SEF eram Júlio Pereira, Gabriel
Anjos Catarino, Manuel Jarmela Palos e Luísa Maia Gonçalves. Porém, os
deputados do PS e do BE rejeitaram esta pretensão dos sociais-democratas, vindo
Coelho Lima, coordenador da bancada do PSD para a Segurança Interna, clamar
que é “incompreensível” negar o contributo neste processo destes vários
ex-responsáveis ligados direta ou indiretamente ao SEF, quando ouvi-los “seria
um contributo enriquecedor no processo legislativo”.” E o deputado garante que
se trata de apenas “querer tapar os olhos e os ouvidos”.
Além daquelas personalidades, o PSD tinha “especial curiosidade” em ouvir a
plataforma sindical constituída por ASCR (Associação
Sindical dos Conservadores de Registo), STRN (Sindicato
dos Trabalhadores dos Registos e Notariado) e SNR (Sindicato Nacional dos Registos), pois “são eles que vão sofrer muito com esta
reformulação do SEF”.
Paralelamente a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades
e Garantias recebeu 13 pareceres sobre a proposta do Governo para a extinção do
SEF, dos quais nenhum é a favor da
medida. Os vários documentos pretendem, segundo o “Diário de Notícias” (DN), alertar para os riscos, salientar incongruências e
destacar a importância do SEF no combate às redes de tráfico de seres
humanos.
Magistrados,
advogados, analistas e sindicatos opõem-se ao plano do Governo.
E Lima Coelho diz que, se o debate for sério, os partidos não devem ignorar todas
as entidades consultadas.
Nas opiniões enviadas ao grupo de
trabalho ‘Reafetação de Competências SEF’, criado para debater na especialidade os diplomas do
executivo, magistrados, advogados, sindicatos de várias polícias (incluindo do Conselho Europeu) e da função pública, associações de
apoio aos imigrantes e Observatório de Segurança Interna alertam para os riscos, salientam incongruências e destacam a importância
do SEF no combate às redes de tráfico de seres humanos.
Os magistrados do Ministério Público (MP) destacam, no diploma, a omissão do
atinente ao controlo das poderosas bases de dados do SEF. A Ordem dos Advogados sustenta que se deixa de ter “uma
polícia especializada, pretendendo diluir-se as competências por outros órgãos
de polícia que, ao dia de hoje, lutam com falta de meios, humanos e técnicos,
para fazerem face às suas atuais competências”, e acrescenta que “nem na
motivação, nem no clausulado da proposta de lei, é apresentada uma explicação
racional que justifique a extinção do SEF”.
O OSI (Observatório de Segurança Interna) até concorda com a passagem das
competências de investigação do SEF para a PJ, mas coloca dúvidas quanto à
transferência das outras competências policiais para a PSP e para a GNR.
Enfim, dizem os observadores (falam em “razia”)
que o apoio ao plano do Governo para extinguir o SEF e
dispersar competências está reduzido ao PS, BE e a pequenos partidos. Com efeito,
nenhum dos 13 pareceres até agora recebidos na Comissão apoia esta medida.
Contudo, na primeira
reunião do predito grupo de trabalho ‘Reafetação de Competências SEF’, no
passado dia 6 de outubro, foram ouvidos os três sindicatos interessados: dos
inspetores, da carreira de investigação e dos funcionários.
Primeiro, foram os magistrados do MP a referir a omissão no diploma em
relação ao controlo das bases de dados do SEF, lembrando que o novo
modelo europeu de Gestão Integrada de Fronteiras determina que os
Estados-Membros assegurem que “os guardas de fronteira sejam profissionais
especializados e devidamente formados”. E a Ordem dos advogados assinala:
“Numa
área tão sensível como esta, vai
deixar-se de ter uma polícia especializada, pretendendo diluir-se as
competências por outros órgãos de polícia que, ao dia de hoje, lutam com falta
de meios, humanos e técnicos, para fazerem face às suas atuais competências.
(...) Acresce que, nem na motivação, nem no clausulado da proposta de lei, é
apresentada uma explicação racional que justifique a extinção do SEF.”.
