quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Depois da rejeição da proposta governamental de Orçamento…

As esquerdas que, em 2015, possibilitaram um Governo minoritário do Partido Socialista, possibilidade estribada em acordos reduzidos a escrito entre o PS e cada um dos partidos à sua esquerda – o que alguns denominaram de geringonça e que terminou em 2019 na sequência de eleições legislativas em que o PS logrou o maio número de mandatos, mas não a maioria absoluta – agora fizeram coligação negativa com toda a direita para deitarem abaixo a proposta do Governo, não propriamente o Orçamento do Estado, que esse só existiria depois de convertido em lei, após a aprovação global final e a promulgação, a referenda e a publicação.

PCP, PEV e BE tiveram exatamente a mesma postura que em 2011, quando se juntaram à direita para o derrube do PEC-4, que tinha sido negociado com Bruxelas pelo Governo minoritário do PS, o que leva a crer que estes partidos estejam mais confortáveis como forças de protesto do que a sentir corresponsabilidade na condução da governação e na construção das possíveis políticas de esquerda no contexto dos compromissos internacionais assumidos pelo país. De resto, não se prevê que venham a obter ganhos eleitorais significativos, antes poderão obter menos ganhos que em 2011. E não faz sentido terem colaborado na rejeição da proposta do Governo para, a seguir, virem dizer ao povo que não queriam eleições, sugerindo que o Governo trabalhasse outra proposta de orçamento, o que os governantes rejeitaram de imediato, remetendo para a avaliação que o Presidente da República faça da situação e para a tomada de medidas que entender nos termos constitucionais, aproveitando a margem disponível.

Na história da democracia, só uma vez um Governo apresentou nova proposta de Orçamento do Estado depois de a primeira ter sido rejeitada pela Assembleia da República (AR). Foi em 1979 sendo Primeiro-Ministro Carlos Alberto da Mota Pinto e Ministro das Finanças Manuel Jacinto Nunes (4.º Governo Constitucional e 2.º dito de iniciativa presidencial). E o Governo apresentou em simultâneo a proposta de Orçamento e a da Grandes Opções do Plano, vindo a AR a aprovar o Orçamento e a rejeitar as Grandes Opções do Plano, após o que o Governo se demitiu.      

É sabido que o Presidente da República assumira previamente que, mal fosse rejeitada a proposta de Orçamento do Estado para 2022, partiria para a dissolução da AR, o que não devia ter feito, segundo alguns, pois condicionou publicamente o debate. Quem desejava eleições antecipadas – eventualmente PS, PSD ou outros (estão em causa os fundos europeus!) – segurou-se nas suas posições, com mais arrogância.

Com a queda da Proposta do Orçamento, que os partidos esperavam que viesse a acontecer, está o caminho aberto ao desencadeamento do processo conducente à dissolução do Parlamento. Contudo, constitucionalmente não é obrigatório que o Governo caia ou que a AR seja dissolvida por isto. Aliás, tal nunca aconteceu. Essa é prerrogativa do Presidente da República que já assumiu, por duas vezes, que se o OE 2022 fosse chumbado, a via seria a da dissolução da AR.

Antes das audiências formais obrigatórias pela Constituição, o Chefe de Estado mediu o pulso ao que achavam os partidos, via Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República. Ferro Rodrigues ouviu os partidos no dia 26, tendo a maioria de esquerda defendido que não é inevitável ir para eleições e que deveria ser dada oportunidade ao Governo de apresentar nova proposta de Orçamento do Estado. Aliás, essa é uma possibilidade aberta pela legislação. Contudo, não é expectável que Marcelo voltar atrás no que defendeu e terá, de acordo com a Constituição, de ouvir, em primeiro lugar, os partidos (previsivelmente a 30 de outubro) e o Conselho de Estado (a 3 de novembro). De acordo com a alínea e) do art.º 133.º da Constituição, o Presidente da República tem o poder de dissolver a AR, mas só depois de fazer tais audiências e tendo em conta o art.º 172.º. É, entretanto, de referir que ter de ouvir não significa obrigação de seguir o que lhe é defendido pela maioria. Além disso, propõe-se ouvir os parceiros sociais. E lembro-me de que houve um caso em que o Presidente Eanes ouviu o Banco de Portugal sobre a situação financeira do país antes de decretar a dissolução da AR e marcar eleições legislativas.  

Em relação ao momento, o Presidente pode dissolver a AR no tempo que julgar oportuno, sendo que o prazo constitucional de 60 dias para a convocação de eleições antecipadas só começa a contar depois de assinado o decreto presidencial da dissolução da AR. Na verdade, o n.º 6 do art.º 113.º da Constituição estabelece que “no ato de dissolução de órgãos colegiais baseados no sufrágio direto, tem de ser marcada a data das novas eleições, que se realizarão nos sessenta dias seguintes e pela lei eleitoral vigente ao tempo da dissolução, sob pena de inexistência jurídica daquele ato”. Não obstante, o n.º 1 do art.º 19.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (aprovada pela Lei n.º 14/79, de 16 de maio, e cuja última alteração foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 4/2020, de 11 de novembro) estipula um encurtamento da antecedência mínima no caso de dissolução:

O Presidente da República marca a data das eleições dos deputados à Assembleia da República com a antecedência mínima de 60 dias ou, em caso de dissolução, com a antecedência mínima de 55 dias”.

