sábado, 16 de outubro de 2021

Sucedâneo do SEF será Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo

 

O PS e o BE avançaram, na Assembleia da República (AR), com uma proposta conjunta para a reestruturação do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), que deverá, afinal, chamar-se Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo (APMA) e não Serviço de Estrangeiros e Asilo (SEA), como tinha avançado o Governo. Esta é, pelo menos, a proposta de alteração conjunta do Partido Socialista e do Bloco de Esquerda à proposta de lei para a reestruturação do SEF que está a ser discutida no parlamento desde julho.

Na verdade, a 9 de julho, foi aprovada, na generalidade, pela AR, a proposta do Governo que define a passagem das competências policiais do SEF para a PSP, GNR e PJ, no âmbito da reestruturação do SEF. A aprovação deveu-se aos votos a favor do PS e da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira e à abstenção do BE e do PAN, pois votaram contra o PSD, o PCP, o CDS-PP, o Chega, o PEV, a Iniciativa Liberal e a deputada não inscrita Cristina Rodrigues. E a AR debateu também os projetos de lei do BE, PSD e Chega. No entanto, foram apresentados requerimentos pelo PSD e BE para que os diplomas baixassem à competente comissão sem votação por 60 dias, requerimentos que foram aprovados por unanimidade.

A aprovação da proposta na generalidade fez descer a discussão à 1.ª Comissão (Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias) que vem a analisar artigo a artigo.

A proposta, que fora aprovada previamente em Conselho de Ministros, visa “a reformulação das forças e serviços de segurança que, nos termos da lei, exercem a atividade de segurança interna, alterando-se para tal a Lei de Segurança Interna, a Lei de Organização da Investigação Criminal e as leis orgânicas da GNR e PSP”.

A reestruturação do SEF, que já constava do Programa do Governo, ganhou fôlego após a polémica morte do ucraniano Ihor Homeniuk, nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, em março de 2020, e pela qual já foram condenados três inspetores. O Governo sustenta que esta alteração legislativa define a passagem das competências policiais do SEF para a GNR (Guarda Nacional Republicana), PSP (Polícia de Segurança Pública) e PJ (Polícia Judiciária), “concretizando a separação entre funções policiais e funções administrativas de autorização e documentação de imigrantes” (vistos, autorizações de residência, etc.), prevista no programa do Governo. Paralelamente é criado o SEA (Serviço de Estrangeiros e Asilo), que ficará responsável, juntamente com o IRN (Instituto de Registos Notariado), pelas matérias administrativas que eram tratadas pelo SEF.

Nos termos da proposta, a GNR ficará responsável por “vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras marítima e terrestre”, “agir no âmbito de processos de afastamento coercivo e à expulsão judicial de cidadãos estrangeiros, nas áreas da sua jurisdição” e “assegurar a realização de controlos móveis e de operações conjuntas com forças e serviços de segurança nacionais e congéneres estrangeiras”. Por seu turno, a PSP integrará as competências de “vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras aeroportuárias e terminais de cruzeiros” e “agir no âmbito de processos de afastamento coercivo e de expulsão judicial de cidadãos estrangeiros, nas áreas da sua jurisdição”, bem como realizar “controlos móveis e de operações conjuntas com forças e serviços de segurança nacionais e congéneres estrangeiras”. E para a competência da PJ vão passar a investigação dos crimes de auxílio à imigração ilegal, a associação de auxílio à imigração ilegal e o tráfico de pessoas e de outros com estes conexos”.

No debate da proposta do Governo, o Ministro da Administração Interna defendeu que não se justifica “uma polícia para estrangeiros” quase 50 anos num Estado de direito democrático, sendo os imigrantes “algo benéfico para a sociedade e economia”. E considerou:

A dúvida fundamental que hoje existe, porque tem a ver com o modelo de reestruturação da lei de segurança interna, e a que os senhores deputados terão de responder é se no Portugal democrático, ao fim de quase 50 anos de Estado de direito de democrático se justifica uma polícia para estrangeiros. Não é essa a visão que temos.”.

Eduardo Cabrita avançou que os cidadãos estrangeiros devem ser tratados em Portugal “da mesma forma que qualquer um de nós”, a partir do momento que sejam reconhecidos no país os seus direitos jurídicos e de residência para trabalhar e estudar. E vincou:

A proposta de lei dá cumprimento aos compromissos de Portugal no quadro do pacto global das migrações e no quadro daquilo que é a visão do programa do Governo que olha para as migrações e comunidades estrangeiros como algo benéfico para a sociedade e economia”.

