quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Formas de cumprimento em todo o mundo sem toque físico

 O cumprimento é uma forma de saudação amigável (de confiança e respeito) entre duas pessoas ou entidades, geralmente com algum gesto e/ou fala. Obviamente as falas são próprias de cada língua e os gestos que simbolizam ou acompanham os cumprimento, muitas vezes expressos em toque físico (beijo/s, abraço, aperto de mão, junção de palmas da mão, junção de punhos…) variam de cultura para cultura.

Com o surgimento do novo coronavírus, que induziu o distanciamento físico, que alguns chamaram distanciamento social, deu-se relevo às formas de cumprimento ou saudação sem toque físico mútuo, para lá do simples aceno ou levantamento da mão.    

Do ‘wai’ tailandês às palmas com as mãos em forma de concha da Zâmbia, estas saudações sem contacto físico transmitem amizade, consideração, respeito, boas-vindas e pedido de desculpa.

O ‘namastê’, da Índia ao Nepal

Embora seja possível ouvir o termo “namastê” acompanhada dum “mudra(gesto) com as palmas das mãos unidas apontando para cima, na cultura ocidental, ele está não raro fora do seu contexto cultural e é usado inapropriadamente. Atualmente, não raro vem é estampado em sacolas e camisetas e é pronunciado no fim das aulas de beer yoga (ioga com cerveja).

Para Divya L. Selvakumar (indiana e norte-americana hindu descendente de familiares de Tamil Nadu, e fundadora da ONG American Hindu World Service), “a história do gesto remonta a milhares de anos”, sendo mencionado no Rig Veda, o mais antigo dos 4 Vedas (textos hindus importantes). O termo em sânscrito significa inclinar-se ou curvar-se perante o outro e, como diz Selvakumar, uma pessoa curva a cabeça discretamente ao fazer namastê para outra significando que “o Divino dentro de mim se curva ao mesmo Divino dentro de ti”. É sinal de respeito e gratidão. Há humildade e reverência na saudação e crê-se que o “mudra” protege quem o faça com veneração, pois, como refere Anjhula Mya Singh Bais (especialista em trauma e budismo de Nichiren), ao unir as mãos, a energia duma pessoa fica protegida e contida, em vez de absorver a energia da outra pessoa.

O ‘wai’ na Tailândia

O cumprimento convencional na Tailândia, o ‘wai’, envolve leve inclinação da cabeça com as mãos unidas na frente – uma mostra da influência do hinduísmo e do budismo na cultura tailandesa no passado e no presente. Assim, como afirma Amporn Marddent (professora do Curso de Estudos Culturais do Instituto de Artes Liberais da Universidade Walailak, em Nakhon Si Thammarat), muitos hindus e budistas rezam de mãos unidas, usando o ‘wai’, mas a história do ‘wai’ radica numa saudação que mostra que somos transparentes, não trazemos qualquer arma e vimos em paz.

Além do uso na prática espiritual e saudações, o ‘wai’ tem outras aplicações, como apresentação de dança, pedidos de desculpa e mesmo para evitar a ira de valentões.

Como frisa Marddent, o significado é bastante flexível, mas hoje, quando cumprimentamos com o ‘wai’, também dizemos ‘sawatdee kha’ ou ‘sawatdee krab(depende se for homem ou mulher). Assim, o ‘wai’ também significa ‘olá’ de uma forma muito educada. E, como não postula contacto físico, passou a saudação mais segura durante a pandemia. Até Sylvie Briand, diretora do departamento de doenças epidémicas e pandémicas da OMS (Organização Mundial da Saúde), recomendou o ‘wai’ tailandês como alternativa aceitável ao aperto de mão.

Para transmitir um nível maior de respeito, a pessoa curva-se mais e eleva as mãos um pouco mais: na altura do peito para uma saudação convencional; na altura do rosto ao cumprimentar um superior ou idoso; e com os polegares na altura da testa para demonstrar a mais fervorosa reverência, normalmente reservada para monges e para o rei.

Curvando-se no Japão

Reverência ou gesto de deferência, exclusivo da nobreza desde há mais de mil anos, é hoje a saudação não verbal mais conhecida do Japão. Afirma Yuko Kaifu, presidente da Japan House Los Angeles, iniciativa cultural do nipónico Ministério das Relações Exteriores, que o ato de se curvar foi introduzido no Japão pela China no século VII. Como ex-oficial de serviços estrangeiros, eram atribuições de Kaifu entender e executar adequadamente a etiqueta japonesa como intérprete para pessoas como a imperatriz japonesa Michiko e dignitários estrangeiros como o Presidente Ronald Reagan e a Princesa Diana.  

Diz Kaifu que este costume de se curvar era inicialmente restrito à nobreza, mas tornou-se comum entre a classe de guerreiros samurais por volta do século XII e chegou à plebe apenas após o período Edo, no século XVII. Esta saudação foi criada para distinguir classes: quem se curvasse dobrava o corpo a fim de parecer mais baixo, conta Mika White, presidente da Chapter White Inc, empresa publicitária de turismo com sede em Hiroshima, indicando que o gesto “evoluiu para a inclinação moderna utilizada como linguagem corporal para cumprimentar”. Atualmente, quando alguém se curva, pode manter os pés plantados no chão. No passado, os japoneses viviam em casas onde os ‘tatames’ eram a norma e essas reverências eram feitas da posição de sentado. A pessoa sentava-se com os joelhos dobrados (nos ‘tatames’ em baixo de si) e depois curvava-se sobre as pernas. Hoje, os japoneses raramente se sentam assim, exceto quando participam nas cerimónias do chá ou noutros rituais tradicionais. No entanto, permanece intacto o principal componente do cumprimento: abaixar a cabeça até um grau que corresponda à mensagem pretendida. Com efeito, segundo Kaifu, a curvatura do corpo e o abaixamento da cabeça transmitem respeito às outras pessoas. Assim, quando alguém se curva, fá-lo com a cabeça abaixada, sem intenção de agredir ou atacar. E os graus de inclinação transmitem diferentes mensagens: para dizer “olá”, o tronco do corpo dobra 15º a partir dos quadris; para demonstrar respeito a um superior ou cumprimentar um cliente, 30º; e, para demonstrar o mais profundo pesar, respeito ou pedir desculpas, 45º.

Apesar de Kaifu afirmar que o aperto de mão também se tornou popular no Japão e, antes da pandemia, os mais jovens se curvavam menos que os mais velhos, as preocupações atuais com a propagação do coronavírus podem trazer de volta e generalizar a saudação tradicional. Assim, aqueles que habitualmente cumprimentam mais com apertos de mão do que a curvar o tronco estão a mudar de postura. Era dito a quem planeava viajar para o Japão que não era necessário aprender como cumprimentar curvando-se porque os japoneses também costumam dar apertos de mão, mas agora é mais seguro e apropriado que os/as que ensinam etiqueta japonesa o façam ensinando a curvar-se, sem necessidade de toque físico.

Palmas com as mãos em forma de concha na Zâmbia

São comuns na Zâmbia os apertos de mão. Todavia, é possível que as pessoas se cumprimentem sem contacto físico, como asseguram William Banda, do grupo étnico Kunda, e Gerald Nyirenda, do grupo étnico Tumbuka, ambos membros da equipa de apoio de solo Zambia Ground Handlers. Assim, para expressar um simples “olá”, forma-se concha com as mãos e batem-se palmas algumas vezes enquanto se diz “mulibwanji(que significa “olá”, para qualquer hora do dia) ou “mwakabwanji(“bom dia”). Se uma pessoa estiver para se reunir com a família do cônjuge, precisará de ir mais além: enquanto coloca as mãos em forma de concha da mesma forma que para o “olá” normal, deve agachar-se e bater palmas nessa posição. De facto, abaixar o corpo enquanto se faz a saudação transmite maior respeito. Quando uma pessoa se encontra com outros idosos, pode dizer “olá” colocando uma das mãos no peito e na barriga e dobrando as pernas levemente, quase como uma reverência.

A Zâmbia abriga mais de 70 grupos étnicos, mas Banda e Nyirenda afirmam que esses gestos passaram de geração em geração e são compreendidos por todos os zambianos, desde moradores da área rural até empresários nas cidades.

Práticas evasivas do povo lakota

Para culturas como a dos lakotas, evitar intencionalmente contactos pode ser demonstração de respeito. Jennifer Weston, membro do povo lakota, tendo crescido na reserva de Standing Rock, em Dakota do Sul (EUA), afirma que, embora um aperto de mão leve com a ponta dos dedos seja cumprimento comum na sua cultura, lhe ensinaram a abster-se do contacto físico e visual na saudação a parentes do seu marido ou primos do sexo oposto e que sempre considerou essas práticas evasivas como demonstração de respeito, na linha das grandes redes familiares em que aquelas comunidades viviam. Na verdade, a família está no centro da cultura lakota e evitar o contacto físico e visual era uma forma de manter os limites adequados, o que fazia parte da ordem social para quem habitava em moradias próximas ou em famílias de várias gerações com espaços compartilhados (durante diferentes climas durante o inverno, por exemplo).

Por sua vez, Royal Lost His Blanket-Stone Jr., diretor do Departamento de Estudos de Lakota da Universidade Sinte Gleska em Rosebud (Dakota do Sul), afirma que tais protocolos familiares profundamente arraigados sobre como cada indivíduo se deve portar na estrutura familiar em relação ao contacto visual ou físico com o outro estão enraizados nas leis e valores tribais do povo lakota existentes antes do contacto euro-americano.