E Marcelo, que anda há semanas a dizer que se o Orçamento chumbar, inicia “logo, logo” os procedimentos para dissolver a Assembleia, poderá querer esgotar todas as possibilidades antes de o fazer, o que pode levar tempo. Até podia, em tese, decidir dar mais tempo ao Governo para apresentar segunda proposta de Orçamento, o que os partidos à esquerda mostraram querer. Porém, não se vê grande probabilidade de o Chefe de Estado voltar atrás, a não ser que reconheça que se precipitou, facto que alguns críticos lhe apontam. Por seu turno, o Governo tanto parece disponível para aceitar eleições de imediato, observados os prazos constitucionais e legais, como para governar durante algum tempo no regime de duodécimos, mas não abriu a porta nem à autorização para da proposta de Orçamento baixar à Comissão sem votação para discussão na especialidade, nem para trabalhar nova proposta de Orçamento, pois, em qualquer dos casos arriscava perda de tempo e de energia. Em todo o caso, seguirá a indicação do PR.

No entanto, o Presidente, acusado de ingerência na vida interna de partido por ter recebido um militante do PSD e candidato à sua liderança, antes de receber as direções dos partidos, até pode dar mais tempo aos partidos, nomeadamente ao do Governo e aos que, no momento, têm a liderança em disputa PSD e CDS-PP, para se reorganizarem. Isto cria obviamente engulhos ao atual líder socialdemocrata que anda de candeias às avessas porque pretendia adiar as diretas e o Congresso para depois da resolução da crise política nacional que julgava iminente, o que acabou por se verificar. E, até que haja outro Governo, o atual ficará a governar em duodécimos, isto é, de acordo com as regras e tetos de despesa definidos para cada parcela mensal deste ano de 2021, com a correção prevista na lei. A isto, Costa apontou:

Pela nossa parte, não viramos a cara ao país, às nossas responsabilidades, estamos aqui para exercer as nossas funções e governar o país de acordo com as circunstâncias, sejam elas quais forem. (…) Já tivemos de enfrentar o Procedimento por Défice Excessivo, o diabo, as sanções, uma pandemia, quem sabe se teremos de gerir em duodécimos. Não o desejo.”.

Se o Presidente da República decidir mesmo por eleições, os prazos começam a contar, como se disse, a partir do momento em que assinar o decreto de dissolução da AR. E essa data é uma decisão sua. Ora, segundo o calendário traçado por Marcelo, assim, as eleições seriam em janeiro. Porém, considerando a discussão interna no PSD e no CDS, há pedidos para as eleições serem atrasadas as novas lideranças terem tempo para se instalarem. Contudo, Rio e Rodrigues dos Santos são contra e dizem que é do interesse do país marcar rapidamente o ato eleitoral.  

Entretanto, o Governo não tem de se demitir nem o vai fazer. Com efeito, a rejeição duma proposta de Orçamento do Estado não implica a queda do Governo. O Presidente da República tem o poder de demitir o Governo apenas se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas (art.º 195.º/2 da Constituição), mas neste caso, Marcelo não quer deixar o Governo em gestão, pelo que não está em cima da mesa a demissão do Executivo de Costa até às eleições. E do lado do Primeiro-Ministro, já veio a público o propósito de não demissão. Disse-o no primeiro dia do debate do Orçamento do Estado: “Eu não me demito”. Assim, em plenitude de funções, Costa garante o financiamento e a gestão dos fundos europeus, uma das principais preocupações do Presidente da República. Na verdade, de acordo com o n.º 5 do art.º 186.º da Constituição, o Governo entra em gestão, limitando-se “à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos” antes da apreciação do programa pela AR (o que só acontecerá ao Governo recém-nomeado) ou após a sua demissão (o que não acontecer).

Havia outra forma de o Governo cair sem ser por sua vontade ou do Presidente da República. Contudo, para isso acontecer, era preciso que algum dos partidos presentes apresentasse uma moção de censura ou o Governo apresentasse uma moção de confiança. Ora nenhuma das vias se apresenta politicamente viável. Do lado do Governo ninguém quer ficar com a culpa pela queda do executivo – por isso esperou que fosse a esquerda a chumbar o Orçamento – e a direita não ganharia em fazer cair o Governo, pois é a esquerda que agora se defronta na praça pública.

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Ainda a ‘geringonça’ jazia quente na sala do plenário e Costa avisava querer pescar para o PS os votos da esquerda “frustrada” com este “inesperado” fim. Nas eleições, o PS dará tudo por tudo na pesca do voto útil para obter uma maioria “reforçada, estável e duradoura”. As eleições antecipadas começaram agora.

À saída do plenário, Costa esperou pelos ministros e ministras antes de falar aos jornalistas. Saíram como nunca tinham saído após a votação dum Orçamento: desiludidos com os antigos parceiros. Esta queda do Governo, provocada pelo chumbo do Orçamento do Estado ficará para a história. Mas os protagonistas, a começar por Costa, já pensam em como poderão ter ganhos em eleições pré-anunciadas antecipadas. O Primeiro-Ministro não tinha discurso escrito, mas nada foi improvisado. A linha estava traçada e tinha começado a sê-lo no dia anterior. Se nos discursos e respostas do dia 26 preparou terreno, dizendo que era com o PS e com a esquerda que havia estabilidade governativa, no discurso de encerramento, acabou a pedir uma “maioria reforçada, estável e duradoura numa próxima sessão legislativa”. Não proferiu a expressão “maioria absoluta”. E, quando se referiu ao pedido de maioria alargada, fê-lo evocando todos os votos que a esquerda teve junta em 2019: “dois milhões, setecentos e quarenta mil”. A leitura é que está a fazer a caça ao voto útil em busca da maioria absoluta que lhe fugiu há dois anos. E o resultado prático do apelo é: ao pedir a concentração do voto da esquerda no PS, a consequência é reduzir o peso dos partidos à esquerda, em especial do BE, a quem dedicou parte do discurso, praticamente não falando do PCP. Todo o discurso foi atirar ao voto da esquerda moderada e não ao centrão (apesar de, a dada altura, fazer a diferença para a direita). E porfiou que “a esquerda pode ser muito mais do que a não direita ou a mera oposição à direita”, pois “a esquerda tem todo o potencial para construir futuro e levar o nosso país mais além, não está condenada ao protesto e pode ser o governo equilibrado, responsável que é capaz de transformar o país”.

Parece estar a abrir a porta a uma futura ‘geringonça’, podendo ter uma configuração diferente da original: com o PCP ou com o PAN. Irá chamá-los para os retirar do “protesto” e serem também partidos de solução para os problemas nacionais”.

E, se a mensagem se podia ter perdido mercê do pedido de uma maioria maior do que a que tem atualmente, à noite, na TVI, Santos Silva explicava que, para governar, o PS admite três cenários: maioria do PS com ou sem PAN, maioria de direita ou uma nova ‘geringonça’. “É possível, porque todos os partidos aceitarão os resultados eleitorais”.

Foi nesse limbo, entre saber que pode ter de vir a negociar com a esquerda, não querendo deitar por terra a sua cooperação e tentar pescar de arrasto os votos desses partidos tentando almejar a segunda maioria absoluta do PS que se fez o debate do dia 27 no Parlamento. E, na intervenção de encerramento, Costa nunca apontou diretamente o PCP, mas para o BE não lhe falhou a voz. Das suas 9 famosas propostas, disse Costa, há “uma única” que deve ser discutida no OE. E essa foi aquela a que “o Governo já deu inequívoco e irrevogável” apoio.

A bancada bloquista retorquia com vaias e protestos. Todavia, Costa carregou no que julga o erro de chumbar um OE sem regressões e criticou 8 das 9 propostas do BE dizendo que está na hora de os partidos à esquerda deixarem de ser só de protesto, no que teve até o apoio reforçado pelo PAN, que chamou irresponsáveis aos partidos à esquerda.

Entretanto, Catarina Martins fez a defesa das medidas do BE e atacou as incongruências do PS nas leis laborais (criticou-as no tempo da troika e agora segura-as); depois, lançou a crítica direta a Costa pela recusa de acordo escrito nesta legislatura: “a geringonça foi morta pela obsessão pela maioria absoluta”. E, dois anos depois desse desejo, num momento que “devia ser mesmo de mudança”, o Governo escolheu um caminho “que não tem nada de esquerda”.

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Agora, enquanto o PR prepara soberanamente a dissolução da AR, embora conceda algum tempo à direita (pouco para não dar nas vistas) para se reorganizar e aglutinar em torno de alguém – com ou sem carisma – o PS já inaugurou a período eleitoral, num misto de vitimização e proselitismo; as esquerdas radicais vão deixar o deslumbramento pela queda épico-picaresca do Governo para cuidar dos resultados eleitorais (com sucesso ou não); e as direitas entretêm-se na disputa das lideranças (“guerras do alecrim e da manjerona), com necessidade ou sem ela, esperando que um novo Dom Sebastião lhes ponha a governação no colo.

Entretanto, os magros aumentos salariais na função pública, o ligeiro aumento das pensões de reforma e aposentação, o reforço dos abonos e a magra redução no IRS – mil milhões de euros (devem dar para as despesas eleitorais) – fazem uma pausa, esperamos que não seja perpétua; os milhões do PRR ficam em banho-maria (mesmo que o Governo se aplique a sério nisto, não há tempo útil até às eleições); o Portugal 2030 está em compasso de espera; porém, o custo de vida não para de subir e não se trava a pobreza. Famílias sofrem, empresas não recuperam, propostas e projetos de lei caducam e o país não sai da cepa torta. Virá uma solução à direita, à esquerda, ao centro, ou ao nim? É de esperar que não sejam a cantoria da “Pátria mãe” ou o uso da boina verde a transmitir o vírus do imobilismo e do atraso estrutural.

2021.10.28 – Louro de Carvalho 

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