Agora, a proposta conjunta de PS e BE, enviada à 1.ª Comissão, define que a futura APMA é um serviço administrativo, a criar por diploma próprio a aprovar pelo Governo, com a missão de concretizar as políticas públicas em matéria migratória e de asilo, “nomeadamente a de regularização da entrada e permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional, emitir pareceres sobre os pedidos de vistos, de asilo e de instalação de refugiados, assim como participar na execução da política de cooperação internacional do Estado português no âmbito das migrações e asilo”. Até à entrada em vigor do diploma, serão mantidas em vigor as normas que regulam os sistemas informáticos e de comunicações do SEF, incluindo as relativas à parte nacional do sistema de informação Schengen e outros existentes no âmbito do controlo da circulação de pessoas, “passando a sua gestão a ser assegurada por uma unidade de tecnologias de informação de segurança”. E junto da APMA funciona “um órgão consultivo em matéria migratória e de asilo”, assegurando a representação de departamentos governamentais e de organizações não governamentais, que se destinem “à defesa dos direitos das pessoas migrantes, refugiadas e requerentes de asilo, à defesa dos direitos humanos ou ao combate ao racismo e xenofobia, competindo-lhe, designadamente, emitir pareceres, recomendações e sugestões que lhe sejam submetidos”. Como na versão inicial, as funções policiais do SEF passam para a GNR, PSP e PJ. A GNR ficará com a vigilância, fiscalização e controlo das fronteiras marítima e terrestre; a PSP, com a vigilância, fiscalização e controlo das fronteiras aeroportuárias e controlo dos terminais de cruzeiro; e a PJ, com a investigação dos crimes de auxílio à imigração ilegal, associação de auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas.

Entretanto, o PSD requereu à Comissão que sejam ouvidos ex-ministros da Administração Interna, ex-diretores do SEF e a ex-secretária geral do Sistema de Segurança Interna, Helena Fazenda. Entre os ex-ministros, estão Rui Pereira e Severiano Teixeira, que integraram governos socialistas, bem como Ângelo Correia. Os ex-diretores do SEF eram Júlio Pereira, Gabriel Anjos Catarino, Manuel Jarmela Palos e Luísa Maia Gonçalves. Porém, os deputados do PS e do BE rejeitaram esta pretensão dos sociais-democratas, vindo Coelho Lima, coordenador da bancada do PSD para a Segurança Interna, clamar que é “incompreensível” negar o contributo neste processo destes vários ex-responsáveis ligados direta ou indiretamente ao SEF, quando ouvi-los “seria um contributo enriquecedor no processo legislativo”.” E o deputado garante que se trata de apenas “querer tapar os olhos e os ouvidos”.

Além daquelas personalidades, o PSD tinha “especial curiosidade” em ouvir a plataforma sindical constituída por ASCR (Associação Sindical dos Conservadores de Registo), STRN (Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado) e SNR (Sindicato Nacional dos Registos), pois “são eles que vão sofrer muito com esta reformulação do SEF”.

Paralelamente a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias recebeu 13 pareceres sobre a proposta do Governo para a extinção do SEF, dos quais nenhum é a favor da medida. Os vários documentos pretendem, segundo o “Diário de Notícias(DN), alertar para os riscos, salientar incongruências e destacar a importância do SEF no combate às redes de tráfico de seres humanos.

Magistrados, advogados, analistas e sindicatos opõem-se ao plano do Governo. E Lima Coelho diz que, se o debate for sério, os partidos não devem ignorar todas as entidades consultadas.

Nas opiniões enviadas ao grupo de trabalho ‘Reafetação de Competências SEF’, criado para debater na especialidade os diplomas do executivo, magistrados, advogados, sindicatos de várias polícias (incluindo do Conselho Europeu) e da função pública, associações de apoio aos imigrantes e Observatório de Segurança Interna alertam para os riscos, salientam incongruências e destacam a importância do SEF no combate às redes de tráfico de seres humanos.

Os magistrados do Ministério Público (MP) destacam, no diploma, a omissão do atinente ao controlo das poderosas bases de dados do SEF. A Ordem dos Advogados sustenta que se deixa de ter “uma polícia especializada, pretendendo diluir-se as competências por outros órgãos de polícia que, ao dia de hoje, lutam com falta de meios, humanos e técnicos, para fazerem face às suas atuais competências”, e acrescenta que “nem na motivação, nem no clausulado da proposta de lei, é apresentada uma explicação racional que justifique a extinção do SEF”.

O OSI (Observatório de Segurança Interna) até concorda com a passagem das competências de investigação do SEF para a PJ, mas coloca dúvidas quanto à transferência das outras competências policiais para a PSP e para a GNR.

Enfim, dizem os observadores (falam em “razia”) que o apoio ao plano do Governo para extinguir o SEF e dispersar competências está reduzido ao PS, BE e a pequenos partidos. Com efeito, nenhum dos 13 pareceres até agora recebidos na Comissão apoia esta medida.

Contudo, na primeira reunião do predito grupo de trabalho ‘Reafetação de Competências SEF’, no passado dia 6 de outubro, foram ouvidos os três sindicatos interessados: dos inspetores, da carreira de investigação e dos funcionários.