Para algumas famílias, tais protocolos são praxe ainda hoje. A Standing Rock é multicultural e multirreligiosa. Há, por exemplo, bastantes áreas com forte influência de tradições católicas, episcopalianas ou congregacionalistas, como há famílias mais voltadas para a espiritualidade e cerimónias tradicionais dos lakotas e famílias que misturam práticas espirituais do cristianismo e dos lakotas. Assim, as práticas religiosas e culturais variam conforme as famílias e dependem do que é passado a cada geração do núcleo familiar. E, como diz Weston, a falta de interação ou demonstração de afeto físico em relacionamentos especificados não significa falta de amor. Ao invés, os lakotas consideram que este tipo de relacionamento familiar é muito querido e apreciado, pelo que é preciso ter grande respeito por ele, devendo ser conservado e mantido, sobretudo entre pessoas de sexo diferente.

O ‘salaam’ do Islão

Com uma população estimada em 1,8 mil milhões de muçulmanos em todo o mundo, seria de se esperar a existência de variações nos gestos que acompanham a saudação tradicional “as-salaam ‘alaikum(“que a paz esteja convosco”). Efetivamente, a paz está no centro do Islão e a saudação faz parte da prática espiritual, como afirma Saifa T. Hussain, capelã associada e consultora da comunidade muçulmana e inter-religiosa da Faculdade de Middlebury, em Vermont, pelo que existe a noção de que se deve fazer uma saudação sagrada ao encontrar-se com um irmão ou irmã, categoria que os muçulmanos veem em todos os da sua comunidade. É nestes termos que Hussain diz que o muçulmano faz parte de um “ummah”, uma comunidade mundial que é quase como uma família, sendo que existem laços profundos nessa comunidade e a etiqueta e as saudações buscam promover essa atmosfera de união e amor”.

Em culturas árabes de lugares como a Jordânia e em comunidades muçulmanas do sudeste da Ásia, a pessoa simplesmente coloca a mão direita no coração ao cumprimentar.

Embora haja muitos “salaams(cumprimentos) com toque físico – é comum, nas comunidades muçulmanas, membros do mesmo sexo ou da mesma família cumprimentarem-se com aperto de mão, abraço e vários beijos na bochecha –, o contacto físico não é obrigatório. Aliás, há preocupação com o contacto físico inerente ao Islão que estipula como se devem cumprimentar as pessoas da comunidade muçulmana. E, segundo Hussain, há “Hadices(narrações proféticas) em que o profeta Maomé afirma ser proibido tocar no sexo oposto, mas observa que há outros “Hadices” que alguns estudiosos interpretam como aperto de mão entre o profeta e um círculo de novos muçulmanos que incluía mulheres. Depois, há também a questão de como devotos homossexuais e de sexualidade não binária aplicam os “Hadices” às suas vidas. Na verdade, humanos e culturas são temas complexos e o contacto físico é reflexo disso.

Diz Hussain que há “diferentes culturas e maneiras de ser” e, qualquer que seja a religião, “não há unanimidade sobre se todos se sentem confortáveis com um abraço. As pessoas também sentem desconforto com o contacto físico por outras razões. Num ambiente ou comunidade multicultural, devemos estar cientes de que existem diferentes etiquetas e diferentes níveis de conforto com o contato físico.

Uma “salaam” sem contacto físico pode ser a melhor forma de começar por respeito pelos limites pessoais ou valores religiosos ou culturais daquele/a a quem se cumprimenta, bem como pela saúde de todos em casos como durante a pandemia. Pode, de facto, fazer-se o que muitos muçulmanos fazem na própria comunidade muçulmano-americana de Hussain, em culturas árabes de lugares como a Jordânia e em comunidades muçulmanas do sudeste da Ásia: simplesmente colocar a mão direita no coração ao cumprimentar.

Na verdade, como recorda Hussain, “o coração é visto como um símbolo sagrado de grande importância na tradição islâmica, mais importante que o cérebro ou a mente”. O coração é considerado o lar da alma. Ali está sediada a vida espiritual. Por isso, tocar o coração é quase sagrado, significando ‘Que a paz esteja convosco’; e o braço direito no coração é gesto que reconhece a santidade no interlocutor.

***

Há, pois, várias formas de cumprimento sem toque físico. Recordo que os militares, se uniformizados, devem fazer a continência aos superiores, a que estes devem responder. Porém, se levarem ambas as mãos ocupadas, param e olham de forma respeitosa, pedem licença e prosseguem. E, acima de tudo e com tudo, há a palavra. Já não falo da saudação romana, que foi “queimada” pelo uso nazi e fascista. Com efeito, estender a mão direita para a frente ao nível do ombro e de palma voltada para o solo era gesto de saudação de igual para igual (ainda se faz em juramento de bandeira); e fazê-lo levantando o braço à altura da cabeça significava deferência para com o superior. Porém, Hitler mostrava-se “hipersuperior” inclinando o braço para o solo.

Enfim, esta forma de saudação dispensa-se. Há as outras sem conotações negativas.

2021.10.27 – Louro de Carvalho


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