No âmbito
das competências que lhes cabem constitucionalmente e nos termos da LOBOFA (Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas), aprovada pela Lei Orgânica n.º 2/2021, de 9 de
agosto, o Governo propôs e o Presidente da República (PR) renovou, no passado dia 8, o mandato do general José
Nunes da Fonseca como Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), uma das vozes críticas à polémica reforma de topo das
Forças Armadas (FA).
Na verdade,
uma lacónica nota publicada no site oficial da Presidência da República
deixava ler que “sob proposta do Governo, o
Presidente da República decretou a renovação do mandato do Chefe do
Estado-Maior do Exército, general
José Nunes da Fonseca”.
Tal não
seria estranho se recentemente não tivesse eclodido o pretenso mal-estar entre
o PR e o Governo pela fuga de informação sobre o processo de exoneração do
atual Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) e a nomeação de novo CEMA. E, concorde-se ou não, é ao
Governo que incumbe a iniciativa na proposta da escolha dos Chefes militares,
bem como a oportunidade da sua exoneração. No vertente caso, o Governo pode ter
sido guloso, apressado e desajeitado, mas não extrapolou as suas funções. E não
vale vir o PR clamar que é a palavra final é dele, que é ele o comandante
supremo das FA, o que todos sabemos. Se quis puxar as orelhas ao Governo fez
mal, até porque, pelos vistos, tinha mais a quem as puxar, nomeadamente o seu
Chefe da Casa Militar, um dos putativos interessados. Trata-se dum poder
partilhado.
Segundo o
art.º 19.º da LOBOFA, “os Chefes de Estado-Maior dos ramos são nomeados e
exonerados pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, a qual deve
ser precedida de audição, através do Ministro da Defesa Nacional, do CEMGFA” (n.º 1; cf
CRP, art.º 133.º, alínea p), que se
pronuncia, “após audição do Conselho Superior do respetivo ramo” (n.º 2). O Governo “deve iniciar o processo de nomeação dos
Chefes de Estado-Maior dos ramos, sempre que possível, pelo menos um mês antes
da vacatura do cargo, por forma a permitir a substituição imediata do respetivo
titular” (n.º 3). E, se o PR “discordar do nome proposto, o Governo
apresentar-lhe-á nova proposta” (n.º 4).
Ora, se o PR
é livre de aceitar ou não a proposta do Governo – não se limita a carimbar uma
decisão governamental –, também o Governo é livre de fazer a sua proposta.
Porém, nada obsta a que haja concertação prévia, mas sem que tal seja
obrigatório.
Por outro
lado, é de anotar que a recondução dum chefe militar é mais fácil que a
exoneração ou a nomeação, pois, segundo o n.º 2 do art.º 24.º da LOBOFA, “na prorrogação
dos mandatos do CEMGFA e dos Chefes de Estado-Maior dos ramos devem ser
cumpridas todas as formalidades legais previstas para efeitos de nomeação, com
exceção das audições previstas no n.º 1 do artigo 13.º e nos n.os 1
e 2 do artigo 19.º”, ou seja,
a audição do CEMGFA sustentada na audição do Conselho do respetivo ramo.
Nunes da
Fonseca, ora reconduzido como CEME, foi
um dos chefes militares que manifestou reservas à reforma da estrutura das FA,
com implicações na cadeia de liderança. A ele juntaram-se as vozes
críticas dos oficiais generais da Força Aérea e da Armada. Além das propostas
de alteração ao projeto de lei, o CEME defendeu que o Conselho de Chefes do
Estado-Maior devia manter a competência deliberativa. A renovação do seu
mandato surge uma semana após a polémica que envolveu o vice-almirante Gouveia
e Melo na suposta substituição do CEMA, que Marcelo desmontou falando habilmente
em três equívocos, mas desdizendo de alguns factos. E sucedeu um dia após Ramalho
Eanes falar da governamentalização e partidarização das FA e frisando que, para
exonerar um chefe militar, é preciso explicar e fundamentar. Esquece o
ex-Presidente que para exonerar um chefe militar não é difícil arranjar
explicação e fundamentação. Além das divergências do atual CEMA com o CEMGFA e
com alguns quadros da Armada, tinha seguido a onda do GREI na contestação ao
referido projeto de lei de reforma da estrutura cimeira das FA, sendo de
questionar como alguém que está contra um projeto vai liderar com eficácia o
seu desenvolvimento.
Também Nunes
da Fonseca tomou posse como CEME a 19 de outubro de 2018, sucedendo ao
general Rovisco Duarte, exonerado após apresentar carta de resignação ao cargo,
sendo que, na carta que dirigiu ao PR, invocara “razões pessoais”, mas aos
militares do Exército afirmara que “circunstâncias políticas” assim o exigiram
e, perante os deputados, na comissão parlamentar de inquérito, admitira ter deixado o cargo por
discordar, em parte, da Lei de Programação Militar e em solidariedade com o
antigo ministro da Defesa, que se tinha demitido uns dias antes na
sequência do caso de Tancos. Trapalhada que desdiz do aprumo de militar.
***
Entretanto, a edição do “Expresso”
do dia 8 assinala que “Governo tranquiliza Marcelo com Exército”, assegurando
que a recondução do CEME mostra que os chefes militares que estavam contra a ‘reforma Cravinho’ não são penalizados.
No
desenvolvimento, a peça jornalística de Vítor Matos refere que recondução de Nunes da Fonseca à frente do Exército “é um sinal
de apaziguamento com São Bento” após a crise dos “três equívocos” (tentativa de
exoneração do CEMA por parte do Governo, alegadamente sem o PR ter sido
informado a tempo). A
revalidação da confiança no CEME por mais dois anos esclarece um dos “equívocos”
invocados por Marcelo: os três chefes que criticaram a reforma do comando
superior das FA não são penalizados por terem dado a sua opinião nas
instituições próprias, sendo isto, segundo o PR, “um exemplo de lealdade
institucional e não de deslealdade institucional”, o que esvazia as acusações
de “governamentalização” das FA que o ex-Presidente Ramalho Eanes fez no dia 7.
A recondução do atual CEME, general que várias fontes classificam de muito
institucional, abre a porta para que Mendes Calado seja substituído por Gouveia
e Melo, como estava combinado entre Governo e PR, sem isso vir a ser entendido
como tentativa de “partidarização” das FA, termo também usado por Eanes para
apontar os riscos que a instituição militar corre. Restabelecida a normalidade
institucional (resta saber quem a quebrou) na relação
entre Governo e PR, resta saber qual o “momento adequado” para a substituição
na Armada, que Marcelo evocou quando fez as declarações públicas a desmentir a
exoneração do CEMA.
Em fevereiro, o general Joaquim Borrego saberá se é reconduzido à frente da
Força Aérea. E, se Mendes Calado se mantiver até lá, sendo a decisão simultânea
nos dois ramos, bate o recorde de um chefe militar em funções sem a confiança
do Governo.
Eanes, além da governamentalização e partidarização das FA, evocou o PREC (Processo
Revolucionário em Curso) por “temer
que alguns militares, ambiciosos e de poucos escrúpulos procurem ligações
pessoais de dependência partidária” para serem promovidos. Todavia, disse que
não se referia “a ninguém em especial”, mas que se limitara a identificar “um
perigo potencial e uma vulnerabilidade que é necessário esconjurar porque, a
concretizar-se, pode ter consequências gravosas”. Ora, parece que Eanes, com a
devida vénia, não tem razão, pois nem o Governo quer controlar até ao âmago as
FA, nem estas se posicionam como sobrepostas ao Governo ou suas substitutas. E
esquece que, no tempo em que era PR, com a nova Lei da Defesa Nacional e ambiente
propício a testar a força entre políticos e militares, o ano de 1983 fez
emergir a única vez que um chefe militar ficou 4 meses com um pedido de exoneração
pendurado por via de palaciana quezília entre São Bento e Belém. O
Primeiro-Ministro Mário Soares media forças com o PR Ramalho Eanes por causa da
não recondução do general Garcia dos Santos como CEME. O Governo propôs a
exoneração do chefe militar, quase como na atual crise da Armada (agora nem
chegou a haver proposta), mas o PR
susteve-a enquanto pôde.
Se agora o Governo testa a reforma que alterou a arquitetura de relações
entre os chefes dos ramos, o poder político e o CEMGFA, há 38 anos Soares
testava a força do poder civil contra a influência dos militares acabados de regressar
aos quartéis com a extinção do Conselho da Revolução, mercê da revisão
constitucional de 1982.
Quando Soares e Eanes convieram em acertar os pontos, fizeram-no por carta
que estabelecia um “entendimento mútuo” de “dupla responsabilidade”: um chefe
militar seria exonerado se perdesse a confiança política do PR ou do Governo.
Na atual crise, está subjacente a perda de confiança política do ministro e do
CEMGFA no almirante Mendes Calado, que foi a Belém apresentar as suas razões ao
comandante supremo por o Governo ter chumbado o nome proposto por si para
comandante naval, nos termos na nova legislação.
Mercê dos “equívocos” de comunicação e “erros de perceção mútua” sanados em
reunião entre Presidente, Ministro da Defesa e Chefe do Governo em Belém, cujo
conteúdo ninguém explicou, Mendes Calado permanece dependurado como esteve
Garcia dos Santos em tempos. Tem a confiança do PR (com quem
estava tudo combinado), mas não do
Governo. E altas patentes questionam “até quando é possível manter essa
situação”, podendo até suceder que haja uma remodelação governamental saindo eventualmente
Cravinho do Governo ou passando para outra pasta, o que se revelaria adequado
para uma movimentação na Armada.
Este desaguisado não é o primeiro nem o mais dramático. Ao longo da discussão
sobre a reforma do comando superior das FA, debateu-se nos bastidores se os
atuais chefes se deviam demitir após a aprovação das leis a que se opunham e
que limitam os poderes dos chefes dos ramos para o concentrar no CEMGFA. Não o
fizeram.
Ora, em 1992, Loureiro dos Santos demitiu-se após a aprovação da “lei dos
coronéis”, do Ministro Fernando Nogueira, pois, não tendo concordado com os
termos da lei, entendeu não ser obrigado a cumprir coisa de discordava. Ao
invés, no caso presente, nenhum dos chefes militares se demitiu, apesar de não
serem defensores dos termos da ‘reforma Cravinho’; e o CEME ora reconduzido
apontou “inconsistências, colisões de competências, lapsos e omissões” nas
novas leis, numa audição na comissão parlamentar de Defesa.
Já com a nova LOBOFA em vigor, a inédita rejeição do nome do comandante
naval por parte do Ministro, ouvido o CEMGFA, foi o momento de fricção que
induziu a atual crise. Dantes, sentindo-se ultrapassado pelo poder político, um
chefe batia com a porta. Assim, em
1997, o almirante Ribeiro Pacheco fê-lo a duas semanas do fim do
mandato porque António Vitorino não lhe deu indicações sobre a intenção de o
reconduzir ou substituir. Em 1998, Jorge
Sampaio entendeu que, para a recondução do chefe da Força Aérea, não tinha de
ouvir o CEMGFA, almirante Fuzeta da Ponte, que protestou, passando Belém a forçar
a demissão. Em 2003, Silva Viegas demitiu-se de CEME por ter “perdido a
confiança” no Ministro Paulo Portas, quando este deu uma ordem ao comandante de
pessoal para promover o tenente-coronel Campos Serafino a coronel para ser
diretor-geral de Armamento. Em 2016, Carlos Jerónimo saiu de CEME, quando Azeredo
Lopes forçou a demissão do subdiretor do Colégio Militar por este ter assumido
a discriminação de homossexuais na instituição. E, em
2018, assim que tomou posse, Gomes Cravinho forçou a
demissão do CEME, general Rovisco Duarte, tendo alguns dito que fora Marcelo
quem terá exigido a sua exoneração. Porém, só houve dois chefes militares
demitidos: o almirante Fuzeta da Ponte, afastado cargo de CEMGFA em 1998, por
ter entrado em choque com Sampaio, que não o ouviu na recondução do Chefe do
Estado-Maior da Força Aérea; e o general Alvarenga, CEMGFA que, em 2002, face
ao magro crescimento no orçamento da Defesa, disse publicamente que Paulo
Portas estava “paralisado”, com “algumas dificuldades” que não tinham a ver com
as FA (alusão
indireta ao caso da Universidade Moderna).
***
Não era preciso empolar um problema político com as FA ou discutir o poder
do PR e do Governo, nem o PR com a história dos equívocos deu qualquer lição de
direito constitucional. Só tresleu a CRP num ponto, que lhe diz respeito. A nomeação
dos chefes militares é um poder partilhado entre PR, que tem a palavra final, e
Governo, que tem a iniciativa e ouve quem deve.
A função de comandante supremo das FA que o PR tem por inerência está atrelada
à “função simbólica de representação da República e de garantia da unidade do
Estado”, mas não implica o exercício efetivo de CEMGFA (Chefe do
Estado-Maior General das Forças Armadas). Contudo a função
do PR em relação às FA “não é meramente honorífico-formal”, tendo antes “um
sentido jurídico-constitucional preciso”, como explicam J. J. Gomes Canotilho e
Vital Moreira. Não tem “um comando técnico-militar” ou um “comando em pessoa” (como o rei
absoluto ou mesmo o rei das monarquias constitucionais). Porém, a sua função de comando tem natureza
substancial ou material, pois, “como representante da República e garante da unidade
do Estado, o PR é o órgão mais adequado para furtar as FA à instrumentalização
partidária” e, “como garante do regular funcionamento das instituições democráticas”,
cabe-lhe, em caso de estado de sítio ou de emergência, “o comando das FA”, para
“se evitar que a situação de exceção constitucional possibilite a assunção da
chefia do Estado pelos chefes militares” (vd Canotilho, J e Moreira, V. Constituição da república Portuguesa anotada,
2.ª edição revisa e ampliada, 2.º vol. Coimbra Editora, 1985).
Já agora esta anotação: parece nos estados de emergência que atravessaram o
país por força da pandemia, o PR mais parecia o Superministro da Saúde ou o
Superdoente que o Comandante Supremo das Forças Armadas.
Enfim, as FA devem estar sujeitas ao poder político e disponíveis para as
missões que lhes forem confiadas, mas nem devem ser espezinhadas ou meramente
usadas pelo poder político, nem devem tentar sobrepor-se ou justapor-se ao
poder político. Não são órgão de soberania, embora lhes sejam confiadas missões
de soberania.
2021.10.12 – Louro de Carvalho
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