Primeiro, foram os magistrados do MP a referir a omissão no diploma em relação ao controlo das  bases de dados do SEF, lembrando que o novo modelo europeu de Gestão Integrada de Fronteiras determina que os Estados-Membros assegurem que “os guardas de fronteira sejam profissionais especializados e devidamente formados”. E a Ordem dos advogados assinala:

Numa área tão sensível como esta, vai deixar-se de ter uma polícia especializada, pretendendo diluir-se as competências por outros órgãos de polícia que, ao dia de hoje, lutam com falta de meios, humanos e técnicos, para fazerem face às suas atuais competências. (...) Acresce que, nem na motivação, nem no clausulado da proposta de lei, é apresentada uma explicação racional que justifique a extinção do SEF..

O OSI  concorda que as competências de investigação do SEF passem para a PJ, também serviço especializado, mas duvida da transferência das outras competências policiais para a PSP e para a GNR, elencando algumas complicações que podem acontecer com sobreposições, como no caso de algumas fronteiras marítimas onde ambas as forças ficam com o controlo.

Embora entenda que a reestruturação do SEF é inevitável, a PAIIR (Portuguese Association of Immigration, Investiment and Relocation) adverte que “a atribuição de competências ao IRN no âmbito das renovações dos vistos de residência criará potencialmente um conflito de competências, na medida em que o IRN está sob a tutela do Ministério da Justiça, o SEF/SEA está sob a do Ministério da Administração Interna e os vistos carecem da intervenção do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E não crê que seja vantajoso dispersar as competências administrativas, o que só agravará a atual situação de longas esperas dos imigrantes para a obtenção de vistos.

O CESP (Conselho Europeu de Sindicatos de Polícia), que integra as ONG do Conselho da Europa e presidido pelo português da PJ, Ricardo Valadas, tem várias reservas quanto à extinção do SEF:

Reincide assim o Governo português num erro já experienciado na década de 70 e seguintes, preterindo um órgão de polícia criminal especializado numa matéria tão sensível, em detrimento de OPC’s de competência genérica e com uma matriz securitária mais vincada.

Considera uma “incongruência” que se diga querer separar funções policiais de administrativas, para que se garanta que “não existe qualquer suspeição sobre quem imigra ou pretende imigrar” e atribuir à PSP e GNR competências para “vigiar, fiscalizar e controlar as fronteiras".

Ademais, sublinha que esta “deriva” do Governo contraria as avaliações internacionais de segurança, como a Europol, que considera “prioritário o combate ao tráfico de seres humanos”.

Enviaram também parecer os sindicatos do SEF, da PSP e da GNR, bem como a Federação dos Sindicatos da Função Pública, todos contra a extinção, alertando para a falta de informação sobre a forma como se fará a transição dos recursos humanos do SEF e para a falta de meios nas outras polícias e entidades para assumirem as novas competências.

Os sociais-democratas apresentaram a única proposta alternativa à do Governo, que visa a transformação do SEF de serviço para força de segurança, significa isso um claro reforço operacional, mas também na restrição de direitos, pois perdem o direito à greve e esse seria um sinal de cedência dos sindicatos para que se chegasse a uma solução de consenso e bom senso.

***

Sem obnubilar o trabalho positivo do SEF, é de reconhecer que se criaram demasiados anticorpos que deslustram a eficácia da sua estrutura e funcionamento, pelo que a reforma do sistema é necessária e oportuna. E a resistência à mudança, que é normal, está reforçada por a alteração legislativa, apesar de constar do Programa do Governo, surgir na sequência da morte do referido cidadão ucraniano em circunstâncias pouco esclarecidas e na fragilidade que se abateu sobre o Ministro da tutela.

É um pau de dois bicos querer ouvir ex-Ministros da Administração Interna – e porquê apenas os susoditos e não também Dias Loureiro, Fernando Gomes, Figueiredo Lopes, Alberto Costa, Daniel Sanches, Anabela Rodrigues…? – e ex-diretores do SEF, pois têm experiência na matéria, mas podem vir a opinar segundo as categoria do seu tempo e não de acordo com as necessidades do momento e a perspetivação do futuro. Veja-se o que sucedeu com a posição dos antigos chefes militares quanto à nova LOBOFA.

Fala-se de magistrados, mas não se mencionam magistrados judiciais. Ouvir sindicatos? Sim, mas os relacionados com o SEF e sem ceder aos interesses corporativos.

Dizer que o Governo contraria indicação internacional que exige formação, profissionalismo e especialização é dizer que só o SEF tinha tais predicados – o que os atos contrariam – e que outros organismos não os poderão vir a ter, mesmo no quadro do combate ao tráfico humano.

Incoerências, omissões e conflitos de competências sempre os haverá: importa congraçá-los.

Porém, embora haja maioria suficiente para aprovar esta lei orgânica, era desejável o consenso.

2021.10.16 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário