segunda-feira, 25 de outubro de 2021

“A missão está na vida, onde quer que a gente esteja ou faça”

 

Neste Dia Mundial das Missões, o Papa, após a recitação da oração mariana do Angelus com os fiéis, peregrinos e visitantes presentes na Praça de São Pedro, inspirado pelas novas Beatas – Irmã Lúcia da Imaculada, religiosa das Servas da Caridade, beatificada ontem em Brescia, e a jovem Sandra Sabattini, estudante de medicina, que desapareceu aos 22 anos num acidente de carro, beatificada hoje em Rimini – que apresentou como “testemunhas que anunciaram o Evangelho com a vida”, saudou com gratidão os numerosos missionários (sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis leigos) que na linha da frente despendem as suas energias ao serviço da Igreja, pagando pessoalmente, por vezes a um preço elevado, pelo seu testemunho. E referiu que o fazem, não com intenção proselitista, mas para dar testemunho do Evangelho em suas vidas em terras que não conhecem Jesus.

Ao mesmo tempo, o Padre Pedro Fernandes, provincial português dos Espiritanos, a partir da Tanzânia, onde decorreu o Capítulo Geral da Congregação, que terminou neste domingo, em entrevista à “Ecclesia” e “Renascença”, fala do diálogo inter-religioso e da justiça e paz como áreas prioritárias da Congregação, da sua vocação missionária e do impacto da pandemia.

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No Capítulo Geral, foi eleito o novo Superior a nível mundial – pela primeira vez, um africano – e foi igualmente eleito um português para o “governo” mundial da Congregação, o Padre Tony Neves, que é um dos novos Assistentes Gerais.

A este respeito, o Padre Fernandes reconhece que é uma escolha importante, também do ponto de vista de Portugal, mas assegura que “é importante sobretudo do ponto de vista da Congregação, pois, regra geral, o método de eleição “garante a representatividade das várias sensibilidades, a nível cultural e linguístico, de distribuição pelo mundo e de tipo de missão. E esta escolha “tem a ver com isso mesmo”. 

O novo Superior Geral, o Padre Alain Mayama, de 50 anos, é natural do Congo Brazzaville. Sobre a importância de pela primeira vez ser um africano a liderar a Congregação, o Provincial destaca o lado simbólico da escolha. Porém, frisa que a Congregação, fundada para a primeira evangelização, para os mais pobres, “tem uma longa tradição de presença em África” e que um dos fundadores tinha “especial predileção por África”, o que induziu muitos dos países africanos a terem hoje “igrejas pujantes, desenvolvidas”, que “foram evangelizadas sobretudo por Espiritanos ou com uma presença muito forte dos Espiritanos”. Assim, hoje a Congregação é “maioritariamente africana”. A eleição dum africano como Superior Geral é consequência natural dessa realidade. Não obstante, Mayama, que é congolês, “tem uma experiência larga em vários tipos de missão”: trabalhou nos EUA, foi formado na Nigéria e teve longa experiência de presença em Roma e de trabalhos ao nível da liderança na Congregação em vários lugares. Enfim, conhece bem a Congregação em diferentes registos culturais e linguísticos e em diferentes realidades missionárias, o que representa grande mais-valia para alguém que assume a liderança suprema de uma Congregação missionária e internacional.

Questionado se o Capítulo Geral, que se realiza de 8 em 8 anos, definiu hoje prioridades missionárias, respondeu que as prioridades são as de sempre: “a primeira evangelização, a justiça e paz, etc.”, embora tenha ênfase especial o diálogo inter-religioso no mundo contemporâneo, “em que as questões religiosas, da paz e da justiça são tão candentes” que “parece absolutamente prioritário que a abertura a outras culturas e sensibilidade religiosas esteja no horizonte primeiro da ação missionária da Igreja”. Assim, hoje o diálogo inter-religioso emerge como “uma das prioridades fundamentais”. A par desta, ressaltam como fundamentais os compromissos pela justiça e paz “num mundo com cada vez mais assimetrias e realidades sociais e culturais, marcadas muitas vezes pela extrema pobreza”.

No atinente à relação do primeiro anúncio da fé com as preocupações de justiça social, paz e ecologia, como forma de acompanhamento da vida concreta dos povos onde se encontram os missionários, afora a problemática sempre presente das “diferentes dimensões da missão”, frisou que “o primeiro anúncio, a própria dimensão litúrgica, a catequese, o acompanhamento das comunidades cristãs já estabelecidas, etc.” nunca se podem separar do “compromisso com a humanidade enquanto tal”. De facto, o cuidado da Casa Comum (em sintonia com a ‘Laudato Si’ e o magistério de Francisco) e as questões da justiça e paz, do diálogo inter-religioso, as questões sociais do desenvolvimento (outra grande dimensão da missão) estão em tal entrelaçamento que “nada disso faz sentido isoladamente”. Mais: “quando nos preocupamos com a solicitude de Deus pela humanidade”, preocupamo-nos “com todas as dimensões que fazem parte da vida da humanidade”. Ademais, o anúncio do Evangelho não pode separar-se das “outras dimensões ao serviço da pessoa humana, toda, de uma maneira muito inclusiva, sob pena de se desvirtuar esse anúncio”. E “a presença dos institutos missionários é, sobretudo, marcada por essa proximidade, por esse entrelaçar-se com as realidades do povo em que nos inserimos e que nos acolhe”.

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Quanto à pandemia, realidade transversal e universal e considerando que o Papa, na mensagem para este Dia Mundial das Missões, apela a uma “missão de compaixão” e a “missionários de esperança”, o Padre Pedro Fernandes diz que a Congregação percebe “com muita clareza as consequências da pandemia e a expressão ainda presente dessa pandemia”, o que “é muito evidente, não apenas na Europa, mas em todo mundo”. E, embora na Tanzânia a preocupação não seja evidente, também ali o problema existe, pois “as consequências económicas e sociais continuam muito presentes” e continuam aa marcar muito a vida dos missionários e a vida da Igreja nas zonas ditas mais periféricas, mais pobres, ou onde os recursos materiais e humanos não são tão abundantes”.

E sobre o impacto da pandemia na Congregação dos Espiritanos e nas suas missões, começou por contar que, no momento de oração no cemitério dos missionários em Bagamoyo, a primeira missão da África de Leste, recordaram os missionários que morreram jovens e que estão ali sepultados, bem como “todos os confrades Espiritanos que morreram durante a pandemia”. Disse-se “impressionado pelo tempo que demorou a ler a longa lista de missionários que tinham morrido vítimas da pandemia na Europa, em países como a França e como a Irlanda” e um pouco por todo o mundo, em África também, e não só missionários, mas gente profundamente ligada à Congregação. E sustenta que o impacto da pandemia na missão Espiritana é enorme, “porque há missionários que morreram ou ficaram gravemente doentes” e pelo impacto social e económico que as populações a quem servem sofreram (e continuam a sofrer), o que tem uma consequência de maior dificuldade na presença missionária junto dessas pessoas.

No respeitante aos Espiritanos em Portugal, aponta que o impacto foi mínimo, pois não houve vítimas mortais nem situações particularmente difíceis, mas anota que franjas importantes das populações (vg: imigrantes) a quem servem diretamente foram profundamente afetadas. Assim, refere que o CEPAC (Centro Padre Alves Correia) – instituição espiritana que serve imigrantes, nomeadamente os que não estão em situação de regularização documental, que são uma população extremamente fragilizada – tem tido, como outras instituições de caráter social, “um desafio tremendo em atender todas estas pessoas”, pois “a ajuda alimentar multiplicou-se, a ajuda documental e o apoio psicológico, para muitas delas, tem aumentado”, mas, da parte da Congregação, “os recursos são mais ou menos os mesmos, até menores”.

Do CEPAC diz que funciona na zona da Estrela (Lisboa), dispõe dum quadro de colaboradores permanentes e de grande número de voluntários, porém, mais voluntários são bem-vindos; debate-se com dificuldades económicas para o apoio àquelas pessoas; dá-se conta de que, se mais possibilidades houvesse, a nível de recursos humanos e financeiros, mais pessoas poderia atender; e percebe que o crescimento da resposta a estas situações poderia ser quase infinita, se houvesse possibilidades infinitas, mas sente a incapacidade em fazer face a este desafio.

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Em relação aos vários movimentos de leigos integrados na Família Espiritana (LIAM – Liga Intensificadora da Ação Missionária, Jovens Sem Fronteiras, …), regista como fundamental a colaboração, já que “a missão é conjunta, é de todos, é da Igreja, a missão somos nós”. Estes movimentos e outras realidades da família espiritana “são expressões de compromisso na Igreja local e na sociedade que querem visibilizar e concretizar a dimensão da missão na vida cristã que é, pela sua natureza, missionária”. E, sobre a LIAM, desenvolve:

Tem mais de 85 anos de existência, é um movimento pioneiro, porque, tendo a marca de uma espiritualidade missionária, de uma congregação religiosa, é desde o princípio um movimento de inserção paroquial. Isso traduz-se, basicamente, por cristãos comprometidos, dentro da sua paróquia, a trabalhar ao serviço da sensibilização e consciencialização missionária da comunidade, para que todos se sintam verdadeiramente comprometidos com a missão – perto, nas suas paróquias, nas suas Igrejas locais, e longe, uma vez que a missão ‘ad extra’ continua a ser uma parte importante, uma dimensão importante.”.

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Os entrevistadores quiseram saber o que levou este homem de 52 anos e que já celebrou os 25 anos de sacerdócio a ser missionário espiritano. E ele aponta: “a sensibilidade às questões da justiça e da paz, a perceção da urgência da evangelização e da primeira evangelização, a perceção de um mundo que, maioritariamente, continua a não conhecer Jesus Cristo e que precisa de o encontrar (…) no contexto e no registo próprio do diálogo, do acolhimento, da busca da verdade”, que acreditamos estar “em Jesus Cristo” e “nas culturas e nos povos que nos acolhem”, pelo que “eles podem reconhecer Jesus como seu salvador”. Assim, a perceção dos desafios da missão terá estado, humanamente, na origem da sua vocação. Mas recorda que a vocação “é sempre uma iniciativa de Deus”, que está presente e nos acompanha em todas as situações da vida, guiando-nos nas opções que faz connosco, em diálogo com a nossa liberdade.