O OSI
concorda que as competências de investigação do SEF passem para a PJ, também serviço
especializado, mas duvida da transferência das outras competências policiais para a PSP e
para a GNR, elencando algumas complicações que podem acontecer
com sobreposições, como no caso de algumas fronteiras marítimas onde ambas as
forças ficam com o controlo.
Embora entenda que a reestruturação
do SEF é inevitável, a PAIIR (Portuguese Association of Immigration, Investiment and Relocation) adverte que “a atribuição de
competências ao IRN no âmbito das renovações dos vistos de residência criará
potencialmente um conflito de competências,
na medida em que o IRN está sob a tutela do Ministério da Justiça, o SEF/SEA está
sob a do Ministério da Administração Interna e os vistos carecem da intervenção
do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E não crê que seja vantajoso dispersar
as competências administrativas, o que só agravará a atual situação de longas
esperas dos imigrantes para a obtenção de vistos.
O CESP (Conselho Europeu de Sindicatos de Polícia), que integra as ONG do Conselho da
Europa e presidido pelo português da PJ, Ricardo Valadas, tem várias reservas
quanto à extinção do SEF:
“Reincide
assim o Governo português num erro já experienciado na década de 70 e
seguintes, preterindo um órgão de polícia criminal especializado numa matéria
tão sensível, em detrimento de OPC’s de competência genérica e com uma matriz securitária mais vincada”.
Considera uma “incongruência” que se
diga querer separar funções policiais de administrativas, para que se garanta
que “não existe qualquer suspeição sobre quem imigra ou pretende imigrar” e
atribuir à PSP e GNR competências para “vigiar, fiscalizar e controlar as
fronteiras".
Ademais, sublinha que esta “deriva”
do Governo contraria as avaliações internacionais de
segurança, como a Europol, que considera “prioritário o
combate ao tráfico de seres humanos”.
Enviaram também parecer os sindicatos do SEF, da PSP e da GNR, bem como a
Federação dos Sindicatos da Função Pública, todos contra a extinção, alertando
para a falta de informação sobre a forma como se fará a transição dos recursos
humanos do SEF e para a falta de meios nas outras polícias e entidades para
assumirem as novas competências.
Os sociais-democratas apresentaram a única proposta alternativa à do Governo, que visa a transformação
do SEF de serviço para força de segurança, significa isso um claro reforço
operacional, mas também na restrição de direitos, pois perdem o direito à greve
e esse seria um sinal de cedência dos sindicatos para que se chegasse a uma solução
de consenso e bom senso.
***
Sem obnubilar o trabalho positivo do
SEF, é de reconhecer que se criaram demasiados anticorpos que deslustram a eficácia
da sua estrutura e funcionamento, pelo que a reforma do sistema é necessária e
oportuna. E a resistência à mudança, que é normal, está reforçada por a alteração
legislativa, apesar de constar do Programa do Governo, surgir na sequência da
morte do referido cidadão ucraniano em circunstâncias pouco esclarecidas e na
fragilidade que se abateu sobre o Ministro da tutela.
É um pau de dois bicos querer ouvir
ex-Ministros da Administração Interna – e porquê apenas os susoditos e não
também Dias Loureiro, Fernando Gomes, Figueiredo Lopes, Alberto Costa, Daniel Sanches,
Anabela Rodrigues…? – e ex-diretores do SEF, pois têm experiência na matéria,
mas podem vir a opinar segundo as categoria do seu tempo e não de acordo com as
necessidades do momento e a perspetivação do futuro. Veja-se o que sucedeu com
a posição dos antigos chefes militares quanto à nova LOBOFA.
Fala-se de magistrados, mas não se mencionam
magistrados judiciais. Ouvir sindicatos? Sim, mas os relacionados com o SEF e
sem ceder aos interesses corporativos.
Dizer que o Governo contraria indicação
internacional que exige formação, profissionalismo e especialização é dizer que
só o SEF tinha tais predicados – o que os atos contrariam – e que outros organismos
não os poderão vir a ter, mesmo no quadro do combate ao tráfico humano.
Incoerências, omissões e conflitos de
competências sempre os haverá: importa congraçá-los.
Porém, embora haja maioria suficiente
para aprovar esta lei orgânica, era desejável o consenso.
2021.10.16 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário