quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Presidente da República reconduziu chefe de Estado-Maior do Exército

 

No âmbito das competências que lhes cabem constitucionalmente e nos termos da LOBOFA (Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas), aprovada pela Lei Orgânica n.º 2/2021, de 9 de agosto, o Governo propôs e o Presidente da República (PR) renovou, no passado dia 8, o mandato do general José Nunes da Fonseca como Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), uma das vozes críticas à polémica reforma de topo das Forças Armadas (FA).

Na verdade, uma lacónica nota publicada no site oficial da Presidência da República deixava ler que “sob proposta do Governo, o Presidente da República decretou a renovação do mandato do Chefe do Estado-Maior do Exército, general José Nunes da Fonseca”.

Tal não seria estranho se recentemente não tivesse eclodido o pretenso mal-estar entre o PR e o Governo pela fuga de informação sobre o processo de exoneração do atual Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) e a nomeação de novo CEMA. E, concorde-se ou não, é ao Governo que incumbe a iniciativa na proposta da escolha dos Chefes militares, bem como a oportunidade da sua exoneração. No vertente caso, o Governo pode ter sido guloso, apressado e desajeitado, mas não extrapolou as suas funções. E não vale vir o PR clamar que é a palavra final é dele, que é ele o comandante supremo das FA, o que todos sabemos. Se quis puxar as orelhas ao Governo fez mal, até porque, pelos vistos, tinha mais a quem as puxar, nomeadamente o seu Chefe da Casa Militar, um dos putativos interessados. Trata-se dum poder partilhado.

Segundo o art.º 19.º da LOBOFA, “os Chefes de Estado-Maior dos ramos são nomeados e exonerados pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, a qual deve ser precedida de audição, através do Ministro da Defesa Nacional, do CEMGFA” (n.º 1; cf CRP, art.º 133.º, alínea p), que se pronuncia, “após audição do Conselho Superior do respetivo ramo” (n.º 2). O Governo “deve iniciar o processo de nomeação dos Chefes de Estado-Maior dos ramos, sempre que possível, pelo menos um mês antes da vacatura do cargo, por forma a permitir a substituição imediata do respetivo titular” (n.º 3). E, se o PR “discordar do nome proposto, o Governo apresentar-lhe-á nova proposta” (n.º 4).

Ora, se o PR é livre de aceitar ou não a proposta do Governo – não se limita a carimbar uma decisão governamental –, também o Governo é livre de fazer a sua proposta. Porém, nada obsta a que haja concertação prévia, mas sem que tal seja obrigatório.

Por outro lado, é de anotar que a recondução dum chefe militar é mais fácil que a exoneração ou a nomeação, pois, segundo o n.º 2 do art.º 24.º da LOBOFA, “na prorrogação dos mandatos do CEMGFA e dos Chefes de Estado-Maior dos ramos devem ser cumpridas todas as formalidades legais previstas para efeitos de nomeação, com exceção das audições previstas no n.º 1 do artigo 13.º e nos n.os 1 e 2 do artigo 19.º”, ou seja, a audição do CEMGFA sustentada na audição do Conselho do respetivo ramo.

Nunes da Fonseca, ora reconduzido como CEME, foi um dos chefes militares que manifestou reservas à reforma da estrutura das FA, com implicações na cadeia de liderança. A ele juntaram-se as vozes críticas dos oficiais generais da Força Aérea e da Armada. Além das propostas de alteração ao projeto de lei, o CEME defendeu que o Conselho de Chefes do Estado-Maior devia manter a competência deliberativa. A renovação do seu mandato surge uma semana após a polémica que envolveu o vice-almirante Gouveia e Melo na suposta substituição do CEMA, que Marcelo desmontou falando habilmente em três equívocos, mas desdizendo de alguns factos. E sucedeu um dia após Ramalho Eanes falar da governamentalização e partidarização das FA e frisando que, para exonerar um chefe militar, é preciso explicar e fundamentar. Esquece o ex-Presidente que para exonerar um chefe militar não é difícil arranjar explicação e fundamentação. Além das divergências do atual CEMA com o CEMGFA e com alguns quadros da Armada, tinha seguido a onda do GREI na contestação ao referido projeto de lei de reforma da estrutura cimeira das FA, sendo de questionar como alguém que está contra um projeto vai liderar com eficácia o seu desenvolvimento. 

Também Nunes da Fonseca tomou posse como CEME a 19 de outubro de 2018, sucedendo ao general Rovisco Duarte, exonerado após apresentar carta de resignação ao cargo, sendo que, na carta que dirigiu ao PR, invocara “razões pessoais”, mas aos militares do Exército afirmara que “circunstâncias políticas” assim o exigiram e, perante os deputados, na comissão parlamentar de inquérito,  admitira ter deixado o cargo por discordar, em parte, da Lei de Programação Militar e em solidariedade com o antigo ministro da Defesa, que se tinha demitido uns dias antes na sequência do caso de Tancos. Trapalhada que desdiz do aprumo de militar.

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Entretanto, a edição do “Expresso” do dia 8 assinala que “Governo tranquiliza Marcelo com Exército”, assegurando que a recondução do CEME mostra que os chefes militares que estavam contra a ‘reforma Cravinho’ não são penalizados.

No desenvolvimento, a peça jornalística de Vítor Matos refere que recondução de Nunes da Fonseca à frente do Exército “é um sinal de apaziguamento com São Bento” após a crise dos “três equívocos” (tentativa de exoneração do CEMA por parte do Governo, alegadamente sem o PR ter sido informado a tempo). A revalidação da confiança no CEME por mais dois anos esclarece um dos “equívocos” invocados por Marcelo: os três chefes que criticaram a reforma do comando superior das FA não são penalizados por terem dado a sua opinião nas instituições próprias, sendo isto, segundo o PR, “um exemplo de lealdade institucional e não de deslealdade institucional”, o que esvazia as acusações de “governamentalização” das FA que o ex-Presidente Ramalho Eanes fez no dia 7.

A recondução do atual CEME, general que várias fontes classificam de muito institucional, abre a porta para que Mendes Calado seja substituído por Gouveia e Melo, como estava combinado entre Governo e PR, sem isso vir a ser entendido como tentativa de “partidarização” das FA, termo também usado por Eanes para apontar os riscos que a instituição militar corre. Restabelecida a normalidade institucional (resta saber quem a quebrou) na relação entre Governo e PR, resta saber qual o “momento adequado” para a substituição na Armada, que Marcelo evocou quando fez as declarações públicas a desmentir a exoneração do CEMA.

Em fevereiro, o general Joaquim Borrego saberá se é reconduzido à frente da Força Aérea. E, se Mendes Calado se mantiver até lá, sendo a decisão simultânea nos dois ramos, bate o recorde de um chefe militar em funções sem a confiança do Governo.

Eanes, além da governamentalização e partidarização das FA, evocou o PREC (Processo Revolucionário em Curso) por “temer que alguns militares, ambiciosos e de poucos escrúpulos procurem ligações pessoais de dependência partidária” para serem promovidos. Todavia, disse que não se referia “a ninguém em especial”, mas que se limitara a identificar “um perigo potencial e uma vulnerabilidade que é necessário esconjurar porque, a concretizar-se, pode ter consequências gravosas”. Ora, parece que Eanes, com a devida vénia, não tem razão, pois nem o Governo quer controlar até ao âmago as FA, nem estas se posicionam como sobrepostas ao Governo ou suas substitutas. E esquece que, no tempo em que era PR, com a nova Lei da Defesa Nacional e ambiente propício a testar a força entre políticos e militares, o ano de 1983 fez emergir a única vez que um chefe militar ficou 4 meses com um pedido de exoneração pendurado por via de palaciana quezília entre São Bento e Belém. O Primeiro-Ministro Mário Soares media forças com o PR Ramalho Eanes por causa da não recondução do general Garcia dos Santos como CEME. O Governo propôs a exoneração do chefe militar, quase como na atual crise da Armada (agora nem chegou a haver proposta), mas o PR susteve-a enquanto pôde.

Se agora o Governo testa a reforma que alterou a arquitetura de relações entre os chefes dos ramos, o poder político e o CEMGFA, há 38 anos Soares testava a força do poder civil contra a influência dos militares acabados de regressar aos quartéis com a extinção do Conselho da Revolução, mercê da revisão constitucional de 1982.

Quando Soares e Eanes convieram em acertar os pontos, fizeram-no por carta que estabelecia um “entendimento mútuo” de “dupla responsabilidade”: um chefe militar seria exonerado se perdesse a confiança política do PR ou do Governo. Na atual crise, está subjacente a perda de confiança política do ministro e do CEMGFA no almirante Mendes Calado, que foi a Belém apresentar as suas razões ao comandante supremo por o Governo ter chumbado o nome proposto por si para comandante naval, nos termos na nova legislação.

Mercê dos “equívocos” de comunicação e “erros de perceção mútua” sanados em reunião entre Presidente, Ministro da Defesa e Chefe do Governo em Belém, cujo conteúdo ninguém explicou, Mendes Calado permanece dependurado como esteve Garcia dos Santos em tempos. Tem a confiança do PR (com quem estava tudo combinado), mas não do Governo. E altas patentes questionam “até quando é possível manter essa situação”, podendo até suceder que haja uma remodelação governamental saindo eventualmente Cravinho do Governo ou passando para outra pasta, o que se revelaria adequado para uma movimentação na Armada.

Este desaguisado não é o primeiro nem o mais dramático. Ao longo da discussão sobre a reforma do comando superior das FA, debateu-se nos bastidores se os atuais chefes se deviam demitir após a aprovação das leis a que se opunham e que limitam os poderes dos chefes dos ramos para o concentrar no CEMGFA. Não o fizeram.

Ora, em 1992, Loureiro dos Santos demitiu-se após a aprovação da “lei dos coronéis”, do Ministro Fernando Nogueira, pois, não tendo concordado com os termos da lei, entendeu não ser obrigado a cumprir coisa de discordava. Ao invés, no caso presente, nenhum dos chefes militares se demitiu, apesar de não serem defensores dos termos da ‘reforma Cravinho’; e o CEME ora reconduzido apontou “inconsistências, colisões de competências, lapsos e omissões” nas novas leis, numa audição na comissão parlamentar de Defesa.

Já com a nova LOBOFA em vigor, a inédita rejeição do nome do comandante naval por parte do Ministro, ouvido o CEMGFA, foi o momento de fricção que induziu a atual crise. Dantes, sentindo-se ultrapassado pelo poder político, um chefe batia com a porta. Assim, em 1997, o almirante Ribeiro Pacheco fê-lo a duas semanas do fim do mandato porque António Vitorino não lhe deu indicações sobre a intenção de o reconduzir ou substituir. Em 1998, Jorge Sampaio entendeu que, para a recondução do chefe da Força Aérea, não tinha de ouvir o CEMGFA, almirante Fuzeta da Ponte, que protestou, passando Belém a forçar a demissão. Em 2003, Silva Viegas demitiu-se de CEME por ter “perdido a confiança” no Ministro Paulo Portas, quando este deu uma ordem ao comandante de pessoal para promover o tenente-coronel Campos Serafino a coronel para ser diretor-geral de Armamento. Em 2016, Carlos Jerónimo saiu de CEME, quando Azeredo Lopes forçou a demissão do subdiretor do Colégio Militar por este ter assumido a discriminação de homossexuais na instituição. E, em 2018, assim que tomou posse, Gomes Cravinho forçou a demissão do CEME, general Rovisco Duarte, tendo alguns dito que fora Marcelo quem terá exigido a sua exoneração. Porém, só houve dois chefes militares demitidos: o almirante Fuzeta da Ponte, afastado cargo de CEMGFA em 1998, por ter entrado em choque com Sampaio, que não o ouviu na recondução do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea; e o general Alvarenga, CEMGFA que, em 2002, face ao magro crescimento no orçamento da Defesa, disse publicamente que Paulo Portas estava “paralisado”, com “algumas dificuldades” que não tinham a ver com as FA (alusão indireta ao caso da Universidade Moderna).

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Não era preciso empolar um problema político com as FA ou discutir o poder do PR e do Governo, nem o PR com a história dos equívocos deu qualquer lição de direito constitucional. Só tresleu a CRP num ponto, que lhe diz respeito. A nomeação dos chefes militares é um poder partilhado entre PR, que tem a palavra final, e Governo, que tem a iniciativa e ouve quem deve.

A função de comandante supremo das FA que o PR tem por inerência está atrelada à “função simbólica de representação da República e de garantia da unidade do Estado”, mas não implica o exercício efetivo de CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas). Contudo a função do PR em relação às FA “não é meramente honorífico-formal”, tendo antes “um sentido jurídico-constitucional preciso”, como explicam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira. Não tem “um comando técnico-militar” ou um “comando em pessoa” (como o rei absoluto ou mesmo o rei das monarquias constitucionais). Porém, a sua função de comando tem natureza substancial ou material, pois, “como representante da República e garante da unidade do Estado, o PR é o órgão mais adequado para furtar as FA à instrumentalização partidária” e, “como garante do regular funcionamento das instituições democráticas”, cabe-lhe, em caso de estado de sítio ou de emergência, “o comando das FA”, para “se evitar que a situação de exceção constitucional possibilite a assunção da chefia do Estado pelos chefes militares” (vd Canotilho, J e Moreira, V. Constituição da república Portuguesa anotada, 2.ª edição revisa e ampliada, 2.º vol. Coimbra Editora, 1985).

Já agora esta anotação: parece nos estados de emergência que atravessaram o país por força da pandemia, o PR mais parecia o Superministro da Saúde ou o Superdoente que o Comandante Supremo das Forças Armadas.

Enfim, as FA devem estar sujeitas ao poder político e disponíveis para as missões que lhes forem confiadas, mas nem devem ser espezinhadas ou meramente usadas pelo poder político, nem devem tentar sobrepor-se ou justapor-se ao poder político. Não são órgão de soberania, embora lhes sejam confiadas missões de soberania.

2021.10.12 – Louro de Carvalho

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