Do estágio missionário na Guiné-Bissau, bem como do tempo que esteve em missão em Moçambique (de 1996 a 2009), frisa que “são realidades bastante diferentes”, pois, na Guiné-Bissau estava numa missão de absoluta primeira evangelização, tendo participado no Batismo dos oito primeiros cristãos, numa aldeia do interior, distante de toda a cultura ocidental – uma experiência fascinante; já, em Moçambique, esteve sempre em missões do interior, marcadas pela dimensão da primeira evangelização, uma dimensão fascinante, e “pela inserção em comunidades cristãs a nascer, de primeira, segunda geração, agora já de terceira geração”.

Marcou-o, disse, a “experiência fantástica de perceber a presença de Deus e a vitalidade da Igreja em tantos contextos diferentes, com culturas, línguas, modos de expressão diversos, o que “ajuda imenso a relativizar as nossas certezas absolutas, a colocar na sua verdadeira dimensão coisas que nos parecem fundamentais, mas que talvez não o sejam assim tanto, mesmo a nível material, económico…”. E considera que se tornou “mais rico vivendo em situações que, materialmente, economicamente, eram de maior pobreza”.

Questionado se ser superior provincial em Portugal é uma forma diferente de estar ao serviço e de fazer missão e se Portugal é terra de missão, sublinha a diferença. Com efeito, “viver em Portugal não é o mesmo que viver em Moçambique, os trabalhos são sempre diferentes”. Porém, destaca o essencial: “a missão está na vida, onde quer que a gente esteja, o que quer que faça, com quem quer que a gente tenha de interagir”, pois, “aí mesmo está o lugar de Deus, a colocar-nos em comunicação, uns com os outros”. E missão é “Deus a fazer-nos comunicar”, a partir do seu olhar, percebendo quanto Ele Se envolve nos nossos compromissos.

Quanto a ser provincial hoje, em Portugal, indica-o como “um desafio”, pois “há uma série de dificuldades, problemas” e “coisas boas, que a gente vai tendo de gerir”. Mas ressalta “a experiência da diversidade da relação humana e da presença de Deus na nossa vida, na presença dos homens nestes caminhos de Deus, onde vamos sendo conduzidos às vezes de maneira muito imprevisível, na nossa história”.

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Enquanto Provincial dos Espiritanos e vice-presidente da CIRP (Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal), vê o processo sinodal em curso na Igreja como “uma das grandes maravilhas e um dos grandes desafios do pontificado do Papa Francisco” e “uma interpelação enorme a toda a Igreja, em particular aos institutos missionários”. Portanto, estes têm “de assumir com maior consciência e com maior compromisso que a Igreja somos todos, todos nós”, e que “somos chamados efetivamente a participar, não apenas em posição de subalternidade, mas em posição de compromisso ativo”. Por conseguinte, a voz dos Institutos é importante, pois “o que Deus vai escrevendo nas nossas vidas e na interação de todos, uns com os outros, é importante”.

Ora, a marca a identidade dos institutos missionários, dos institutos religiosos, é a “experiência de comunhão, de chamamento à comunhão, que fazemos e só é autêntica se for transbordada, comunicada aos outros”. E “a sinodalidade é a comunhão concretizada na forma como nos organizamos, na forma como pensamos os desafios e os dons da comunidade cristã, do mundo”.

E o Padre Fernandes explana:

A forma como nos escutamos, como fazemos dessa escuta o lugar e o ponto de partida para construir alguma coisa mais parecido com o que Deus quer de nós, tanto a nível da Igreja como a nível da sociedade, da realidade humana. Em certo sentido, a sinodalidade é a nossa missão, é o rosto próprio do ser missionário, e diria até do ser Igreja. O Papa captou isso e está a transmiti-lo de uma maneira formidável, aos cristãos e ao mundo.”.

Por consequência, o entrevistado sente-se animado em relação a este processo sinodal. É certo, como explicitou, que “há desafios a vencer, há problemas na Igreja, de resistências, inclusive ao Papa Francisco e aos sinais de Deus, aos sinais dos tempos”, resistências que “são bastante humanas, transversais à história da Igreja, porque sempre existiram, em certo sentido”, mas “tem de haver coragem para as chamar pelo nome e para ir caminhando, no sentido de construir a comunhão, a sinodalidade”.

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Enfim, ser Igreja é estar em missão permanentemente, é assumir por inteiro a dimensão da sinodalidade, escutando Deus e os seus sinais no mundo. Para tanto, requer-se a postura de disponibilidade permanente para escutar o que Deus quer que façamos e agir em conformidade.

2021.10.24 – Louro de Carvalho 

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